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a resposta de giovanna

Atualizado: 16 de set. de 2021


A carta absoluta, por Giovanna e Jean-Michel Goutier, 1965.

 

A Fresta é uma coluna — uma colina — de periodicidade semanal dedicada a publicação de textos realizados no seio do movimento surrealista e arredores, de curadoria de Natan Schäfer.


 

Muito se discutiu e se discute a atuação e o lugar das mulheres no movimento surrealista, não raro sem alçar o debate às profundidades e altitudes que seriam de se esperar em se tratando de uma discussão de vida. Diante do habitual baralho de mal-entendidos, dos expressos aos inadvertidos, é sempre oportuno lembrarmos o lugar central desempenhado pela mulher, e pelas mulheres


— hoje, aqui e agora singularizadas em nomes vívidos como Annie Le Brun, que de dia arrosta como um gume e à noite leva constelações nos cabelos disparando setas de beleza incendiária; Michèle Bachelet, que ao pintar abre as portas dos olhos selvagens; Marie-Dominique Massoni, que revela no esoterismo os subterrâneos que sobem; Susana Wald, cujo rigor oferece-lhe a chave dos abismos de sua floresta que guarda o lótus do seu nome; Sylwia Chrostowska, que lapida a pedra-de-toque capaz de provar que os romances podem mais e mais assim aponta para os micélios, gametófitos e brotos que germinam e emergem a partir da crise; Antonella Gandini, cuja graça e elegância deslizam pelo tempo como a águia rubro-negra ao adormecer capturando sua caça sob o luar; Beatriz Hausner, que é exímia tecedora de pontes; Dolorosa de la Cruz, cujo vermelho das manchas espalha seu mapa de fios no labirinto da tormenta; Casi Cline, cujos rasgos e encontros tiram o fôlego dos relógios; Alice Massénat, que dá carne ao sopro; Kateřina Piňosová, cujo percurso ecoa a pedra do sol no maravilhoso que vem de longe e de dentro; Eduarda Camargo, cujos olhos de sofá em chamas rugem equilibrando ludiões nos dedos do sorriso; Flávia Chornobai, cujo sopro em velas abre a imensidão; e muitas mais que estão aqui e agora, e outras ainda que, sim, nos deixaram, mas jamais se foram —


,no tensionamento e consequente extensão e extenuação dos limites erigidos em torno do pouco de realidade[1]. E é para contribuir com o esclarecimento geral que apresentamos n’A Fresta de hoje os trovões de Giovanna.

Segundo a docente e pesquisadora Laura Santone “escutar, escrever, significar: é na intersecção destes três polos que se desdobra a prática verbal da criadora surrealista Giovanna”[2].


Nascida em Reggio-Emilia (Itália), Giovanna (1934) — pseudônimo de Anna Voggi —, foi uma das mulheres que atuaram no grupo surrealista de Paris nos anos 1960, participando de várias exposições coletivas e individuais e publicando obras em tiragens limitadas, constituindo assim uma trajetória à margem e até hoje conhecida de poucos. Recentemente parte de sua obra poética foi reunida no volume Poèmes et Aphorismes (1989–2015) (Peter Lang, 2017), colocando em circulação escritos antes inéditos ou de difícil acesso.

Cumpre lembrar que os fazeres de Giovanna não conhecem fronteiras, atitude aliás típica dos membros do movimento surrealista, a qual já sublinhamos em outras frestas[3]. Como observa seu colega de movimento José Pierre “cada uma de suas obras (...) propõe uma solução radicalmente diferente da precedente e da seguinte”, filiando-se assim Giovanna à incessante aventura surrealista que encontra nas artes um caminho de busca e revelação, jamais fazendo destas um simples métier ou instrumento voltado à fins práticos mais ou menos nobres.

No Brasil, Giovanna foi apresentada ao público na XIII Exposição Internacional do Surrealismo, organizada em São Paulo por Sergio Lima, com apoio do grupo surrealista de Paris e dos demais surrealistas espalhados mundo afora.

O texto de Giovanna que publicamos hoje nest’A Fresta, até onde temos notícia inédito em português, trata-se da resposta de Giovanna à enquete “A quantas andamos com o surrealismo?” (“Où en sommes-nous avec le surréalisme?”), conduzida e publicada por José Pierre na revista romena Si et No, em novembro de 1975, e republicada em 1977 no robusto volume da revista Obliques nº 14-15 (Borderie), dedicado à mulher-surrealista. Nesta resposta podemos ver viva e em movimento Giovanna e sua visão, cuja poesia ela mesma define da seguinte maneira:


“poesia é mudar a cor da matéria cinzenta”.


