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a arte dos loucos, os campos sem porteira

Atualizado: 17 de jul. de 2021


Colagem por @at0falho


A Fresta é uma coluna — uma colina — de periodicidade semanal dedicada a publicação de textos realizados no seio do movimento surrealista e arredores, de curadoria de Natan Schäfer.

 

O texto de André Breton (1896 - 1966) A arte dos loucos, os campos sem porteira (L’art des fous, la clé des champs) foi publicado pela primeira vez em Les Cahier de la Pléiade (1948). Posteriormente, passou a fazer parte da coletânea reunida em La clé des champs (Éditions du Sagittaire, 1953), a qual reúne ensaios escritos entre 1936 e 1952, e foi republicado em Le Surréalisme et la peinture, em 1965.

Central na obra de Breton, este texto não somente é um dos pioneiros como também dos mais progressistas e arrojados até então publicados sobre o tema. Breton não hesita em corajosamente fazer frente à crítica conservadora e assim abrir caminho para profícuas articulações discursivas e imagéticas, e desenvolvimentos teóricos posteriores como, por exemplo, os de Michel Foucault.

A tradução que apresentamos aqui n’A Fresta é inédita e até onde se tem notícia a primeira em português.

 

A arte dos loucos, os campos sem porteira

Num verdadeiro manifesto da Arte bruta constituído por uma nota datada de outubro de 1948, nosso amigo Jean Dubuffet insiste, mais que justamente, no interesse e na especial simpatia que portamos às obras que “têm por autores pessoas consideradas como doentes mentais e internados em estabelecimentos psiquiátricos”. Sequer é preciso dizer que concordo plenamente com estas declarações: “As razões pelas quais um homem é considerado inapto à vida social parecem-nos de uma ordem a qual não nos dispomos a seguir”. Declaro-me estar não menos de acordo com Lo Duca, autor de um notável artigo intitulado “A arte dos loucos” do qual tomei conhecimento sem que, infelizmente, me fosse dada a referência e do qual limitarei-me a citar estes fragmentos: “Num mundo esmagado pela megalomania e pelo orgulho, e pela mitomania e má-fé, a noção de loucura é bastante imprecisa. Além disso, notamos que um número exageradamente restrito de megalômanos é tratado pelos psiquiatras. De fato, assim que a loucura torna-se coletiva — ou manifesta-se por intermédio da coletividade — ela torna-se tabu… Aos nossos olhos, o autêntico louco manifesta-se por meio de expressões admiráveis às quais ele jamais é forçado ou sufocado pelo objetivo ‘razoável’”. Esta liberdade absoluta confere à arte dos doentes mentais uma grandiosidade que temos a certeza de encontrar somente nos Primitivos… Estas notas gostariam de convencer o público a apreciar antes de ter compreendido uma obra de arte. Um dia tentaremos fazê-lo duvidar do valor de sua “compreensão”: bastará insinuar-lhe que nós não estamos “seguros” do tempo e do espaço… O público não sabe nada sobre a beleza, que ele ainda confunde com o bonito, o elegante, o agradável. Ele ignora o papel da intensidade, do ritmo, do compasso. A arte dos loucos fará com que a dúvida deslize para dentro dele, esta dúvida benéfica que lhe abrirá “o caminho de uma inteligência superior e serena”. Citei longamente este texto para demonstrar que a ideia de uma reparação resplandecente está no ar. Nós não descansaremos enquanto não seja feita justiça com relação ao cego e intolerável preconceito sob o qual caíram por tanto tempo as obras de arte produzidas nos manicômios e o qual impediu com que elas se desvencilhassem da atmosfera de mau gosto que foi criada ao seu redor.

Note-se que, a partir do momento em que se discute o lugar destinado a estas obras, um desconforto crescente expressa-se sem trégua nos meios psiquiátricos — mesmo que seja num círculo onde estas obras são, no entanto, consideradas em função do seu valor “clínico”. Já na obra A arte nos hospícios, publicada em 1905, Marcel Réja opõem-se ao fato de que sua qualidade “doentia” faz com que elas passe por “coisas não-conformistas, sem relação com a norma” e ele mostra-se sensível à beleza de certas dentre elas. Hans Prinzhorn, ao revelar as que lhe parecem mais notáveis — especialmente de August Neter, Hermann Beil, Joseph Sell e Wölfli — e ao assegurar-lhes uma apresentação pela primeira vez que lhes é digna, convoca sua confrontação com outras obras contemporâneas. Confrontação que, em vários aspectos, é desfavorável a estas últimas. Jacques Lacan, ao estudá-las magistralmente, sublinha a mais viva e justificada estima para com as produções literárias de sua doente Aimée. Gaston Ferdière, falando recentemente no Congresso psiquiátrico de Amsterdam, começa colocando sua conferência sob duas epígrafes. A primeira de Edgar Poe: “Os homens chamaram-me de louco, mas a ciência ainda não decidiu se a loucura é ou não é a mais elevada inteligência”; a outra de Chesterton: “Todo encadeamento de ideias pode conduzir ao êxtase; todos os caminhos levam ao reino das fadas”. Como vemos, a dúvida benéfica de que falava Lo Duca revela-se dia-a-dia aos especialistas em loucura, ainda que ela não tenha ganhado o público.

