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atrás de nós, o dia seguinte

Atualizado: 24 de jun. de 2021





A Fresta é uma coluna — uma colina — de periodicidade semanal dedicada a publicação de textos realizados no seio do movimento surrealista e arredores. Por Natan Schäfer




Texto publicado originalmente em francês na página LundiMatin em 4 de maio de 2020. Joël Gayraud (Paris, 1953) faz parte do grupo surrealista de Paris. É tradutor de Ovídio, Erasmo, Leopardi, Straparole, Pavese e Agamben e autor, dentre outros, de Pálpebra auricular e A pele da sombra, ambos pela editora José Corti. Sua obra é inédita no Brasil.


I Todo mundo fala do “dia seguinte”. No imaginário confinado atual ele tomou o lugar há muito tempo vago da Grande Noite ou do amanhã há de ser outro dia. Mas o dia seguinte já está longe de nós. O dia seguinte é o dia em que seguiu-se ao anúncio de confinamento em diversos países. Foi o dia a mais, aquele que jamais deveria ter nascido. II Neste dia o horizonte histórico, que um ano de crises sociais começava a reiniciar, não foi simplesmente fechado. Ele foi brutalmente trancafiado, sem que um tiro fosse disparado, nenhum golpe de estado proclamado. Jamais tamanha massa humana foi encarcerada — mais da metade da população mundial — num espaço de tempo tão curto. III Em poucos horas passamos do “está tudo bem” ao “vai de mal a pior”. O princípio de desenvoltura que tão formosamente serviu à economia de mercado a ponto de transformar o planeta numa imensa esterqueira desapareceu como que por magia diante do princípio de responsabilidade. Mas na verdade todos cederam à chantagem da sobrevivência. E, justamente por isso, todos tornarem-se irresponsáveis de si. Desde então, nada mais de futuro, nada mais de escapatória possível. No universo autista do espetáculo, a vitória aparente do princípio de responsabilidade significa a ruína real do princípio de esperança. IV A democracia, que sobrevive somente no pútrido ritual das eleições, recebe o golpe de misericórdia sem que ninguém ou quase ninguém tenha nada a dizer. E com ela, duas de suas liberdades até pouco tempo atrás tidas como fundamentais, a saber: a liberdade de ir e vir sem restrições nem condições e a liberdade de nos reunirmos com quem bem entendermos. O que acaba de acontecer é nossa transformação irreversível de sujeitos políticos ilusórios em autêntico gado biopolítico. Daqui para a frente, aqueles que acreditavam serem pessoas, ou seja indivíduos, não passaram de corpos. Estão aí numerados, registrados, vigiados, rastreados, localizados por um bom tempo. Neste mesmo golpe a velha política desapareceu, substituída pela gestão da sobrevivência. Não lamentaremos o desaparecimento. V Que fique claro: ninguém poderia negar a realidade do perigo nem a necessidade de acabar com a epidemia e de salvar o maior número possível de vidas. Mas a comunidade humana bem que poderia ter agido pelos seus próprios meios, sem entregar sua saúde nas mãos do Estado. Aliás, foi o que fizeram os zapatistas dos Chiapas diante do descaso apresentado pelo Estado mexicano e sua manifesta negligência. VI Foi somente o movimento de trocas mercantis, não de morcegos ou pangolins, que transmitiu o vírus. Estes bravos animais, ainda admitindo que sejam o vetor, não são a causa material da epidemia, não são sua causa eficiente. Conhecemos as razões de sua propagação tão rápida: os inúmeros deslocamentos aéreos, causados quase sempre por pretextos tão fúteis quando o trabalho ou o consumismo turístico, inversão lúgubre da viagem. Em seguida, a epidemia seguiu alegremente seu curso nos purgatórios climatizados: navios de guerra ou cruzeiros, torres de escritórios, casas de repouso e até mesmo hospitais. E agora, no fim da cadeia, afeta as classes pobres que não voam de avião, não viajam em cruzeiros, mas que apodrecem nas prisões ou vegetam na periferia, submetidas a tudo que é nocivo, e que certamente serão responsáveis por pagar o alto preço da crise. A pandemia não tem nada de desastre natural, ela é fruto de uma relação social, que é a economia de mercado, há muito tempo condenada e a qual já está mais do que na hora de abolir-se. VII O dia seguinte inaugurou a primeira distopia mundial da história. Até agora as distopias, mesmo visando a dominação universal, como a Alemanha nazista, sempre viram sua expansão limitada primeiramente pelo