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entrevista com Leonora Carrington

Atualizado: 29 de jun. de 2021



Leonora Carrington. And Then We Saw the Daughter of the Minotaur. 1953


A Fresta é uma coluna — uma colina — de periodicidade semanal dedicada a publicação de textos realizados no seio do movimento surrealista e arredores, de curadoria de Natan Schäfer.

 

Leonora Carrington (1917 - 2011) é extraordinária. Pintora-escritora — cujas pinturas foram definidas por André Breton na Anthologie de l’humour noir como “sem dúvida das mais carregadas de ‘maravilhoso’ moderno” — é não somente umas das figuras da proa do movimento surrealista, como também das artes ocidentais em geral. Embora sua vida-e-obra se entrelacem numa aventura inconsútil e rigorosamente rebelde, recentemente Carrington vem sendo vítima dos mesmos reducionismos que rebaixaram Frida Kahlo ao estatuto de vedete decorativa.

Diante das recentes investidas que vem sofrendo, principalmente por parte de periódicos e demais mídias estadunidenses, achamos urgente dar lugar à voz da própria Leonora. Por isso, traduzimos e apresentamos n’A Fresta desta semana uma entrevista, publicada pela revista The Believer em novembro de 2012, na qual podemos ver como Leonora Carrington afirma-se magistralmente — e com isso seu não-conformismo —, ridicularizando o status quo e não poupando-o de seu écart absolu ou, como traduz Sergio Lima, esgar absoluto.

 

I. Jardim

The Believer: No que você está pensando agora?

Leonora Carrington: Não falo sobre isso.

BLVR: Se você não está trabalhando em nada, com o que você se ocupa?

LC: Sobreviver. Não estou bem. Estou pensando muito na morte.

BLVR: O que você pensa?

LC: Bom, quando você vai chegando perto da morte ela realmente tende a dominar todo o resto.

BLVR: Você conseguiu chegar numa aceitação?

LC: Não, não consegui. Alguém pode aceitar o totalmente desconhecido? [agitada] [1] Nós não sabemos nada sobre isso, mesmo que aconteça com todos, com todo mundo! Animais, vegetais, minerais — tudo morre. Como você pode reconciliar-se com algo sobre o qual você não sabe nada?

BLVR: Eu tenho isso de me interessar por mitos, pelo ritual, que você mesma também explorou. Não há um modelo para transferir o que foi coletado na vida interior, não é uma simples coleção de fatos biográficos. É difícil, já que não há palavras para o que eu estou buscando.

LC: Há coisas que são inefáveis. É por isso que temos arte.

II. CIGARRO

LC: Vou fazer isso. [Ela acende seu cigarro] Meu Deus, não sei quem ele é. [Um homem passa andando e parece estar olhando para seu quintal.]

BLVR: Estou trabalhando num projeto artístico na Cidade do México que é inspirado em seu trabalho. Parte do nosso projeto foi tentar vir até aqui e encontrar com você. Você agora está com a mesma idade [noventa e dois] que a heroína Marian Leatherby no seu romance The Hearing Trumpet. No momento, estou escrevendo um romance com uma heroína que também tem noventa e dois anos. Parece que foi a hora certa de vir até aqui encontrar-se com você.

LC: Eu nunca vou saber se estou com noventa e dois ou noventa e três. Nasci em 1917.

BLVR: O ano da Revolução Russa.

LC: Ah, sim, os russos. Nunca fui para a Rússia.

BLVR: Acho que você iria adorar.

LC: Tenho minhas dúvidas.

BLVR: Por que?

LC: Eu não acredito no comunismo.

BLVR: Eles jogaram fora o comunismo e abraçaram de peito aberto o capitalismo. Mas Moscou — a arquitetura é tão inusitada. É tão grande e ornamentada, faz você sentir-se pequena. Como se você estivesse num conto de fadas. A escala é enorme.

LC: Ah, é?

BLVR: Você tem muitos livros. Você lê muito?

