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ensaio de flamabilidade




É um ritual. Mortuário, gangrenoso ritual. Andando nas ruas e vendo os corpos duros do frio vejo como objeto inflamável deste estranho sacrifício. A lepra do fogo estima aquela pele, ela canta um segredo penetrador, convidativo… A epiderme do esquecido é o ninho onde se deitam fanáticas línguas de incêndio. A ossada da vida urra no ardor, os piolhos de chama roem, a casa arde. Sobre a nuca surrada da cultura, parasitas vivazes, cozinhando sua janta iluminados por um canto cego lambem travessos as matrizes de tudo. Tudo que tudo seria, na combustão do horror, o fogo-fátuo rosna de uma bolha de cancro. Esta miséria esplendorosa de um ritual da morte, exercendo o cataclisma em exceção permanente, há quanto tempo arde essa casa? Há quanto tempo essa densa nuvem que atinge o céu, guardando a morte como uma castidade impiedosa, morde desesperada o possível?


A vida pelo fogo é uma língua antiga, do Cerco às chamas de cada imagem da tirania, nos esfregamos na pólvora, abrasamos o ranger dos nossos dentes com o pó do resto do mundo, chapiscamos palavra por palavra ameaçadora. O preto do final é bonito, ele vem se deitar conosco nas noites inacabáveis, é da saliva torta do fogo que brindamos os movimentos de nossa trincheira, movimentos libidinosos de um amor profano pela vida, rastejando na terra insone como salamandras, com a pele grossa, vivendo na ranhura.


Mas, o que é esse fogo inimigo? Que sobe ao céu queimando nossa memória em toda sua flamabilidade. O que é esse rosto delineado nas costas da mão que cobre a cara de medo? Para quem é o sacrifício roubado de tudo que criamos, se tudo que criamos agora toma parte da dizimação. Um curto circuito é uma dizimação, sagrada e operante, da felicidade dos vencedores da história. Dizimados, nossos restos pendurados em cada esquina do fim, prometemos a vingança dentro do porão, sacudindo de frio nos esgotos, guardando com os olhos molhados ao espiar pelas frestas e buracos na calçada. É da saliva do fogo que brindamos o açoite que pretende ser o fim de todos nós e é no pão da revanche que brota o gérmen maníaco traçando todas as nossas perdas. Ao contrário de um bandeirante, o fogo que queima nos nossos corpos nunca lascou um cílio, nunca depredou um membro, o fogo dos nossos corpos guarda seu lugar na nossa fila.


“Pra virar cinza

Minha brasa demora”.


Fabiana Gibim, 30/07/2021.



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