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alguns laços de imagia - parte I

Atualizado: 30 de jun. de 2021


Colagem por Alex Peguinelli


A Fresta é uma coluna — uma colina — de periodicidade semanal dedicada a publicação de textos realizados no seio do movimento surrealista e arredores. Por Natan Schäfer



 

O texto abaixo foi publicado por Robert Guyon (Lyon, 1941) no segundo número da revista L’Archibras, em outubro de 1967. Nesta primeira parte, Guyon discute a imagem e o pensamento analógico, conceitos que colocam em primeiro plano o potencial transformativo e libertador da poesia.


 

A civilização multiplicou de tal forma as barragens no rio cujo próprio sentido do lento escoar era simbolizar a calma e a serenidade das meditações poéticas, que são peneiradas somente as imagens que juraram fidelidade ao fluído da sensibilidade comum. A aventura decisiva encarnada por este século teria sido de fazer rosnar nos ouvidos as fontes a uma velocidade muito mais mágica do que a devorante languidez transformada em lamaçal e abandonada aos versejadores de araque. Há muito tempo penso que tudo que em poesia poderia gabar-se de ser prospectivo seria efetuado à contracorrente. Os poetas vão adorar ficar ao pé das cachoeiras durante muito tempo, nem um pouco incomodados se por anos ou décadas — pouco importa — elas deixarem suas cortinas e borlas caírem sobre o mistério poético, tornando-o perceptível somente por raros furos até o dilaceramento final. O conciliábulo das águas já não é mais tão mirrado. Os picos cada vez mais altos e as águas cada vez mais vivas atestam que o destino humano ainda não foi decidido, que seria preciso golpear incansavelmente os dados contra os pedregulhos cobertos de musgo e que em todo caso este destino está longe de receber o peso dos lençóis de óleo que contaminam o fundo dos rios. Destino flutuante, desejo-salto mortal dos salmões. Entre estes dois pólos nosso olhar fez um movimento sem volta em direção à montante. A que nível do declive irão juntar-se o desejo e o destino, tão inseparáveis quanto os dois tempos da respiração? Antes mesmo de inscrever-se no próprio coração das realizações humanas, esta interrogação prescreve à imagem o curso de uma perigosa navegação. Isso é testemunhado por poetas de todas as instâncias que, contando a partir dos Manifestos do surrealismo, não deixaram de convocar “a uma luxúria cada vez maior”[1]. Aliás é difícil ver como poderia ser diferente, uma vez que, como a poesia deste tempo está determinada a agir sobre nosso destino, ela passa a ser diretamente do interesse das rodas delicadas do desejo. Além disso, neste terreno móvel por essência, à mercê das piores emboscadas, a vocação da imagem é precisamente garantir-se contra tudo aquilo que a ameaça de imobilizá-la. Há aí uma semelhança de perspectivas, a qual o surrealismo não poderia deixar de perceber e que, de fato, pela primeira vez ele acentuou, mas de uma vez por todas. Os desenvolvimentos do funcionamento real do pensamento permitiram obviar os becos sem saída da estética e da moral. A partir do momento em que os desejos e o futuro humano confluem nas imagens, o que elas nos intimam a esperar dos desenvolvimentos do funcionamento real da analogia? A operação captadora da imagem revela a luz pura no interior dos objetos que ela precipita subitamente um contra o outro, uma luz tal que através de suas cristalizações apazigua o velho ódio dos poetas contra “o mau vidraceiro”[2]. Porém acredito que a cólera deles só é passageiramente acalmada. Acredito que ela não está longe de renascer se de repente decidimos nos satisfazermos com estas cristalizações, com estas exclamações de beleza, passando por exemplo a tomá-las por mais do que elas são: um mirante a partir de onde espiar seu caráter revelador. Quero dizer que, uma vez que a imagem é devolvida a este papel primordial de reconciliar os contrários, cabe questionar-se as distâncias que seus dois polos precisaram vencer para granjear-nos tão feliz reconciliação. Atendendo à convocação do poeta, “a garrafa d’água pura” e “o anular do arcanjo” não estenderam atrás de si, do fundo precioso de onde Saint-Pol-Roux tirou-as, uma linha de chamada toda aureolada[3]? “Teria ela (a garrafa) absorvido a luz plenária da vivenda para brilhar assim, como que caída do anular de um arcanjo?”