A Fresta é uma coluna — uma colina — de periodicidade semanal dedicada a publicação de textos realizados no seio do movimento surrealista e arredores, de curadoria de Natan Schäfer.
No final do verão de 1932, Alberto Giacometti (1901 - 1966) começa a escultura O palácio às quatro horas da manhã (cuja fotografia observamos acima), a qual será concluída no início do outono do mesmo ano e da qual publicará uma fotografia acompanhada de um texto no quarto número da revista Minotaure. O texto que traduzimos e apresentamos hoje pela primeira vez em português nest’A Fresta, foi publicado no número 5 da mesma revista, em maio de 1933, dando continuidade aos mistérios palacianos e desejantes do artista suíço.
Cumpre notar que os “palácios palácios!” constituem um signo importante para o movimento surrealista, o qual emerge também no Rei Pescador, peça de Julien Gracq associada ao mito do Santo Graal; no Inglês descrito no castelo fechado, romance de linhagem sadeana escrito por André Pieyre de Mandiargues; no Palácio ideal, obra erigida pelo Facteur Cheval a partir de seus sonhos; no castelo de vidro do Amor louco, no qual seu autor André Breton sonha em refugiar-se com seus amigos; e mesmo na Interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud, já que ali ele afirma que o sonho é “a interpretação dos sonhos é a via regia [estrada real] para o conhecimento do inconsciente na vida psíquica”[1], de modo que seria de se esperar lá encontrar um palácio, talvez o mesmo que Alice encontra no País das Maravilhas ou aquele que se ergue misteriosamente em meios às águas e nuvens roxas na terceira temporada de Twin Peaks, de David Lynch.
Aliás, são muito curiosos os vários vasos comunicantes que se estabelecem entre este texto de Alberto Giacometti e a obra cinematográfica de David Lynch. Estes são representados por imagens de topoi como a sala de paredes vermelhas, piso xadrez e colunas, a qual remete ao Black Lodge, assim como a misteriosa esfera e as mulheres lânguidas e extáticas, que por sua vez associam-se às visões radicais da infância.
Com isso, observamos que, em meio aos diversos modos de transmissão do movimento surrealista, alguns são tácitos e eclodem graças aos balés do acaso objetivo, que subvertem a um só tempo o encadeamento lógico e o sequenciamento diacrônico, rumo à torre mais alta do palácio — o farol.
Carvão-capim[2]
Rodopio no vazio e olho o espaço e os astros em pleno meio-dia, correndo através da prata líquida que me rodeia, e a cabeça de Bianca que me olha levemente reclinada no eco de sua voz e os passos de plumas perto da parede vermelha em ruínas.
Volto às construções que me divertem e que vivem na sua surrealidade; um belo palácio; o piso de dados brancos com pontas negras e vermelhas sobre os quais caminhamos, as colunas em girândolas, o teto no ar que ri e os precisos mecanismos bonitos que não servem para nada.
Tateando, procuro agarrar no vazio o fio branco invisível do maravilhoso que vibra e do qual escapam fatos e sonhos fazendo barulho de riacho sobre pequenos seixos preciosos e vivos.
Ele dá vida à vida e fazem-se e seguem-se alternativamente os jogos luminosos das agulhas e dos dados rodopiando, e a gota de sangue na pele de leite, mas um grito agudo ergue-se de repente, fazendo vibrar o ar e tremer a terra branca.
A vida inteira na bola maravilhosa que nos envolve e brilha ao rodopiar perto do jato
d’água.
Busco as mulheres que caminham de leve, as de rosto brunido que cantam, mudas, a cabeça pendendo um pouco, as mesmas que existiam no menino pequeno que, todo vestido com roupas novas, atravessava um prado em um espaço onde o tempo esquecia-se da hora; ele fazia um ponto e olhava para dentro e para fora tantas maravilhas. Ah! palácios palácios!
1 Nota do tradutor: tradução de Paulo César de Souza (Companhia das Letras, 2019).
2 Nota do t.: em francês Charbon d’herbe, semanticamente muito próximo do título escolhido por Guilherme Gontijo Flores para uma de suas coletâneas de poemas, o qual adotamos deliberada e intertextualmente nesta tradução tradução.
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