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"a literatura e o mal" ou Georges Bataille urgente


Desenho sem título para Sol vidrado [Untitled drawing for Soleil vitré], c. 1925, por Georges Bataille. Do acervo do The Museum of Modern Art Library.




 

A Fresta é uma coluna — uma colina — de periodicidade semanal dedicada a publicação de textos realizados no seio do movimento surrealista e arredores, de curadoria de Natan Schäfer.


 

A partir da terceira lei de Newton [1], a qual estabelece o princípio de ação e reação [2], podemos concluir que a proliferação da canalhice conduz a um ostensivo bom-mocismo, supondo estes dois termos como opostos. No entanto, cumpre notar que a benevolência, cerne disso que denominamos bom-mocismo, é um dos mais sub-reptícios modos de expressão de uma pretensa superioridade espiritual e autoridade religiosa, ainda que o sujeito de sua enunciação conscientemente não afirme, ou mesmo renegue, a crença em Deus. Assim, a benevolência configura o mais agudo desprezo pela liberdade própria e alheia, pela identidade em abismo e pela diferença radical, o que faz dela, se não protagonista, um eficiente coadjuvante daquela mesma canalhice à qual muitos pretendem opô-la. E aqui peço licença para uma interrupção romano-germânica.

Auctori incumbit onus probandi:

“quoniam tu benedices justo Domine ut scuto bonæ voluntatis coronasti nos” (Psalmi 5:12).

Quod erat demonstrandum. [3]

Se faço uso de um latim jurídico-eclesiástico, vetusto e periclitantemente pernóstico — como aliás sói ser o uso do verbo “soer” e dos adjetivos “vetusto” e “pernóstico” — para sustentar minha acusação, é porque parece-me que um certo estoicismo eclético, somado aos dogmas eclesiásticos, foi perfeitamente assimilado pela doutrina neoliberal contemporânea, manifestando-se nos sujeitos que ela atravessa sobretudo numa busca pela justa medida a qualquer custo. Ainda que surja nos mais diversos pontos do espectro político contemporâneo, esta versão neoliberal e benevolente da justa medida aristotélica ou aurea mediocritas horaciana [5] parece sempre impedir todo e qualquer tipo de pensamento e atuação radical, e portanto revolucionária, contribuindo com isso para a manutenção da ordem e da moral; porém nãos mais aquela pagã, de Zenão de Cício e Catão, mas sim esta, judaico-cristã, ocidental e nossa, a qual serve de norma ao pouco de realidade dada e pilastra da ruína que nos circunda.

Emblema da benevolência, o sorriso forçado e forjado na simpatia fajuta dos que escondem as luzes e sombras do seu ser para que possam assentir entre si sem projetarem-se no abismo do diálogo exala o cheiro adocicado da carne em putrefação, oculta sob a lama gelada e dissimulando assim o zumbido da “mosca azul que voa no céu na hora em que as estrelas cantarolam” [6]. Este sorriso postiço faz parte do “esfrega-esfrega afetivo” que o psicanalista Christian Dunker associa ao “ser bonzinho”, outra das variantes da benevolência [7].

Dunker afirma que bonzinho

é a pessoa que não consegue dizer algo que vai magoar o outro. Por que? Porque ela acha que a obrigação moral é amar e se adequar ao outro: bonzinho. Ser bom é outra coisa. Ser bom implica fidelidade ao desejo, fidelidade à relação, implica empatia — real! — e não simpatia identificatória,


o que é diferente de


ser bonzinho [, que] é uma imagem, uma imagem que a gente adora ter, em que você se vê sendo amado pelo outro como um dia você acha que foi amado por xis: bonzinho.


Ora, não seria isso que vemos em muitos “bonzinhos” senão a covardia disfarçada de ignorância, despojo, preocupação e indiferença?


Esta perspectiva apresentada por Dunker é corroborada por Claudio Thebas no livro Ser bom não é ser bonzinho (Paidós, 2021). Thebas, justamente por ser um palhaço profissional, demonstra saber muito bem que a piada [Witz] e aquilo que de fato é lúdico [ludens] nada tem de leviano e bobo. Triste do mau humorado que, levando a mão ao peito, franzindo o cenho e arqueando as sobrancelhas, espera adestrar moralmente as emoções de seu semelhante repetindo lugares-comuns e deslizando a linha de figurinhas do purgatório terrestre.