[4]? Não há dúvida que é graças a presença mais ou menos “encadeada” de uma determinada linha de chamada que cada um dos elementos da imagem deve, mesmo em caso de fusão violenta, exercer um sobre o outro uma espécie de poder de suspensão, de poder de reserva, que nos dá condições para avaliar a que preço, e depois de superar quantos obstáculos, pode operar-se sua junção, com isso contribuindo enormemente para a potência de choque do conjunto. A revelação da imagem então não contaria mais somente com a unidade revelada, mas com a situação privilegiada de seus termos, que se comportam uns com relação aos outros tal como refletores, tanto que por exemplo parece-me verdadeiro que na tela “A incerteza do poeta”, de Giorgio de Chirico, o busto de mulher ilumina o cacho de bananas e vice-versa. Durante séculos os poetas foram vistos como que atiçando para si mesmos em grande segredo a lareira que os anima. Eles satisfaziam-se com uma honesta tradução de sua sensibilidade. Mas uma vez alcançado o porto da folha preenchida, geralmente mudavam de ideia e eximiam-se de ser os re-tradutores dos caminhos percorridos. Vimos até mesmo empreitadas que há pouco eram ardentes extraviando-se em direção a um utópico “interior de segurança” qualquer[5]. Será que a canoazinha vai engolfar-se sob um certo ângulo de visão, ela que é o denominador comum do fundamento e do pináculo, do implícito e do formal, e que mal e mal tida como única vê-se abandonada ao seu destino desconhecido? E se a imagem desemboca num aconteça-o-que-acontecer, não há aí uma lacuna em seu princípio de equivalência? Por mais fulgurante que seja o efeito, para que sua dominação seja estendida é preciso que o poeta se responsabilize por ele. Pois confrontada com o que a precede e a sucede, ainda é uma imagem pela qual exalta-se “a significação” do conjunto, que é precisamente o poema. Garanto que Breton e Péret fizeram resplandecer seu desvendamento como ninguém, não somente porque deliberaram magistralmente sobre a imagem, mas também porque mostraram que sua luminosidade de face pressupunha um perfil. Eleva-se então um hino que vem suspender estrelas frágeis como o pássaro-lira ao toque no corpo da mulher, e esta faz-lhes cintilar uma de cada vez segundo às fases de sua suntuosa nudez: Minha mulher com barriga de desdobramento do leque dos dias Com barriga de garra gigante Minha mulher com dorso de pássaro que foge vertical Com dorso de mercúrio Com dorso de luz Mas já não seria ela quem estava presente nos planos alternados dos dois pontos cardeais? Na borda da nuvem agarra-se uma mulher, na borda das ilhas uma mulher agarra-se como nas paredes altas… Baudelaire, de quem ficaram ocultas poucas maneiras de manobrar-se o mecanismo analógico, Baudelaire na verdade apoderou-se desta tocha e ritmou o ensolarar gradual do verdadeiro rosto das coisas, de modo que depois dele jamais poderemos esquecê-lo. Sempre admirei esta frase d’O convite à viagem, que condensa, ao que me parece, todo espírito disto que me dedico a sustentar: Não serias enquadrado por tua analogia e não poderias mirar-te, para falar como os místicos, na tua própria correspondência? (com as duas variantes propostas, que sublinham com ainda mais brilho o jogo de reflexos). A grande originalidade deste modo de dizer emana de uma troca que de nenhum modo é orientada de uma vez por todas; de uma troca entre dois polos, sendo que um deles é um espelho que tem a propriedade de reverberar muitas outras trocas. O encontro do sujeito e de seus duplos é certamente cumprido graças a um surpreendente atalho, mas ao mesmo tempo faz soprar em nossa testa o vento de um longo percurso. O contexto pode ser compreendido como uma tentativa de retenção dos “tesouros do mundo” em torno da mulher, estando bem entendido que se um tal acoplamento jamais será de fato possível, ao menos ele torna sensível o valor da viagem ao encadear a amada ao mundo com uma poeira de sóis minúsculos. Posteriormente, Baudelaire pode transgredir a bela ordenação da revelação central para provocar mais nitidamente um curto-circuito no discurso. Nós sabemos do que se trata: Estes tesouros, estes móveis, estes luxos, esta ordem, estes perfumes, estas flores milagrosas, é você. Trata-se de dar ao elos intermediários da imagem (Malcolm de Chazal diria aos corpos de eclipse) chance de descobrirem-se, de modo que na confissão final seja exprimida a participação ativa das paisagens utópicas na glorificação da amada; vasta cumplicidade que permite afirmar que quando o poeta confia que seus “pensamentos enriquecidos… voltam do infinito em direção à” ela, na realidade eles jamais a deixaram. [continua] [1] Breton: Signe ascendant. [nota do autor; refere-se ao texto Signo ascendente, traduzido e publicado por nós nesta coluna]. [2] Nota do tradutor: vide “O mau vidraceiro”, nos Pequenos poemas em prosa (1869), de Charles Baudelaire. [3] N.do t.: Em geometria descritiva a linha de chamada ou linha de projeção é a denominação do segmento que une duas projeções de um ponto. [4] “A garrafa de água pura” in: Les reposoirs de la procession. [5] De uma dedicatória de Char ao Marteau sans maître: “E o sonho refresca…”.

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