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a trombeta marina e o biniú acrobata

Atualizado: 10 de ago. de 2022


Collage de Pierre Rojanski para o livro O penal da noite [Le plumier de la nuit], de Hervé Delabarre (Deux Corps, 2011).


 

A Fresta é uma coluna — uma colina — de periodicidade semanal dedicada a publicação de textos realizados no seio do movimento surrealista e arredores, de curadoria de Natan Schäfer.



 

A “poesia” é inimiga da poesia — e vejam que as aspas evitam a aparente tautologia. Quando grafo “poesia” entre aspas estou marcando e me referindo a uma das expressões do estetismo literário, e acentuadamente retórico, que não passa de um passatempo, quando muito um pequeno e breve agrado aos sentidos e às faculdades mentais, que por certo move milhões em prêmios e festivais literários, mas que sobretudo contribui para sustentar personalidades ególatras com os palanques de seu pântano. Estas são algumas das razões da existência de uma série de mecanismos de circulação e, sobretudo, de comércio, que nada tem a ver com a poesia propriamente dita. Por sinal, é importante sublinhar aqui que a poesia — digamos, a verdadeira — não se restringe ao seu aspecto por vezes escrito ou verbal, que costuma ser o único contemplado por prêmios e coleções literárias.


Em várias ocasiões André Breton, designado por Aimé Césaire [1] como um “detector de poesia”, sinalizou a inflação do signo poético. Dentre estas, umas das mais significativas me parece quando nos anos 1960, como lembra Claude Courtot, ele alertou a alguns dos surrealistas do grupo de Paris que eles estavam submergindo em poemas, isto é, em pequenos construtos verbais pretensamente capacitores de poesia [2]. Se naquela ocasião o grupo surrealista de Paris, e o movimento surrealista como um todo, se encontrava sob a ameaça de uma enchente desta ordem, temos de notar que no interior das panelinhas literárias, onde as faíscas poéticas não somente são raríssimas como também costumam estabelecer uma relação inversamente proporcional com os poemas que deveriam permitir sua eclosão, este fenômeno é muito mais grave e flagrante. Sem querer fazer aqui um cálculo e tampouco uma analogia econômica para a qual meu conhecimento de Karl Marx, Adam Smith, Tocqueville e outros é muito limitado, poderíamos deduzir que justamente uma enchente como esta poderia estar diretamente relacionada à desvalorização do signo poético. Embora diga respeito a uma conjuntura diferente, algo daquela ameaça, sob a qual no início dos anos 1960 se encontrava o grupo surrealista de Paris, pode ser acompanhado atualmente em versão ad absurdum, como observamos na matéria “Instapoetas, o fenômeno que tirou a poeira da poesia [sic]”, publicada pela revista Veja, onde lemos que

“Com centenas de milhares de seguidores, os poetas do Instagram migraram para o papel e, rapidamente, chegaram à lista de best-sellers. Na comparação entre os meses de janeiro a agosto de 2017 com o mesmo período de 2018, os livros de poesia [sic] nacionais cresceram em venda 107%*, fenômeno diretamente causado pelos autores virtuais” [3]

Contudo, hoje e do nosso lado, existem alguns que, justamente pela sua aventura, são capazes de apresentar algo novo e de abrir seus abismos em nós, nos elevando “ao longo da catarata” [4], elevação que também poderíamos denominar poesia.


Ainda de acordo com Breton, dentre os principais poetas integrantes do movimento surrealista no pós-Segunda Grande Guerra — e poderíamos investigar o que caracteriza esta conjuntura, que deu à luz figuras brilhantes, porém obscurecidas pelo brilho de seus predecessores [5], a qual aliás, a partir do que afirma Alexandre Kojève, se estenderia até hoje [6] — encontram-se Jean-Pierre Duprey, Joyce Mansour e Guy Cabanel. Figuras cuja obra é profundamente marcada pela mensagem automática ou pelo automatismo, assim como o é Hervé Delabarre.


No prefácio “Elementos de prova”, que antecede A noite sucumbe de Hervé Delabarre, Alain Joubert conta que André Breton, um mês depois de receber o manuscrito Perigo à margem [Danger en rive], deixado por Delabarre na portaria do 42 Rue Fontaine no final de 1962, endereça uma carta a Hervé, dizendo:

“Eu adoro estes poemas que você me fez ler, o movimento que os anima é o único que considero apto a mudar a vida, seu ardor é aquilo que continuo a ter em mais alta conta”.

