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Tempo Morto é a coluna de Mayara Dionizio dedicada a pensar a subversão e a vagabundagem, iniciando pela figura suplementada do Lázaro bíblico, cruzando fronteiras entre vida e morte, entre o conceito e a indefinição, ressuscitando para o fora. Tempo Morto é um testemunho profano das vagabondagens de Lázaro e de outros desviantes do tempo pelo acontecimento, pelo imediato, pelo inefável e a sua eterna metamorfose no aberto.
Mayara Dionizio é escritora, filósofa e tradutora. Doutora em Filosofia (UFPR) e em Littérature et Civilisation Française (UPJV-França), autora do livro "Antonin Artaud: o instante intermitente" (2020), pesquisa e escreve sobre as relações entre comunidade, vagabundagem, antinomia na linguagem e suplementaridade.
Adão assassino
Mayara Dionizio
“O que pode um autor? Primeiro, tudo: ele está agrilhoado, a escravidão o pressiona, mas, se ele encontrar, para escrever, alguns momentos de liberdade, ei-lo livre para criar um mundo sem escravo, um mundo onde o escravo, agora senhor, instala a nova lei; assim, escrevendo, o homem acorrentado obtém imediatamente a liberdade para ele e para o mundo; nega tudo que ele é para se tornar tudo que não é. Nesse sentido a sua obra é um ato prodigioso, a maior e a mais importante que existe”.
Maurice Blanchot, A parte do fogo, 2011, p. 324-325.
Sim, o escritor nega o mundo por meio da liberdade da escrita. Afora isso, o escritor não nega nada: (1) se alguém lhe dá liberdade para escrever, prontamente o escritor nega a própria noção de liberdade, se volta contra ela e cria um ideal de liberdade abstrato; (2) portanto, o escritor nega quaisquer realidade e ideia contidas na noção de liberdade que já tenham sido estipuladas como tal, pois ele quer inventar a sua liberdade; (3) assim, ao negar a liberdade existente para construir outra, ele acaba sendo negado pela liberdade que passa a se manifestar na obra; (4) de tanto negar, a liberdade encontra a sua impotência de negação na obra. Isto é, a obra não é um ato negativo, pois ela realiza tão somente a impotência da negação, a impotência da liberdade de intervir, de agir no mundo. A liberdade agora é impotência, se tornando um ideal “acima do tempo, vazio e inacessível”, pois ela não consegue encarnar, se tornar real.
É assim que o escritor deve ser reconhecido como senhor de apenas tudo, “apenas” porque opera no imaginário, que, por sua vez, é a totalidade das coisas do mundo, é o mundo em sua totalidade. Quando penso no mundo, penso em sua unidade; escapa a mim o fragmentário das realidades particulares e só penso a totalidade deste mundo. Isso implica, precisamente, a realidade que é a imaginação, uma realidade que, de tão total, não contempla a irrealidade de cada particularidade. Nesse sentido, o escritor é aquele que pode conduzir as pessoas à inação por meio do imaginário, para viverem o mundo dado, uma vida outra que não a que vivem. Ele assume, então, a responsabilidade pela destruição da ação, na medida em que coloca os seres em contato com a realidade do imaginário; o contrário seria colocar as pessoas em contato com o irreal, com a ausência sem a realização dessa ausência. A realização da ausência é propriamente a literatura; é a realização da ilusão que existe no ato da linguagem, da palavra que, ao nomear as coisas a partir da realidade imaginária — crendo que está criando algo novo —, está mesmo é nomeando a sua ausência, o nada. Agora, exposta, a ficção que é a linguagem.
Falamos! Necessariamente a nossa fala nos tranquiliza diante do mundo, visto que nele encontramos uma infinidade de coisas e queremos que os outros saibam a que nos referimos, então as nomeamos. Assim, realiza-se a distinção epocal na relação humana com a palavra: o diferente manuseio da linguagem entre o ser primitivo e o ser civilizado. O ser humano primitivo tinha conhecimento a respeito do poder que a linguagem lhe dava sobre as coisas do mundo e temia tal poder, pois com ele perderia as relações completas com as coisas, isto é, criaria uma estranheza entre si e o mundo se se relacionasse com ele por meio da linguagem. Assim, o nome permanece na coisa, em sua intimidade. À medida que o humano vai se tornando cada vez mais civilizado, mais determinado socialmente, ele passa a manusear as palavras com mais crueza. Dessa forma, as palavras que são ditas perdem a relação com o que designam, e, como esperado, isso não é um problema, uma vez que essa é a função da linguagem para esse ser civilizado: a racionalização do ser para que a vida ordinária funcione.
Substantivo: aquilo que evidencia, que traz à luz a substância, ou ainda, a essência da coisa. (1) Ao nos organizarmos em sociedade sob a égide do progresso como forma de nos relacionarmos com o mundo, com as coisas do mundo, perdemos a busca pela essência das coisas, e a palavra se torna cada vez mais distanciada daquilo que nomeia; (2) quando substantivamos o mundo, trazemos à luz a sua ausência, aquilo que ele não é — sua essência é inacessível. Pensemos em Adão, no inicio do mundo e da linguagem. Um Adão qualquer, ao ver aquilo que não é ele, aquela que não é ele e que não é determinada em gênero (“aquela”: pessoa do sexo feminino que não se pode nomear), a nomeia “mulher”.