LC: Agora não. Estou com um olho ruim.

BLVR: Você deve sentir falta de ler.

LC: Sim, acho que sinto.

BLVR: Por que você parou de escrever?

LC: Na verdade eu não parei. Só não negocio mais com editores.

BLVR: Você tem trabalhos não publicados?

LC: Provavelmente, sim.

III. SURREALISTAS

LC: O que você quer saber?

BLVR: Você está trabalhando em alguma coisa agora, ou pensando em algo agora?

LC: Não. Eu não estou bem. [Pausa] Muitos anos.

BLVR: Você disse que não está trabalhando em nada, mas se você se sentisse melhor, começaria alguma coisa? Você tem planos?

LC: Não. Eu não falo sobre meus planos. Especialmente se não sei quais eles são.

BLVR: Você sente que sabe menos à medida que envelhece, ou mais?

LC: Eu não sinto nada sobre coisa alguma. Não sabemos nada da morte. Eu penso que a humanidade sabe muito pouco. Não temos ideia. Há muitas teorias.

BLVR: Você estudou Zen Budismo no passado. Ajuda? Eles se deram conta de algo? LC: Não sou iluminada, logo não saberei. Você tem fogo?

BLVR: Pode pegar. [Entrega um isqueiro para Leonora] Você se lembra quando tinha trinta e poucos anos? Você sente que sabia mais então do que agora?

LC: Eu penso que nunca tive pretensão de saber. Ninguém jamais sabe o que é a morte.

BLVR: Pensamos menos nisso quando somos jovens.

LC: Você quer um cinzeiro?

BLVR: Pode deixar que eu alcanço, obrigada.

BLVR: Estou começando a pensar na morte. Um pouco mais.

LC: Bom, mesmo com tudo que você pensar, duvido que você vai descobrir muita coisa.

BLVR: Seu trabalho continua influente, e é singular o jeito como ele aborda a acumulação de diversos mitos e torna-os transmutáveis para o presente. As camadas da sua iconografia. Não importa quem você seja, há muitos caminhos para chegar ao seu trabalho.

LC: Bom, muitas coisas do que estão fazendo agora são uma espécie de simplificação.

BLVR: Você admira o trabalho de quem?

LC: Dos surrealistas. Duchamp, Max Ernst, Picasso. Mas para mim não vejo um porquê de discutir artes visuais. As pessoas podem pensar por si.

BLVR: Há um interesse no seu trabalho em parte porque estamos atualmente numa espécie de cultura sem mitos. Parte da minha atração por seu trabalho se dá por conta disso.

LC: A arte contemporânea tornou-se tão abstrata que é praticamente nada.

BLVR: Eu estou buscando mitos, rituais.

LC: Eu acho que o ritual tem de vir sozinho. Acho que você não pode procurar por ele. Onde você vai procurar?

BLVR: No interior, eu acho.

LC: Você não tem interesse em Budismo? Acho que eles são muito bons.

BLVR: O que atraiu você para o Budismo, uma vez que você não é engajada e que você não tem interesse em religião ou política?

LC: Um dito, que não é meu: “Forma é vazio e vazio é forma”.

BLVR: Como isso afetou seu trabalho?

LC: Fiquei esperando isso aparecer.

BLVR: Atualmente ficou fácil para mulheres artistas mostrarem seu trabalho, para exibirem-no e fazerem com que ele seja aceito. Não parece uma luta tão grande como foi para você. LC: Havia um tempo em que mulheres artistas eram totalmente invisíveis. Sempre existiram mulheres artistas, mas uma vez que as mulheres eram consideradas um animal inferior, não sabemos muito sobre elas.

BLVR: Os artistas homens davam apoio? Se eles tinham um olho bom, deveriam ter sabido reconhecer artistas mulheres.

LC: Alguns deles têm, não todos. Um deles uma vez disse, “Não existem artistas mulheres”. Então eu disse para ele, “Tudo que você tem de fazer é abrir a porta, descer o corredor e você vai ver a rua!”.