Essa afirmação de Breton nos interessa não somente pelas reflexões que ocasiona à luz do alerta referido anteriormente, o que poderia fornecer-nos um prisma para uma observação em detalhe da dialética praticada pelos surrealistas, mas que foge ao escopo desta apresentação. Ela é também muito interessante pois o “movimento (...) apto a mudar a vida” ao qual ele se refere é o da prática da escrita automática, que por tudo aquilo que traz de ganga e escória [7], poderia ser, pelo contrário, encarada como um método que provocaria uma produtividade excessiva, a qual justamente incorreria na manutenção do estado de coisas, estado decadente, diga-se de passagem. Essa produtividade exagerada incorreria forçosamente na desvalorização do signo e rarefação tanto do seu sentido quanto do seu potencial de maravilhamento [8]. Ou seja, poderíamos então supor que praticar a escrita automática seria jogar ainda mais água no caudal da enchente, contribuindo para a deflação e a baixa tanto do valor de face quanto do valor real do poético. No entanto, ao contrário daquilo que o senso comum parece crer, e ao que ele poderia induzir-nos mediante sua amplificação em rede, se a escrita automática está intimamente relacionada ao transbordamento e ao excessivo [9], ela não tem nada que ver com a facilidade do vale-tudo. Ou melhor: a escrita automática não é uma solução fácil para um problema difícil. Ela possui autonomia e busca, sim, uma espontaneidade que no ocidente estava há muito tempo soterrada e reprimida sob a parafernália das letras belatrinas, no cafarnaum dos racionalismos mais empedernidos e das religiões mais hediondas. Face a isso, sim, a escrita automática faz parte da busca por um fluxo que é o do voo amanteigado da borboleta [10], mas também o da violência das Cataratas do Iguaçu.


Além disso, o que é importante reforçar aqui é que a escrita automática não é um dado ou uma informação, mas objeto de uma conquista, cujo alcance exige uma ascese e uma Bildung, isto é, uma formação com ou pela imagem. Ou seja, a escrita automática e seus resultados são o topo de um enorme iceberg, a ponta visível de um cristal cuja maior parte do seu todo é apenas e sempre suposta, permanecendo inelutavelmente oculta junto à raízes, memórias e tesouros esquecidos. Somente apreendida dessa maneira a escrita automática pode devolver cintilações, como o faz o magma do manto terrestre, vindo à tona através de frestas e, sob a regência do acaso, alcançando o encontro na superfície em cristais de quartzo, ágatas, esmeraldas e outros minerais de grande valor que, depois de serem submetidos a altíssimas pressões e temperaturas, vem à luz graças ao achado [trouvaille]. Do contrário, a prática da escrita será apenas pretensamente automática, muito provavelmente consistindo em uma ação na qual a fantasia não corresponde à realização do fazer, e na verdade não passando de uma escrita no máximo espontânea. Com frequência o resultado disso é uma tediosa coleção de clichês “confessionais” ou um sapateado titubeante — ou como uma vez ouvi um amigo dizer sobre certos poemas, uma “ladainha confusa” — face aos bloqueios [11] que facilitam com que o sujeito evite a enunciação e a implicação, com todas as borboletas de sua barriga, naquilo que está sendo dito. É preciso ainda apontar que alguns dos mais afobados e mal-sucedidos coveiros que rondam o movimento surrealista se outorgam a condecoração de “surrealistas” para, ao que tudo indica, e dentre outras finalidades escusas, esconderem — e se esconderem de — suas deficiências e fazerem carreira sem trilharem um caminho, configurando-se assim paradoxalmente como traidores de um movimento do qual sequer fazem parte — e do qual inclusive jamais poderão fazer parte adotando atitudes como estas. Aliás, vale notar que estes traidores, ou melhor, sabotadores, até podem ser úteis para incitar à discussão e re-visão de vários pontos de tensão, desvio, desgaste ou mesmo falha de atuação no âmbito do movimento surrealista, embora aqui tenhamos de reforçar que eles são os grandes responsáveis por muitos dos piores momentos — se é que podemos qualificar isso de momento — da escrita desde sua invenção. Principalmente por produzirem e apresentarem como espetáculo uma enorme quantidade de resíduos e dejetos, que têm como consequência a interferência destrutiva e o ocultamento daquilo que é efetivamente digno de interesse e que deveria vir à luz e ser apresentado ao público no proscênio e em todo seu brilho, instigando ao enigma das coxias e, quem sabe, chamuscando cortinas e cílios.