Natan Schäfer

 

Resposta de Giovanna à enquete “A quanta andamos com o surrealismo?” (org. José Pierre)


É brutal como uma crítica espetada num turbante girando em torno de um machado [4].


As décadas não são sempre poéticas, por isso eliminar a sonolência de cada atrocidade precipitando-se na escrita como num bivaque, arvorando sua membrana elaborada estilo torre renascentista, não é severamente repreensível mas, sim, justificável. Antes de protestar, a linguagem protege e desenvolve sem vergonha a justificação das lições particulares às quais se afeiçoam critérios apagados.


“Uma criança de prédio” [5] encontra a musa meio puta e fabrica anátemas circulando sob a forma de manuscritos protetores e devassos. Pequena nécessaire da rima e refelxivilidade da prosódia. Corta-fogo mental por excelência.


Colóquio desesperado das cores afixadas na gola alta dos desejos morenos.


Inconcebível, o realismo alicia o noticiário policial sem fazer sangrar a prosa enquanto a doçura dos banhos de mar encurrala os afogados e força-os a molhar o cigarro do condenado [6].


Desde que o dia nasce batemos no atlas como um surdo, reconciliando-lhe com o porvir do poema estrangulador. A atualidade mais ilegível enrola-se exoticamente como um elemento simbólico sobre uma cama desfeita [7]. Estender-se na glosa reduz o contato com a velocidade típica do pulso pega em flagrante sob a pressão do tempo. A sintaxe se parece com os adornos femininos, tanto mais excitantes quanto mais podem ser paralisantes. O Monte Irônico domina o sentido plástico inerte [8] e concorda em encontrar na base de toda recusa um semblante de autonomia [9]. A terra chuta quando não é levada em consideração pelo gesto obsceno do aeroplano suscitado pela graça das colinas.


Combater a realidade quando ela se pretende em plena forma, certa noite, quando um perfil assume a aparência de um longo discurso.


O escândalo foi consumido ao fim da refeição, quando a chave reapareceu com a porta apoiando-lhe.


Consolamo-nos como um mármore que se racha.


Quanto a mim, insensivelmente devoro o ioiô mordiscando o meridiano.


Ao longo da presa deitam-se as noites atuantes.



Giovanna

 

[1] N. do t.: Vide Introdução ao discurso sobre o pouco de realidade (Introduction au discours sur le peu de réalité), de André Breton (Gallimard, 1927), do qual citamos a seguinte passagem: “VOZ DE MULHER – Eis aqui os que se atrasam dois a dois. Somente a eles, piedade! Armaduras, façam-se mais e mais cintilantes; amantes, façam-se mais e mais gozar./ – Um ser pode estar presente para um ser?” [tradução nossa]. [2] N. do t.: in: Écouter, écrire, signifier. Sur l'art verbal de la créatrice surréaliste Giovanna (Proteo, 2018; sem tradução em português). [3] N. do t.: A título de informação e refresco mnemônico, permitam-nos a autocitação: “uma mulher [Marianne Van Hirtum] que, como Leonora Carrington, Remedios Varo, Valentine Hugo e muitas outras, permitia que aquilo que ela possuía de mais atravessasse todos os seus saberes e fazeres, os quais, como sói acontecer com os membros do movimento surrealista, não conhecem fronteiras. Pois como afirma Sergio Lima, ‘o fazer nunca teve fronteira, pois o fazer não é território — o fazer é busca’” (A Fresta nº 5, 23 de junho de 2021). [4] Esta passagem faz pensar no poema A floresta no machado (La forêt dans la hache) de André Breton, que figura no livro O revólver de cabelos brancos (Le revolver à cheveux blancs), de 1932.

[5] N. do t.: Em Curitiba dir-se-ia “um piá de prédio”, em outras plagas algo próximo a “criado a leite com pêra” ou ainda “filho de vó”, expressões idiomáticas que merecem uma análise profunda às luzes da psicanálise.

[6] N. do t.: Vide O verbo ser, de André Breton, disponível em: https://www.sobinfluencia.com/post/o-verbo-ser; acesso em 14 de setembro de 2021. [7] Vide Sur la Route de San Romano, poema de André Breton em breve em tradução inédita. [8] Referência a Sens plastique (Sentido plástico), de Malcom de Chazal, de quem publicamos n’A Fresta o texto “O riso animal”, disponível em: https://www.sobinfluencia.com/post/o-riso-animal ; acesso em 15 de setembro de 2021. [9] Vide a teoria lacaniana do semblante apresentada n’O seminário. Livro 18. De um discurso que não fosse semblante (Jorge Zahar, 2009).





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