espaço e depois pelo tempo. Esta que assumiu seu lugar tem vocação para durar, ainda mais porque seu primeiro ato consistiu em modificar brutalmente as condições de sensibilidade: a distância física atrofia o tato, o mais sensual dos sentidos, e a primazia quase total das telas mutila nossa percepção das três dimensões do espaço. É algo a se temer que mesmo depois de vencida a epidemia o comportamento humano se encontre radicalmente alterado, e por um bom tempo. VIII Desde a segunda guerra mundial, o capitalismo mudou seu paradigma: ele cibernetizou-se. Isto é, ele arranjou múltiplos loops de feedback que lhe permitiram amortecer crises econômicas e sociais. Ele alterna fases de economia estatal com fases de economia liberal no interior de um mesmo dispositivo regulador. Ao criticar com muito afinco o neoliberalismo erramos o alvo, que é o capitalismo em seus dois aspectos indissociáveis: liberal na iniciativa econômica, estatal no suporte à economia. Para reiniciar a máquina temporariamente parada, num instante foram encontrados os bilhões necessários. Os nostálgicos do keynesianismo e dos Trinta Gloriosos não retornaram continuam abismados. Eles esqueceram que o Estado é a melhor garantia do sistema. Com o triunfo da distopia cibernética, aí estão eles bem servidos. IX A restrição aos limites residenciais imposta pelo confinamento não passa de um primeiro momento de um nova Mobilização Total. Fomos imobilizados para sermos mobilizados mais eficientemente. A mobilização já começou com o trabalho a distância, que permite economizar no capital fixo, como os escritórios e as máquinas comunicantes, e igualmente no capital variável com a transformação dos assalariados em empreendedores de si mesmos, remunerados de acordo com sua rentabilidade. Esta mobilização seguirá seu curso atingindo as grandes causas ecológicas planetárias, um terreno vasto no jogo por um neocapitalismo verde, e com o álibi de estar sempre buscando mais eficácia, isto é, sempre mais lucros graças a uma gestão otimizada da penúria da penúria e do desastre. X Os que são a favor de um retorno à normalidade compreenderam que não acontecerá nada, e se preocupam tanto quanto esfregam as mãos. É preciso dizer que nestes últimos tempos para eles a normalidade não era nada prazerosa: os colete-amarelos ocupando os cruzamentos e enchendo as ruas na França, as barricadas no Chile, o libaneses se insurgindo. Alguns imaginam que agora a situação se inverteu a seu favor e que a longo prazo poderão controlá-la. No entanto, eles governaram às cegas até o momento, mostrando a que ponto eram incapazes de prever o que quer que seja. Não viram nada vindo, nem a cólera dos homens, nem os caprichos mortais da economia. Jamais previram nada, privados que são de qualquer visão histórica. Também para eles o horizonte se fecha. XI Quanto àqueles que na sua ingênua consciência reformista acreditam que poderemos, assim que as condições normais forem recuperadas, “não fazer de novo como antes”, estão redondamente enganados. Pois não haverá mais normalidade restaurada. Ela vai desaparecer na doce neblina das ilusões perdidas. Evidentemente se fará “como antes”, e depois ainda pior que antes. XII Estas considerações apenas esboçam o quadro do momento que nos contém, traçado a partir de suas tendências gerais, e não se tratam de modo algum do deciframento de um plano orquestrado pelos dirigentes mundiais. A distopia que se instaura não é o produto de um complô urdido por algum governo secreto, mas procede de um momento contingente de racionalização do capitalismo, que não vai suprimir por isso sua irracionalidade constitutiva. As múltiplas maneiras, acordadas de improviso e empregadas pelo Estados para responder à epidemia fornecem uma prova gritante disso. Suas divergências, suas mentiras, suas incoerências, suas deficiências manifestas mostram ao contrário sobre que bases frágeis está construída a distopia cibernética que pretender reger sob todos os aspectos o uso de nossas vidas. Talvez será no momento em que ela se acreditará toda-poderosa justamente quando ela estará mais vulnerável. Mas ainda é preciso que o desejo de liberdade, de igualdade e de justiça seja vasto e enraizado o suficiente para congregar nossas forças. Se nós não reabrirmos a fresta utópica, viveremos perpetuamente no dia seguinte.

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