Poderíamos elaborar aqui uma longa lista com exemplos de asneiras, das mais ridículas às mais vexatórias, publicadas e falsificadas com o selo de “surrealista”, mas não é o papel desta coluna servir de palco a isso. Aliás, como lembrava Gérard Legrand em 1977 no programa Apostrophes, nos anos 1930 Breton e Man Ray, sem renunciar a uma certa ironia refinada, diziam que o termo “surrealista” deveria ser empregado como selo de qualidade, da maneira com que faziam os filmes Paramount, onde um anúncio assegurava que aquele era “um filme Paramount” [12], isto é, um filme de qualidade [13]. Pelo contrário, infelizmente o que pode ser sentido hoje é que com frequência, ao encarar-se o surrealismo como uma hashtag — cuja cerquilha que o representa não por acaso evoca as grades de uma prisão —, o termo “surrealista” identifica algo de qualidade no mínimo duvidosa, quando não verdadeiros embustes, calúnias covardes, vale-tudo rasteiro e etc., o que não só é uma lástima e motivo de sentimentos reativos de ordem descendente, como também um sinal que indicaria a “sobrevivência do signo à coisa significada” [14]. No entanto, para nossa alegria, ainda são muitos os que naturalmente e graças ao seu compromisso com a vida e que o ela possui de mais exaltante mantém o surrealismo e o que é surrealista ardente e vigoroso em todo seu movimento.



Um destes é Hervé Delabarre, ferrenho e valente praticante da escrita automática. Em 2018, ao falar para o público presente no encerramento da exposição Le 22 mars 68, organizada pelo coletivo de artistas CoEF 180, na Maison Internationale des Poètes et des Écrivains de Saint Malo, ele a precisa da seguinte maneira: “ou a escrita automática se limita a um episódio de juventude, até mesmo de formação para alguns; ou segue como (...) um jogo que se produz de tempos em tempos; ou ela se torna uma presença constante e permanente — o que é o meu caso”.


É essa presença que eclode pulsante como fruto de uma aventura, de um caminho, de um transbordamento, de uma escuta de algo outro que finalmente encontra passagem naquilo que a angústia tem de “angosta” e que não retrocede nem diante de sabores amargos e nem face ao gozo mais vertiginoso. O interior e o exterior se interpenetram e eis o acontecimento da escrita automática, seguindo-se a ela a abertura da possibilidade de cristalização [15] de algo novo e inédito — de uma potência inaudita. No entanto, esta realização exige do leitor um compromisso correspondente, para que de fato o circuito se feche, as luzes se acendam e a correia de transmissão seja ativada, trazendo consigo todas as gamas da luz e da escuridão, como uma revoada de borboletas no lusco-fusco.


A meu ver, é isso o que Hervé Delabarre consegue alcançar com A trombeta marina e o biniú acrobata, publicado em 2017 no volume A noite sucumbe [La nuit succombe] pela editora Les Hommes sans Épaules — dirigida pelo também poeta Christophe Dauphin —, e que traduzimos e apresentamos pela primeira vez em português aqui nest’A Fresta.


O que vemos neste escrito é, no interior do fio vermelho da narrativa, as “palavras sem linhas” [16] numa espécie de ziguezague entomológico que evoca a dupla-hélice do código genético apontando para as raízes e para aquilo que de misterioso e original [ursprünglich] carregamos em nós e nos nós de nosso navio.


Porém, antes de seguirmos adiante com A trombeta marina e o biniú acrobata, gostaríamos de registrar que, ao ser interpelado por Annie Robine naquela mesma exposição Le 22 mars 68, que mais uma vez coloca a questão: “O surrealismo, então, como você o definiria? (...)”, pergunta que os próprios surrealistas se fazem desde o início do movimento, Delabarre prontamente responde, não sem uma risada prológologica: “para mim é muito simples, surrealista é antes de mais nada uma maneira de ser, uma maneira de viver a existência (...)” [17].