Lutaremos de modo eficaz contra o distanciamento e a prevenção bem enraizada do público somente se remontarmos às suas origens, demonstrando com evidência a partir do quê elas foram produzidas. Atribuo como responsáveis o cristianismo e o racionalismo, conjuntamente, sendo que a perpetuação até nós deste estados de coisas é igualmente imputável à carência da crítica de arte, rebelde a tudo aquilo que não é caminho batido.

Todos sabem que os povos primitivos enalteciam ou enaltecem ainda a expressão das anomalias psíquicas e que os povos altamente civilizados da Antiguidade não diferiam em nada com relação a este ponto, assim como não diferem os Árabes. Como nota Réja, “os antigos que sequer suspeitavam da existência de doenças mentais relacionavam a origem de problemas psíquicos à intervenção divina, assim como relacionavam a ela a intervenção do gênio… Na Idade Média o delírio não é mais um efeito da benevolência, mas do castigo de Deus. Ao menos, continua emanando dele (por intermédio do diabo)”. É esta última concepção, avivada o mais que possível pela acusação e pelo exorcismo de “possuídos” e cuja lembrança permanece muito viva, que mostrou-se duravelmente alarmante e está hoje longe de ser revisada.

O racionalismo deu conta do resto e não foi a primeira vez que nós vimos estes dois modos de pensamento aparentemente contraditórios de fato unindo-se para consagrar uma iniquidade flagrante. O “senso comum”, aliás bem mal assentado mas tirando partido das menores garantias que pode arranjar no domínio da vida prática, tende a afastar por meio da violência e mesmo a eliminar tudo que se recusa a conciliar-se com ele. E quanto mais bambas e carcomidas são as bases sobre as quais repousa, mais despótico ele é: ele está pronto para seviciar a menor infração com o mais veemente rigor. Ele desconfia o máximo possível do excepcional, em todos os gêneros, e com seus jornalistas especialmente encarregados, zela pela manutenção do famoso corredor (a bom entendedor…) que comunica o gênio com a loucura e no qual não se perder nenhuma ocasião para que nos seja assegurado que os artistas podem aventurar-se bem longe nele sem pesar a mão.

Teria sido tarefa da crítica de arte, diante de obras plásticas da qualidade desta que nos deu a conhecer Prinzhorn, fazer um balanço, quero dizer, confrontar estas obras com aquelas das quais ela geralmente ocupa-se; submetê-las imparcialmente aos critérios que lhes são próprios. Mas para isso seria preciso que ela tivesse conservado alguma independência profunda e também que os critérios fossem menos desesperadamente indigentes. A fumaça sufocante de incenso, que a crítica toma por conforme com seu papel de envolver alguns artistas consagrados, e a parcialidade difamatória muito ampla que “assenta-lhe” diante dos seus olhos, deixam-na pouquíssimo disponível para a descoberta de novos valores e, com ainda mais razão, não a destinam às explorações de caráter aventureiro. Para ela vale mais adular muito tranquilamente os poderosos do momento, reexaminar até perder de vista as mesmas bobagens e depreciar por precaução tudo aquilo que afasta-se de uma linhazinha que alguém traçou para si. O público pode dormir tranquilo: não somente os indivíduos que nem sempre puderam exibir mãos limpas, mas também tudo aquilo que às vezes fazem de admirável e que poderia lembrar-lhe deles, está bem fechado à tranca. É de se duvidar que com tal lista de tarefas seja a crítica de arte quem irá buscar seu bem — e o nosso — nestes troféus da verdadeira “caça espiritual” através dos grandes “descaminhos” do espírito humano.

Não temerei em avançar a ideia, somente à primeira vista paradoxal, de que a arte disso que hoje classificamos na categoria de doentes mentais constitui um reservatório de saúde moral. Ela efetivamente escapa a tudo que tende a falsear o testemunho ao qual nos dedicamos, a tudo aquilo que é da ordem das influências exteriores, dos cálculos, do sucesso ou das decepções que encontram-se no plano social, etc. Os mecanismos da criação artística aqui são liberados de todo entrave. Graças a um desconcertante efeito dialético, o encarceramento, a renúncia a todos lucros como à toda vaidade, a despeito daquilo que individualmente apresentam de patético, são aqui as garantias da autenticidade total que alhures faz falta por todo lado e que nos é cada vez mais adulterada a cada dia que passa. Traduzido por Natan Schäfer


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