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a cidade assentada nos paralelepípedos

Atualizado: 16 de set. de 2021


Primeiras vistas sob a sombra de um vulcão, 2019. Collage por Natan Schäfer (in: Surrealismo em Curitiba, 2019).
 


A Fresta é uma coluna — uma colinade periodicidade semanal dedicada a publicação de textos realizados no seio do movimento surrealista e arredores, de curadoria de Natan Schäfer.

 

Já mencionamos nest’A Fresta que Louis Aragon (Paris, 1897 - Paris, 1982) é alguém tão relevante quanto polêmico no que diz respeito a sua relação com o movimento surrealista.


“Eu sou e serei contra os partidários da estupidez e da inteligência, tomo o partido do mistério e do injustificável”, diz Aragon em Le Libertinage (1977, Gallimard). Breton, por sua vez, diz em Le pas perdus (1924, NRF) que “Aragon escapa mais facilmente do que qualquer outro ao pequeno desastre cotidiano”. Alain Jouffroy ainda afirma que “Aragon soube desde muito cedo mostrar a consciência que possuía desta ambivalência da escrita, similar a dos sentimentos, como se fosse sua irmã gêmea”.


Na aurora do grupo surrealista de Paris, Aragon, colega de Breton no curso de medicina, foi um dos principais animadores do movimento. Rapidamente, notabiliza-se pela maestria com que manipula a língua francesa e por um notável vigor para o combate, assinando textos a um só tempo furiosos e de altos vôos filosóficos e poéticos.


Este, que traduzimos e apresentamos n’A Fresta, e até onde temos notícia é inédito em português, trata-se de uma das cinco escritas automáticas[1] coligidas no volume Le mouvement perpétuel, a qual anuncia algo daquilo que marcaria O camponês de Paris, uma das mais famosas obras de Aragon: a cidade. Neste texto, podemos ver claramente os surrealistas como continuadores do flanar baudelairiano e precursores das derivas situacionistas, transfigurando a cidade com o poder do olhar e do viver. Também podemos notar aí algo do desespero, aquele mesmo que encontramos n’O verbo ser, de André Breton[2] — lembrando que apenas um ano antes de escrever este texto, Aragon encontrava-se no front da Primeira Guerra Mundial, mobilizado como médico auxiliar, assim como Breton, que conhecera dois anos antes no hospital Val-de-Grâce.


Posteriormente, em 1932, Aragon rompe com os surrealistas, optando por continuar alinhado ao Partido Comunista francês, mais tarde tornando-se partidário do stalinismo e voltando-se à escrita de romances orientados pelo realismo-socialista. Contudo, assim como muitos membros do movimento, acreditamos que esta ruptura, evidentemente, não anula nem sua importante contribuição e atuação junto ao movimento surrealista, como tampouco o potencial da obra que legou.


A cidade assentada nos paralelepípedos


Para grande pasmo das nuvens a mão branca parou acima dos bulevares externos, fazendo grandes gestos com suas articulações estralando os quais levavam o espírito a uma região de epidemias e bandeiras. No intervalo das falanges um raio violeta abatia-se como uma tromba no mar sobre a cidade assentada em montes de paralelepípedos e as placas de sentido único tombadas os cadáveres de policiais apodrecendo nos cruzamentos desde os já distantes dias do primeiro sobressalto quando haviam anêmonas em todas as esquinas da rua e cravos selvagens nas janelas convulsas das casas. Então víamos sair de uma viela negra e toda leprosa de rancores e de desastres um fantasma vestido de fantasma com seus grandes dentes sonoros seus jeitos de abanar a cabeça e a grande foice maçônica que significa a igualdade dos homens e das mulheres Ao passar nos primeiros cafés atulhados de operários e floristas o espectro tirava os capacetes simbólicos dos homens e fazia cair as meias-calça das mulheres.


Café La source

Bulevar Saint-Germain, 1919


[1] A escrita automática trata-se de uma espécie de estupefaciente capaz de, como sugeria Rimbaud, permitir o “desregramento de todos os sentidos”, elaborado pelos surrealistas a partir dos avanços freudianos e a cuja pratica lançavam-se então de peito aberto. [2] Texto que traduzimos e publicamos n’A Fresta e pode ser acessado no seguinte link: https://www.sobinfluencia.com/post/o-verbo-ser

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