Natan Schäfer

Abril de 2022

 

A trombeta marina e o biniú [18] acrobata Hervé Delabarre


Quebramos como um pretzel, damos um nó como a uma gravata, lambemos como a uma ânfora e transforma o dia em noite, o que é o que é?


Diante de um tal enigma, o Sir de Baradel ficou grogue, ou quase, a ponto de limpar sua lâmpada com a aba de um penhoar, último alívio da noite, perguntando a si mesmo se mais uma vez a sombra iria fazer companhia às garras morenas ou loiras, mais frequentemente ruivas, emergindo das ruínas, dos escombros de templos, de igrejas e de mesquitas que, como larvas, abrem caminho em meio às cabeleiras derramadas no mármore dos balcões onde os tinteiros haviam-nas precedido e liberado a tinta de suas vertigens. Existe algo mais triste do que um dia sem castigo, do que uma hora abandonada junto a uma ave de rapina, quando o sangue começa a investir os locais de prazer perante os quais, lembrava-se o Sir, Olímpia, mais majestosa do que nunca, entretinha sua fome? Mas o que há também de mais voluptuoso do que quando ela decidia sorrir? De verdade, o que há de mais voluptuoso?


Enquanto esperava, a via havia adquirido a tez dos abatedouros, ao que as roupas de baixo femininas ainda crepitavam, destilando um perfume de orgia. E o Sir não se surpreendeu ao ver que sob tais clarões o cavaleiro Bayard vinha em sua direção, agitando uma escumadeira que uivava, demência adquirida, com todos seus olhos, perversos ou não, de qualquer modo similares aos da Górgona com a qual o cavaleiro desde sempre mantinha estranhas relações. Quantos palavrões, quantas sentenças de colocarem os interfones aos berros! Nos altares as torrentes só ofereciam sacrifícios.


Depois desses séculos passados e suas últimas aventuras, com aqueles cachos amados e os velos que glorificavam suas bocas e desde então não cessavam de acompanhar-lhes, era possível ouvir vindo como um vago ritornelo, como uma suspeita de um lai [19] bretão pronto para deixar-se esvair feito uma lembrança, nobres donzelas cujos nomes, que pena!, não evocavam mais nada e sem que a rima, de uma asa à outra, estivesse aí para alguma coisa e sem que um velho calvário nos arredores de Guimiliau viesse acordar-lhes, apesar de todas aquelas gavotas [20] que deveriam ter feito os ossos estralarem e saltarem.


Ao aproximar-se do Sir, o cavaleiro concordou, afinal ele mesmo não tinha pego os últimos brilhos do Bósforo para arrastá-los atrás de si? Não tinha pego para si todos os quilates do Nilo? Sua glande engastada de joias merecia mais do que um retoque de arrependimento. “E depois, disse ele, a gente sempre precisa de um pouco de sonho para apimentar os olhos”. Quanto à resolução do enigma que o Sir acabava de expor-lhe, ele se esforçava em responder, consultando para isso o raio de sol que tinha escondido no bolso desde que havia renunciado ao monóculo, uma vez que este último havia se mostrado incapaz de reproduzir em seu hemiciclo os carneiros do mar e seu balido.


“Poderia ter sido, disse ele, o ancestral do tromblom ou do trabuco [21], a menos que se trate de um cofrinho pronto para gravar os vícios e iniciar os Noturnos de Chopin ou, aliás, com o jogo das línguas, ou ainda de uma rede-fole lançada numa poça em algum lugar perto de Saint-Malo, para capturar o belo rosto de uma mulher que ainda não nascera mas que talvez um dia atenderia pelo nome de Beyla [22].


— Ah, Beyla, Beyla! Sempre adoro tanto esses pezinhos que você tem, e você também, acariciados e debaixo dos quais às vezes você se compraz em ser dominada. Sabia que conservei seu sapatinho que me acompanhava?, certamente você não se esqueceu dele, do tempo em que eu praticava atletismo quando, de sua parte, você adulava sem vergonha o cavalo com alças, sob o olhar, é verdade, de uma imponente halterofilista cujos peitorais amplamente abertos facilitavam teu voo. Mas abandonemos todas essas façanhas passadas aos profetas e aos seus adeptos que vão se sucedendo um atrás do outro com a Bíblia, o Corão, a Torá, e a parafernália toda. Esperemos que eles saibam tirar partido disso, felizes de morrer, bem quando Joana D’Arc vai tratar de deixar seus desejos se arrepiarem sobre um balcão herdado de Ingres, onde o fio de sua espada faz os desnudados cantarem, acompanhados pelo coral perfumado das calcinhas fio-dental. Por mais atraente que pareça sua sugestão, no entanto duvido que seja essa a solução para o enigma. De minha parte, pensei que poderia tratar-se de um penhoar, especialmente concebido para manter as estrelas no aveludado da pele, tendo por única partitura as lágrimas mais musicais que nunca, debulhadas a facadas. De algum modo, a melopeia dos dedos no corpo branco de Joana.