BLVR: Quem foi que disse isso?

LC: Não vou dizer. Não o vi desde então.

BLVR: Como a Segunda Guerra Mundial afetou seu trabalho?

LC: Temia ser capturada pelos nazistas. Foi um tempo aterrorizante. Não sabíamos que os nazistas iriam dominar o mundo. Eu vivia no sul da França e depois estive na Espanha por um tempo, mas eu estava numa clínica.

BLVR: Eu li sobre isso [em Down Below [2], livro de Leonora que a acadêmica Marina Warner denominou como um dos mais lúcidos relatos sobre enlouquecer]. Você nunca voltou para a Espanha?

LC: Não.

BLVR: Como você acha que sobreviveu naquele período na clínica?

LC: Eu não sei. Eu era jovem. Em plena saúde.

BLVR: A partir de Down Below sabemos que você desenha mapas. Sobre o que são seus mapas?

LC: Havia níveis na clínica. No topo estavam as pessoas consideradas loucas sem solução, e eu era uma delas. Depois me mudaram para uma cela privada. Eu fiquei sozinha ali, com um cuidador.

BLVR: Eles te davam medicação?

LC: Haviam essas injeções terríveis, graças às quais, por terror, você deixava de ficar louca — mais ou menos em teoria.

BLVR: Seu cuidador era um homem ou uma mulher?

LC: Era uma mulher, uma alemã apaixonada pelos nazistas. BLVR: Ela falava sobre isso?

LC: Não, porque eu não deixava.

BLVR: Você disse que não tem interesse em política.

LC: Bom, eu penso que quando há um grande número de seres humanos fazendo alguma coisa, começo a duvidar disso.

BLVR: Você é uma não-conformista.

LC: Exato. Nunca tive uma conexão muito próxima com política. Embora eu meio que gostasse dos anarquistas. Mas nunca participei.

BLVR: Ou de uma religião organizada.

LC: Bom, sou católica romana. Minha mãe era irlandesa, do sul, então, sim, eu fui colocada num convento. Depois de alguns meses, fui expulsa. Eles escreveram para meu pai dizendo, “Esta criança não colabora com os trabalhos, tampouco com as brincadeiras”.

BLVR: Quais são suas memórias deste tempo?

LC: Eu era miserável.

BLVR: Foi então que você começou a desenhar?

LC: Não, eu sempre desenhei.

BLVR: Quantos anos você tinha quando foi expulsa?

LC: Uns dez.

BLVR: E você tinha amigos?

LC: Nenhum! Eu era muito impopular.

BLVR: Por que?

LC: Porque eu não sou boa em nada. Não sei jogar hóquei. Eu não era boa em religião.

BLVR: Eu acho que as crianças são conformistas. Quando eles veem uma criança que não se adequa…

LC: Sim, você é impopular.

BLVR: Existiu um momento em que você sentiu que fazia parte de algo? E com quem isso se deu?

LC: Com os surrealistas.

BLVR: Você os procurou?

LC: A primeira vez que ouvi falar dos surrealistas foi a partir de minha mãe, que me deu um livro de Herbert Read [3]. Eu pensei, Ah! Isso eu entendo.

BLVR: Deve ter sido uma sensação incrível depois de tantos anos sentindo-se isolada. E então você encontrou os surrealistas e passou a fazer parte?

LC: Eu já era parte.

BLVR: Existiu algum ponto em que você sentiu que não estava se rebelando?

LC: Quando eu encontrei os surrealistas.

BLVR: E agora?

LC: Agora eu passei dos noventa e, portanto, estou pensando muito na minha idade e no que não posso mais fazer, e assim por diante.

BLVR: Existem dádivas que vêm com a perda, com a idade avançada?

LC: Não que eu saiba. [Risadas] O que estou fazendo agora é sobreviver. [Acende um cigarro] Estou viciada.

BLVR: Você fuma desde que estava no convento?