Diante de tal situação, dentre os muitos que hoje buscam conhecer as trevas do ser, a presença de Georges Bataille e sua obra assume caráter de urgência. Assim, propedeuticamente, n’A Fresta de hoje traduzimos uma entrevista conferida por Georges Bataille a Pierre Dumayet em 1958 no programa Lecture pour tous [Leitura para todos], quando do lançamento de seu livro A literatura e o mal, publicado no Brasil pela editora Autêntica em 2015, em tradução de Fernando Scheibe.

Alain Joubert, vigoroso ensaísta e poeta que buscou apontar caminhos para a atuação surrealista após a autodissolução do grupo de Paris em 1969, apontava [8] que o próprio Georges Bataille considerava-se um “inimigo interno” do movimento surrealista [9], o qual portanto permitiria tanto o “alargamento” do movimento, quanto o que poderíamos denominar de dialética interna, evitando assim a formação de epígonos, lugares-comuns e a terrível sobrevivência do signo à coisa significada [10]. De fato um laço [11], digamos de amizade, em cujo nó não cabe a discordância é uma farsa unindo dois covardes. Quem não possui coragem para discordar de um amigo sequer sabe o que é amizade e talvez jamais tenha entendido que o abraço aproxima dois corações. E para colocar o seu coração junto a outro num abraço é preciso coragem. Sustento que é preciso mesmo mais coragem para o abraço do que diante dos gatilhos de um pelotão de fuzilamento.

Contudo, enquanto lúdico e divertido confundirem-se com frívolo e leviano, não haverá espaço para a ampla formação e movimento de um pensamento de fundo [12], tampouco para emergência da admiração, da amizade e, portanto, do amor.

Ao contrário dos mal-amados e covardes das mais variadas estirpes, ao enfrentar o abismo e abraçar as luzes e sombras de seu desejo, Georges Bataille contribui para a manifestação do eterno vigor surrealista na história, fazendo com que o diálogo intelectual — e os demais — reconquiste a vivacidade de seus melhores momentos, deixando de ser o clichê de um jardim de infância ameaçado por gatilhos para tornar-se uma verdadeira festa.

Mas não nos deixemos enganar pelo entusiasmo do combate: por outro lado, a satisfação simplista que alguns pretendem encontrar na miséria humana, na sua exposição e com-partilha, é também uma manifestação da doutrina moral judaico-cristã, que exemplifica ao absurdo os “males” dos quais o mundo deve ser purgado. Quando a “meditação sobre o suplício” [13] usurpa a sublime perversão sádica enfiam-se os pés pelas mãos e toma-se gato por lebre. Afinal, Kafka é sutil [14].

Para evitar este imbróglio, lembremos com Bataille que

o sentido das coisas horríveis que acontecem sobre o solo terrestre consiste em seduzir secretamente, até torná-los doentes, os mais delicados e os mais puros dentre nós. E a cada manhã, a multidão dos seres humanos despertados pelo sol numa cidade reclama seu pasto de horror, que, apesar do espanto e até mesmo dos protestos dos cronistas moralistas, os jornais diários não deixam de lhe trazer, sem omitir nenhum detalhe: pois o que é preciso saber, antes de mais nada, é o que ocorreu de atroz [15].

Eis aí uma evidência de que, como diria André Breton, “a poesia não é compatível com a leitura do jornal em voz alta”, assim como não o é o signo ascendente, cuja ética pressupõe uma diferença de nível irreversível e sempre “voltada o máximo possível à saúde, ao prazer, à tranquilidade, ao agradecimento, às práticas consentidas” [16]. Cientes disso, podemos agora retornar ao teólogo Newton e reler seu princípio de ação e reação baseado na equivalência (æqualem) e perceber na precipitação de uma imagem que

o ar deslocado pelas as asas no voo atiça o fogo.

 

Pierre Dumayet. — Senhor Georges Bataille, gostaria que examinássemos antes de mais nada o título deste livro, antes de entrar no livro em si, título este que já permite colocar um certo número de questões. De que mal você fala?

Georges Bataille. — Creio que existem dois tipos de mal que opõem-se principalmente. Um que baseia-se na necessidade que humanamente as coisas corram bem e cheguem ao resultado desejado; e o outro que consiste em infringir positivamente certas interdições fundamentais, como a interdição do assassinato ou a interdição de certas possibilidades sexuais.


P. D. —Sim, há o “fazer mal” e o “agir mal”. Este título quer dizer que o mal e a literatura são inseparáveis, fundamentalmente?