— De fato, reconheceu Bayard, isso me daria uma grande satisfação, mas novamente acho que você está meio lírico demais e, não tenhamos medo das palavras, alguns até mesmo acrescentariam poético. Isso é um insulto ou não? Como estamos falando de tiques, poderíamos dizer que tudo depende da linguística, que alguns estudiosos continuam a reivindicar, amantes do Verbo que fazem cair dos seus babadores palavras mais ressequidas que tolete em ânus constipado, para sempre privados de emoção. Mas fiquemos por aqui com a diversão. O melhor, mais uma vez, seria interrogar Olímpia, que infelizmente perdemos de vista há algum tempo, talvez muito ocupada brincando de pega-pega com os fantasmas no escuro, ou então enriquecendo sua coleção de incestos para decorar as paredes de seus quartos.

— Nós a reencontraremos, pode ter certeza; morrer sem ela não é possível.

— Quanto a isso não tenho mais dúvidas do que você. Não faz muito tempo, percorrendo uma loja de quinquilharias usadas [23], depois de encontrar inopinadamente uma roda de bicicleta e um aquário, enquanto um abridor de latas aureolado tentava se enfiar na minha lapela, descobri um livro antigo espremido entre uma bigorna e um chapéu que deve ter servido de cestinha para trocados e chaves. Seu título, “Olímpia”, me interpelou de repente. Que piscadela satânica para condenar o santo que não sou! Se ela ainda estivesse viva, minha mãe ia ter engolido a língua, o que eu logo teria retido na memória com avidez. Como você bem imagina, assim espero, o título me havia simplesmente levado, ainda que para isso eu tenha de por minha vez convocar o lirismo, ao caminho dos astros. E sigamos adiante!


— Meu caro Bayard, levarei minha mão comigo para que ela seja lida, mas não vou deixar cortarem-na [24].


— Não lhe peço tanto; quero somente ver você estrear os sonhos do primeiro amante.


— Que será também o último, se eu acreditar no juramento de Olímpia quando, venerada por garras e celebrada, é claro, por Joana, desde sempre ocupada em oficiar em suas gavetas para aí saborear diversos assuntos, ela se entrega ao olhar desesperado dos adolescentes na noite das criptas.


— Mas seus lábios de todos os tempos não continuaram a ensinar-nos seu saber?


— Até se perderem nas ondas.


— Até naufragarem descaradamente.


— Que continue assim, belo Sir, mesmo que eu tenha cada vez mais dificuldades em caminhar direito. Ando claudicando tanto que os rasgos do céu não mais amontoam sobretudos sobre si. Eis que me tornei um rival de Lord Byron ou de Mefisto.

— E eu, então! Mal e mal ainda sou capaz de voar, como você pode notar. Enquanto outrora eu tirava sarro das nuvens, agora se me elevo um centímetro ou dois caio logo em seguida.


— De fato, e é bem por isso que se nos entregamos a uma lógica, seja ela a mais incontestável, os cavalos de madeira vão se parecendo cada vez mais com catacumbas.


— E também é por isso que não estão mais aí aquelas raposas velhas mercenárias para incensar freiras e ensaboar a virtude, ainda que conferissem à sua chaga o que é necessário de benção.


— De fato, constatei isso com frequência.


— É então que a noite bate em minha porta, que o oceano que cai do teto resolve proclamar minha morte, e que em cada quebra-mar uma criança nua está a caminho para afeiçoar-se e proclamar meu nome. Quase tinha esquecido da pequena Hervine [25], de Chateaubriand, que por ocasião das marés montantes, arrastando violência e carícia, teria podido tornar-se a companheira do sedutor rapazinho que eu fora, ainda que ocultada nas Memórias do grande homem.

— Também me acontece de conhecer tais momentos e devemos a eles a partilha de uma mesma emoção, a comunhão, meu caro, a comunhão!