Agora, tal qualquer, tal Adão, acredita que tem o ser dessa mulher, ou melhor, dessa que é a mulher que permitiu que ele captasse o ser mulher por meio de sua existência, por meio de sua aparição. Acontece que, ao nomeá-la, perdeu-se no caminho o que dela era real: um corpo universalmente singular — sim, pois a sua forma corpórea é universal, mas as especificidades de seu corpo são singulares, tal como o corpo de todas as pessoas designadas “mulheres” —, com determinado formato, com cicatrizes que contam a história de sua experiência, cabelos de determinada cor, bem como tudo aquilo que a faz única. O que resta, então? A ausência, a supressão daquilo que era o ser — afinal, o não-ser. O ser se torna uma ideia. Friedrich Hegel entendia que para compreender é necessário um assassinato. Sim, para o filósofo, a compreensão equivale a um assassinato. É essa “compreensão” que Hegel afirma nos ensaios reunidos sob o título Sistema de 1803-1804:
“O primeiro ato, pelo qual Adão constituiu sua dominação sobre os animais, consiste em que ele lhes conferiu nomes, isto é, aniquilou-os como entes e os tornou para si ideais. O signo era antes, enquanto designar [das Zeichen], um nome, o qual é para si ainda algo outro que não um nome, mesmo uma coisa, e o designado [das Bezeichnete] tinha um signo exterior a si. Ele não foi posto como um suspenso, da mesma maneira o signo não tem nele mesmo seu significado, mas apenas no sujeito: precisava-se ainda saber em particular o que ele pretendia dizer com aquilo. O nome é, entretanto, em si, permanecendo, sem a coisa e o sujeito. No nome a realidade sendo-para-si do signo está aniquilada”.
Ou seja, o sentido da palavra exige, no preâmbulo de sua realização, a aniquilação do ser das coisas. Inverte-se, então, a posição de criador e criatura: se Deus criou o mundo, Adão, por sua vez, aniquila esse primeiro mundo e cria o seu próprio mundo quando nomeia as coisas existentes. Deus criou o mundo conforme o seu desejo; Adão, suprimindo esse mundo, criou um que fez sentido para ele. Assim, nessa morte que é a supressão do ser pela palavra, Adão designou o destino da comunicação, das relações entre os humanos e o mundo: a aproximação das coisas do mundo só seria possível por meio da conferência de um sentido a elas. Aproximação totalmente estranhada, estritamente distanciada. Por isso o ser primitivo preferiu as relações às palavras; ele sabia do risco que corria ao lidar com tal feitiço: iludir as coisas quanto ao que elas são, deixar escapar delas o espírito (ser) somente pela ambição da dominação. A linguagem passou a determinar as relações, isto é, as relações foram fissuradas pela alteridade, pela cisão entre mim e o grande Outro . A morte se fez presente.
Mulher: substantivo feminino que designa um ser humano do sexo feminino, que, por sua vez, é dotado de inteligência e faz uso da linguagem articulada; bípede, mamífero que tem como característica a posição ereta e o peso considerável do crânio. A linguagem, de fato, não assassina a mulher, mas a sua morte por vir é anunciada nessa definição substantiva. Ora, se eu posso, ao nomear alguém, substituir esse alguém por uma palavra, isso significa que a pessoa pode ser distanciada do que ela é, de quem ela é em suas singularidades. Ou seja, a sua presença, assim como a sua existência, é subtraída pela palavra; a palavra é aquilo que antecipa a sua destruição, a sua morte, pois é o primeiro distanciamento da presença: “Mas, se essa mulher não fosse realmente capaz de morrer, se ela não estivesse a cada momento de sua vida ameaçada de morte, ligada e unida a ela por um laço de essência, eu não poderia cumprir essa negação ideal, esse assassinato diferido que é a minha linguagem”. Quando falo “mulher”, quando falo “aquela”, sou Adão, suplemento Adão. Quando se fala “mulher”, quando se fala “aquela”, se opera uma ressurreição do ser na e para a morte presente em todas as palavras que são a vida da morte das coisas.
Ao falar, é a morte que fala. A palavra, nesse sentido, é o aviso incessante do acontecimento último em sua possibilidade de realização a qualquer instante; qualquer instante pode ser o de minha morte. Portanto, entre mim e o Outro há precisamente toda a distância que se concretiza na ausência de nós mesmos traduzida em palavras — há toda a condição de relação, pois é por essa separação entre nós que se dá nossa busca de comunicação, de entendimento. Só falo ao Outro e Outrem só me dirige a palavra porque estamos para sempre separados. A união entre os seres é pela morte como fim possível. A união é pela morte que se realiza entre nós quando nos comunicamos e nos unimos nessa separação infinita. Afinal, é somente pela morte que podemos encontrar algum sentido; somente matando as coisas é que encontramos a única possibilidade de sentido.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Tradução: Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Os Fragmentos 19 e 20 dos Systementwürfe 1803/1804. Tradução e introdução: Erick Lima. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, v. 3, n. 1, p. 194-217, 2015.
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