G. B. — A meu ver, sim. Evidentemente, isso não aparece de modo claro à primeira vista, mas me parece que se a literatura afasta-se do mal, rapidamente ela torna-se tediosa. Isso pode causar espanto. Entretanto, acredito que devamos perceber bastante rápido que a literatura deve questionar a angústia, pois a angústia é sempre fundada sobre algo que vai mal, sobre algo que sem dúvida acabaria mal gravemente e que é colocando o leitor na perspectiva, ao menos diante da possibilidade, de uma história que acabará mal para aqueles pelos quais ele se interessa, e para simplificar a situação tomo o romance, é colocando o leitor diante desta perspectiva desagradável que cria-se uma tensão e que a literatura evita entediar o leitor.


P. D. — Consequentemente, um escritor, ou em todo caso um bom escritor, é sempre culpado por escrever.

G. B. — A maioria dos escritores não têm consciência disso. Mas creio nestas culpas profundas. Escrever é ainda assim fazer o contrário de trabalhar. Isso talvez não pareça muito lógico mas, todavia, todos os livros divertidos são esforços que foram subtraídos ao trabalho.


P. D. — Você poderia citar-nos um ou dois escritores que teriam justamente sentido culpa por escrever? Que teriam sentido-se culpados por serem escritores?

G. B. — Bom, parece-me que há dois que citei em meu livro [A literatura e o mal], aliás, e que se distinguem muito particularmente nesse sentido: estes são Baudelaire e Kafka. Tanto um como outro tiveram consciência de que colocavam-se do lado do mal e que, consequentemente, eram culpados. Em Baudelaire isso pode ser sentido no fato de que sob o título de Flores do mal ele escreveu os pensamentos que guardava mais perto do coração. Quanto à Kafka, ele expressou-se com ainda mais nitidez. Ele considerou que ao escrever desobedecia aos seus e que, consequentemente, colocava-se assim numa situação de culpa. É verdade que sua família fazia-lhe sentir que consagrar sua vida a escrever era errado. Que o bem [17] seria seguir o exemplo que sempre foi seguido na família, de ter uma atividade comercial, e que ao subtrair-se desse dever agia-se mal.

P. D. — Mas então ser escritor causa culpa em Kafka ou Baudelaire, porque ser escritor não é algo muito sério para os pais de Kafka e Baudelaire. Mas esta culpa é sentida por eles como uma infantilidade. Eles sentem-se culpados de infantilidade por aquilo que escrevem. Você de fato pensa que Kafka e Baudelaire tenham sentido-se culpados pelas infantilidades que escreviam?

G. B. — Acredito que, muito expressivamente, e mesmo às vezes de maneira expressa, eles tenham sentido-se na situação da criança diante dos pais. A criança que desobedece e que, consequentemente, coloca-se numa situação de peso na consciência, pois lembra-se dos pais que amou e que constantemente lhe disseram que ela não deveria fazer aquilo, que aquilo era mal [18] — e isso no sentido mais forte da palavra.


P. D. — Mas se a literatura é uma infantilidade, também os culpados por escrever são culpados por escrever porque a literatura é uma infantilidade. Portanto, você deve pensar que a literatura é uma coisa muito pueril.

G. B. — Acredito que há algo de essencialmente pueril na literatura. Isso pode parecer um pouco inconciliável com a admiração que aliás podemos ter pela literatura e da qual creio partilhar. Mas acredito que é de fato profundo, que é fundamental e que não podemos compreender inteiramente o que significa a literatura se não a situamos do lado da criança, o que não quer dizer que a situamos de maneira inferior.


P. D. — Você escreveu um livro sobre erotismo. O erotismo em literatura é uma infantilidade, de acordo com você?

G. B. — Não sei se a literatura distingue-se do erotismo em geral, quanto a isso. Mas parece-me que é muito importante perceber o caráter infantil do erotismo em seu conjunto. É erótico alguém que, como uma criança, deixa-se fascinar pelo jogo e por um jogo proibido. E o homem que o erotismo fascina está de fato na situação da criança diante dos seus pais. Ele tem medo daquilo que pode acontecer-lhe, vai cada vez mais longe para ter medo, não se contenta com aquilo que os adultos efetivamente sãos contentam-se, ele precisa ter medo. Ele precisa encontrar-se naquela situação na qual ele era criança e na qual era constantemente ameaçado de ser repreendido, até mesmo muito severamente. De uma maneira insuportável, intolerável.


P. D. — Eu talvez tenha dado a entender, ou mesmo talvez você tenha dado a entender, que esta infantilidade ou esta puerilidade são condenadas por você. Na verdade, parece-me que seria bom retornar ao título de seu livro e uma vez mais à literatura e o mal. Não trata-se de uma condenação da literatura nem do mal. Gostaria que você [inaudível] a direção geral deste livro?