— As trevas então deslizam sobre nossos ombros e fazem as mortalhas cantarem, talvez até mesmo os saca-rolhas, isso com Joana, que veio juntar-se a nós e cobrir-nos com sua saliva.


— Convenhamos, sem modéstia alguma, que agora temos um ar distinto.


— Aqui a modéstia não serve para nada. Precedida por Joana, Olímpia, ela mesma, se regozijou com isso e não seria capaz de perder encontros como aqueles, oferecendo-se mais bela do que nunca, em fuga de si mesma e tão sedutora quanto um abismo.


— A catarata de seus tecidos.

— O tafetá brilhante de seus olhos.

— E logo a interrogação miúda e perdida de um cílio.


Ao trocarem estas palavras, o cavaleiro Bayard e o Sir Baradel continuaram sentados no banco que uma nuvem, depois de ter limpado as calamidades do céu, acabara de colocar perto deles, sem procurar reter os espectros daquelas mulheres desnudadas que tinham tentado seduzir-lhes antes de desaparecerem sem oferecer-lhes a menor solução, demasiadamente indiferentes aos mistérios, incluindo aqueles que elas detinham sem que o soubessem.


Ora, obviamente, ficava o enigma, para sempre.


Agora se estendia diante deles uma paisagem desolada onde ainda pendiam dos galhos das árvores mortas diversos trapos e esfregões, ou até mesmo algum pus pegajoso que, antes de espalhar-se na poeira, teria sido grudado ali pelos peregrinos e pelos mais diferentes caminhantes das procissões, vindo de volta de Lugares Santos, de Meca, de Lurdes ou de outras latrinas.


Entretanto, quase imperceptível chegava até eles, vindo de longe e como que de alhures, um canto.


Baleias ou sereias?


Ambas põem fim.

(Na noite de 13/08/2015 passado das 3h e depois completado mais tarde).


NOTAS: [1]: Autor, dentre outros, de Discurso sobre o Colonialismo, publicado no Brasil em 2020 pela editora Venêta, em tradução de Claudio Willer. [2]: No prefácio à reunião de poemas de Jean Schuster, organizada por Jerôme Duwa, Claude Courtot anota: “Ainda posso ouvir André Breton, nos anos 1960, comentando no café o sumário de um próximo número de uma revista surrealista: ‘Mais poemas! Sempre poemas! Nós estamos submersos. Não quero mais poemas!…”, Une île à trois coups d’ailes, Jean Schuster, org. Jêrome Duwa (Le cherche midi, 2007; p. 12). [3]: Disponível <aqui>; acesso em 26 de abril de 2022. O asterisco indica que o dado é “da empresa de pesquisa de mercado GfK”. Cumpre notar que a GfK, ou “Gesellschaft für Konsumforschung” — em português “Sociedade para Pesquisa de Consumo”, acrônimo mais tarde ridiculamente rebatizado como “Growth from Knowledge”, isto é, “Crescimento do Conhecimento” — foi fundada por Ludwig Erhard na Alemanha em 1934, ou seja, durante o Terceiro Reich e sob o governo de Adolph Hitler. Portanto, não é motivo de grande surpresa — embora seja motivo de ainda maior indignação — que, como denuncia o jornalista Ulrike Herrmann, o economista e futuro ministro da economia Ludwig Erhard tenha mantido relações estreitas e cooperado com autoridades nazistas, obviamente lucrando com isso. Cf. Ein Profiteur der Nazis [“Aquele que lucrou com os nazistas”], disponível <aqui>; acesso em 26 de abril de 2022.