LC: Sim, mas escondida. Tinha um grande jardim e ficávamos escondidas debaixo dos arbustos.

BLVR: Como você conseguia cigarros no convento?

LC: Boa pergunta. Ao que parece davamos um jeito. Provavelmente eu os levava e escondia.

BLVR: Quando você está no convento, você dorme lá — não há pais?

LC: Você os vê uma vez a cada três meses, muito brevemente. Era terrível.

BLVR: E os seus irmãos?

LC: Eles foram para uma escola Jesuíta.

BLVR: E seus filhos, eles foram para a escola? Eles vivem aqui com você, certo?

LC: Sim. Meu marido [Emerico “Chiki” Weisz] era um fotojornalista no México. Ele tinha uma teoria de que se nós deixássemos o México ele seria colocado num campo de concentração. Ele era judeu e húngaro. Ele meio que desprezava o trabalho dele, que não é muito bom. Ele pensava que era só um trabalho.

BLVR: Era difícil isso? Você é tão realizada com seu trabalho, e ele —

LC: Que casamento não é difícil? Você que me diga.

BLVR: Sempre há algum tipo de conflito. Mas o de vocês durou por muito tempo [mais de cinquenta anos].

LC: Sim.

BLVR: Seu marido morreu recentemente. Qual era sua condição quando ele estava próximo ao fim? Ele estava falando?

LC: Ele só ficava sentado. Não falava.

BLVR: Nos seus anos de juventude, vocês conversavam? Vocês eram um casal comunicativo?

LC: Eu não lembro! Acho que não. Ele nunca falou muito. E eu não falo húngaro. Falávamos principalmente francês.

IV. ESTÚDIO

LC: Meu estúdio fica no andar de cima e é difícil para mim ir lá em cima agora [gestos indicando a sala em volta]. Estas são todas minhas pinturas, assim como os quadrinhos de terror. BLVR: Os quadrinhos de terror?

LC: [Ri] É o que chamo de histórias de detetive. Mas estou interessada em quem são os escritores recentes.

BLVR: Vamos ficar para mais uns cigarros?

LC: Ficar para mais um. [Acende um cigarro] Não gosto de ler mundos inventados. Gosto do real.

BLVR: Você tem o livro do Malcolm Gladwell Blink: The power of Thinking Without Thinking. LC: Até que é bem inteligente.

BLVR: Ele diz que as decisões mais importantes que tomamos na nossa vida acontecem sem que pensemos de modo algum nelas.

LC: Bom, não sei se isso é verdade.

BLVR: Ele tem outro livro sobre sorte — como pessoas felizes e bem-sucedidas chegam lá? Quando de sorte e quanto de trabalho tem nisso?

LC: Eu acho que tem mais sorte do que pensamos.

BLVR: Você pensa que as coisas são pré-determinadas?

LC: Não tenho ideia. Penso que algumas coisas acontecem porque a pessoa é um certo caminho.

BLVR: Você quer dizer porque você está aberta para as coisas?

LC: Eu acho que a única boa ideia que Hitler teve foi suicidar-se — se ele suicidou-se.

BLVR: Eu acho que você jamais consegue fugir da paisagem da sua infância. Existem coisas das quais você tem saudade?

LC: Gosto das estações do ano.

BLVR: Você foi para Paris ano passado para uma retrospectiva do seu trabalho, com noventa e um anos. Você pensa que algum dia vai voltar para a Inglaterra?

LC: Eu não sou profeta.

 
Leonora Carrington, Chiki, ton pays.
 

Notas: [1]: A observações entre colchetes e em itálico são da autora da entrevista. [2]: En bas (traduzido em inglês como Down Bellow) é um romance de Carrington, publicado em 1973 por Jean Schuster na coleção Désordre da editora Terrain Vague, de Eric Losfeld. [3]: Herbert Read foi um grande historiador da arte e um dos principais membros britânicos do movimento.


 

Tradução por Natan Schäfer

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