G.B. — É certo que trata-se de uma advertência, é certo que é advertir contra um perigo. Mas é possível que ao advertirmos contra um perigo damos ao advertido razões para afrontar este perigo. E acredito que é essencial para nós enfrentarmos o perigo que representa a literatura. Creio que é um grande e grave perigo, mas que alguém só é homem [19] de fato enfrentando esse perigo. Creio que é na literatura que percebemos as perspectivas humanas restituídas sob suas luzes mais completas. Porque a literatura não nos faz, não deixa viver sem perceber as coisas humanas em sua perspectiva mais violenta. Que sonhemos com a tragédia, com Shakespeare — há uma multidão de aspectos da mesma espécie. De todo modo, é a literatura que nos permite ver o pior e saber enfrentá-lo, superá-lo, e por fim, este homem que joga encontra no jogo a força para superar aquilo que o jogo carrega de horror.


Tradução e texto de apresentação por Natan Schäfer.

 

NOTAS: [1] Lembremos que embora tenha notabilizado-se como matemático e físico, Isaac Newton (1642 - 1727) era também teólogo cristão. [2] “A toda ação há sempre oposta uma reação igual (...)” [“Actioni contrariam semper & æqualem esse reactionem (...)”]. Tradução de Trieste Ricci et alii. (Principia; Edusp, 2016). [3] Em português: É aquele que acusa que tem de provar a acusação.

“Pois tu, Senhor, abençoarás ao justo; circundá-lo-ás da tua benevolência como de um escudo” (Salmos, 5: 12).

O que era necessário demonstrar. [4] “(...) e dos que se encontram nos extremos, chamemos irascível ao que excede e irascibilidade ao seu vício; e ao que fica aquém da justa medida chamemos pacato, e pacatez à sua deficiência”, Ética a Nicômaco, Aristóteles. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim (Nova Cultural, 1991). [5] Numa das Sátiras de Horácio lemos: “há meio termo entre Tánais e o sogro do velho Visélio,/ há medida pra tudo e há um limite preciso,/ certo é não passar aquém e além da divisa” (Horácio, Sermones, I. 1105-107) [“est modus in rebus sunt certi denique fines, quos ultra citraque nequit consistere rectum”]. Tradução de Guilherme Gontijo Flores (inédita). [6] André Breton, “O verbo ser”, publicado n’A Fresta online em 10 de março de 2021; disponível em: < https://www.sobinfluencia.com/post/o-verbo-ser >, acesso em: 19 de outubro de 2021. [7] As citações foram extraídas do vídeo “Empatia salva? Ser bom não é ser bonzinho , Falando nisso 321”. [8] Em entrevista a Claire Boustani. Disponível em: < https://books.openedition.org/pupo/2007 > ; acesso em 20 de outubro de 2021. [9] Embora Bataille tenha participado do panfleto Um cadáver, duro ataque a André Breton, pouco antes da morte de Bataille eles combinavam uma visita após um encontro fortuito num café. O episódio é relatado por Philippe Sollers em “Mágico Breton”, publicado n’A Fresta online em 24 de fevereiro de 2021; disponível em: https://www.sobinfluencia.com/post/m%C3%A1gico-breton ; acesso em: 19 de outubro de 2021. [10] Como, por exemplo, no caso da própria benevolência que, por sua etimologia, poderia indicar e ser traduzida como “bem-querer”, algo bastante diferente de "disposição para a complacência", "tratar os outros com bondade", e outras definição encontradas ao buscar-se o termo no Dicionário Aulete, por exemplo. [11] Em suas Entrevistas radiofônicas a André Parinaud (1952), Breton afirmava que o movimento surrealista consistia numa Bund, termo alemão para “liga” ou “aliança” baseadas em afinidades espontâneas e eletivas. [12] Como uma vaga de fundo, tipo de onda causada por abalo sísmico. [13] “O jogo lúgubre”, Documents (Cultura e Barbárie, 2018). [14] Como conta Jean-Claude Silbermann, André Breton disse-lhe que Kafka “está no ar”. [15] Idem nota 13. [16] Vide “Signo ascendente”, publicado n’A Fresta online em 16 de setembro de 2020; disponível em: < https://www.sobinfluencia.com/post/signo-ascendente-parte-ii >, acesso em 19 de outubro de 2021. [17] N. do t.: “le bien”, que também poderíamos traduzir por “o certo”. [18] N. do t.: em francês também poderíamos traduzir “mal” por “errado”. [19] N. do t.: o termo aqui pode ser lido tanto enquanto “ser humano” quanto no sentido de se “ter coragem”, ambas conhecidas e deveras discutível acepções do senso comum para a palavra em questão.




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