[4]: Do poema “Nó redobrado” [“Noeud des miroirs”], poema de André Breton reunido no volume O revólver de cabelos brancos [Le revolver à cheveux blancs] (1932). [5]: Graças a ótima resenha que José Miguel Perez Corrales faz da entrevista de Jean-Pierre Lassalle publicada no terceiro número da revista Mange Monde (Rafael de Surtis, 2012), ficamos sabendo que o autor de “Surrealismo face ao zen”, que publicamos na última A Fresta (disponível <aqui>; acesso em 26 de abril de 2022) considera, assim como o próprio Corrales e como nós mesmos e muitos de nossos amigos, o período do pós-Segunda Grande Guerra “essencial” para o grupo surrealista de Paris e para o movimento surrealista, embora naquele momento “a atividade surrealista ‘tenha sido ocultada por diversos fenômenos’, leia-se existencialismo e estalinsmo”. De acordo com Corrales, Lassalle ainda declara: “Para mim, e insisto, convencido de que isso ainda há de entrar na cabeça das pessoas, o Surrealismo do pós-guerra era muito importante e não tinha absolutamente nada de sobrevivência penosa. Absolutamente nada. Eu me situo por completo em seu interior”. Disponível <aqui>; acesso em 26 de abril de 2022. [6]: Em O aberto (Civilização Brasileira, 2017; pgs. 21 e 22), Giorgio Agamben afirma que na segunda edição de Introduction à la lecture de Hegel, apreendemos que logo após escrever a nota à primeira edição de 1946, Kojève “compreendeu que o ‘o fim hegeliano-marxista da história’ não era um evento futuro, mas algo já realizado. Após a batalha de Jena, a vanguarda da humanidade virtualmente atingiu o fim da evolução histórica do homem. Tudo que se seguiu — incluindo as duas guerras mundiais, o nazismo e a sovietização da Rússia — não representa nada além de um processo de aceleração destinado a alinhar o resto do mundo pela posição dos países europeus mais avançados”. [7]: Em uma carta endereçada a Jean Gaulmier — orientalista francês e editor da Ode a Charles Fourier (1947) —, datada de 21 de janeiro de 1958, na qual fala principalmente sobre o Arcano 17, Breton menciona as "escórias que atravancam os textos automáticos", apud Kenneth White, Une stratégie paradoxale: essais de résistance culturelle (Stock, 1998). Vale sublinhar que Breton se refere à “escória” no sentido mineral de “resíduo silicoso que se separa de metais ou minérios em fusão” (Dicionário Caldas Aulete online, 2022). [8]: Cf. Du trop de réalité (Stock, 2000), Annie Le Brun. [9]: Cf. a quarta capa de A boca da sombra que te ergue branca, de Sergio Lima (Contravento Editorial, 2019). [10]: Um dia quebrei o vasto silêncio da biblioteca da Freie Universität Berlin com uma risada ao ler uma carta de Benjamin Péret a Jean Schuster, na qual ele dizia que estava fazendo tanto calor — se não me engano, em Saint-Cirq Lapopie — que a manteiga estava prestes a criar asas. [11]: Cf. o conceito freudiano de Bahnung ou trilhamento. [12]: Cf. link do vídeo aqui; acesso em 28 de abril de 2022. [13]: Na conferência “Situação surrealista do objeto e situação do objeto surrealista” [“Situation surréaliste de l’objet, situation de l'objet surréaliste”], proferida em 29 de março de 1935 em Praga, André Breton declara que “o ideal seria evidentemente que todo objeto surrealista autêntico pudesse de imediato ser reconhecido por um sinal exterior distintivo; Man Ray havia pensado em uma espécie de carimbo ou selo. Da mesma maneira que, por exemplo, na tela, o espectador pode ler a inscrição: ‘Este é um filme Paramount’ (sem prejudicar, em um caso como esse, a garantia insuficiente que resulta de sua relação de qualidade), o amador, até então insuficientemente prevenido, descobriria, incorporado de alguma maneira ao poema, ao livro, ao desenho, à tela, à escultura, à construção nova que ele tem sob os olhos, uma marca que teria sido feita de modo a tornar aquilo inimitável e indelével, algo como: ‘Este é um objeto surrealista’. Esta ideia e o humor muito refinado que passa na forma atual que Man Ray lhe conferiu, não deve torná-la menos útil e oportuna. Supondo que ela possa ser levada a cabo, não é necessário acreditar que o mínimo de arbitrariedade poderia se misturar às considerações que decidiriam a aposição ou não de uma tal marca. O melhor meio de entrar em um acordo quanto a isso me parece ser buscar determinar hoje a situação exata do objeto surrealista”. [14]: Como já sinalizamos em nota ao texto “Crepúsculo dos vigaristas”, de Robert Benayoun (disponível <aqui>; acesso em 25 de abril de 2022) a expressão é utilizada por André Breton no texto “Posição política do surrealismo” [“Position politique du surréalisme”], que figura no volume La clé des champs (Éditions du Sagittaire, 1953). [15]: Na “Carta a Rolland de Renéville”, originalmente publicada na La Nouvelle Revue Française em 1º de julho de 1932 como resposta ao artigo de R. de Renéville “Último estado da poesia surrealista”, publicado na mesma revista em 1º de fevereiro de 1932, e reunido em Point du jour (Gallimard, 1934), Breton se refere à cristalização “no sentido hegeliano de ‘momento no qual a atividade móvel e sem repouso do magnetismo atinge o repouso completo’”. Esta citação é retirada do volume Philosophie de la nature de Hegel, na tradução de A. Véra publicada por Ladrange em 1863. A passagem em alemão se encontra no segundo volume da Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften (§ 315), de G. W. F. Hegel (Heidelberg, 1817). Traduzindo diretamente do texto alemão, poderíamos ainda obter o seguinte: “(...); aquilo que ainda é indeterminação imaterial torna-se material e assim a inquieta atividade do magnetismo atinge a completa quietude” [“(...);das noch immaterielle Bestimmen wird materiell, und so ist die unruhige Tätigkeit des Magnetismus zur vollkommenen Ruhe gelangt”]. [16]: Cf. A Fresta impressa n.10. [17]: Um elemento de prova disso é que neste escrito, como no “Poema para Louise Lagrange” [“Poème à Louise Lagrange”] publicado em La Brèche nº 5, que marca a aproximação entre Hervé Delabarre e André Breton, o vivido [Erlebt] e o achado [trouvaille] são fundamentais para o acontecimento da escrita e os mergulhos que ela permite. [18]: Nota do tradutor: A “trombeta marina” é instrumento musical medieval. Tem aproximadamente o tamanho de um ser humano médio e normalmente apenas uma corda, que é percutida com um arco, de modo similar a um violino. O “biniú”, ou em bretão “binioù kozh” — literalmente, “velho biniú” —, é por sua vez uma espécie de gaita-de-foles típica da região francesa da Bretanha. Ambos têm a ver com o universo marítimo. [19]: N. do t.: Poemas narrativos rimados que contam histórias de amor e cavalaria, dos quais os mais antigos de que temos datação parecem ser do século XII. [20]: N. do t.: Antiga dança popular francesa, ao que parece surgida no século XVI e muito em voga nas cortes de Luís XV e Luís XVI. [21]: N. do t.: Arma de fogo com cano em forma de funil invertido, em português chamada de “trabuco”, ou tipo de chapéu de copa alta e afunilado. Como o trecho não permite a exclusão de nenhum destes dois sentidos, optamos por desdobrar o termo e traduzir ambos. [22]: N. do t.: em francês “Jole”, que pode tanto ser associado a “jolie” — em português “bonita” —, ou a “gêole” — em português “cela”. [23]: N. do t.: em francês, “Emmaüs”, loja beneficente de artigos de segunda mão pertencente ao Movimento Emmaüs, fundado pelo Abbé Pierre em 1949, que figurou ao lado de nomes como Albert Camus e André Breton no apoio a algumas causas, como por exemplo em atuações públicas contra a Guerra da Algéria. [24]: N. do t.: No conto “Sobre a passagem da cestinha de salada” [“Sur le passage du panier à salade”] (1922), de Benjamin Péret, há uma cena na qual uma mão é cortada: “Logo em seguida a vidente cresceu um metro enquanto Sonia diminuiu o mesmo tanto. Ela seccionou-lhe a mão direita, derramou na palma algumas gotas de álcool e gema de ovo e depois passou pelo dorso da mão um fósforo aceso”.

[25]: N. do t.: personagem do livro Memórias de ultra-tumba [Mémoires d’outre-tombe], de Chateaubriand (1849-1850), um das leituras preferidas de André Breton nos anos 1950, que numa das cartas recentemente publicados em um volume que reúne sua correspondência com Benjamin Péret (Gallimard, 2021) diz: “No momento ando flanando, enquanto prossigo a leitura das Memórias de ultratúmulo. Você já leu aquilo direito? Quantas páginas magníficas! Desde então, me pergunto quem teria sido capaz de escrever desse jeito?”. Um das cenas do livro na qual Hervine aparece ecoa o texto de Delabarre: “Eu estava bem na ponta, o mais perto do mar, tendo diante de mim apenas uma queridinha toda bonita, Hervine Magon, que ria de prazer e chorava de medo”.

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