James Mecer Langston Hughes (01/02/1901- 22/05/1967), foi uma poeta, novelista, dramaturgo, colunista e ativista social nascido em Joplin, Missouri. Foi um dos grandes inovadores da jazz poetry e um dos principais representantes, junto a Zora Neale Hurston, Aaron Douglas e outros, do Renascimento do Harlem, um movimento artístico, político e intelectual centrado no bairro do Harlem, em Manhattan, que influenciou também escritores francófonos do Caribe e de África.
O Renascimento do Harlem foi um amplo movimento que tocou as artes, a religião e a moda. Com a ideia do “Novo Negro”, o movimento desafiou o racismo e os estereótipos raciais, promovendo uma política progressista e socialista, bem como a integração racial e social, através de uma nova consciência étnica, muito inspirada em W. E. B. Du Bois. Neste texto, Hughes traça comentários irônicos ao comportamento dos brancos no sul estadunidense. Tomando episódios de racismo explícito passados com ele mesmo, Hughes satiriza a falta de lógica das leis de Jim Crow, as leis estaduais e locais que impunham a segregação racial no sul do país. Publicado em Common Ground 4 (inverno de 1944), pp. 42-46
Ainda que negros deem risada das mesmas coisas que brancos estadunidenses, eles também riem por razões distintas relativas a diferentes assuntos.
Alguns incidentes advindos do Jim Crow, que eu experimentei pessoalmente, me divertiram mais do que me irritaram. Provavelmente, tanto quanto posso analisá-los, devido a seu próprio absurdo. Por exemplo, uma vez eu dirigia rumo ao sul, de Nova Iorque a Richmond. Por volta de uma hora abaixo de Washington, ficamos com sede e um de nós no carro sugeriu que parássemos em um estabelecimento à beira da estrada que vimos logo adiante. Sabíamos que não poderíamos comer ou beber na parte de dentro (uma vez que o Jim Crow é “legal” na Virgínia), mas eu tinha a intenção de comprar algumas garrafas de refrigerante para levá-las ao carro.
Quando cheguei à porta e pus a mão sobre a maçaneta a porta não abriu, ainda que eu visse um homem na parte de dentro. Puxei a porta mais uma vez e descobri, para minha surpresa, que o homem a segurava, gritando pela tela da porta: “O que você quer?”.
“Eu gostaria de alguns refrigerantes”, eu disse.
“Você pode tê-los pelo buraco”, ele respondeu.
“Que buraco?”, perguntei.
“Temos um buraco aberto para pretos, ali ao lado”, ele disse, enquanto continuava a segurar a porta fervorosamente, como se eu fosse um selvagem querendo matá-lo. Me dirigi para o lado do pequeno edifício e ali pude ver, de fato, um buraco aberto na parede pelo qual pessoas de cor eram servidas! Não comprei nada, mas tive que rir! Como evitar? Quase à sombra do Capitólio da democracia estadunidense, uma biboca de beira de estrada havia aberto um buraco em uma de suas paredes para servir negros. Uma pessoa de cor não podia nem mesmo entrar pela porta. Isso me pareceu absurdo ao ponto de ser um trecho de Alice no País das Maravilhas.
Uma outra vez em Savana, Georgia, eu tentava comprar uma cópia da edição de domingo do New York Times que consegui encontrar somente na estação ferroviária. Na sala de espera das pessoas de cor não havia nenhuma banca, então eu fui até a calçada e dei a volta em direção à sala de espera das pessoas brancas, onde comprei o Times sem nenhum incidente. Quando eu saí da estação, no entanto, um policial branco me parou, à porta, e disse “Você não pode entrar e sair por esta porta”.
“Mas não há bancas na sala de espera das pessoas de cor”, eu disse.
“Não dou a mínima para isso! Você não pode vir aqui!”, ele disse.
“O.K.”, eu respondi, “Estou indo embora agora”.
“Você não pode sair por essa porta também”, ele falou.
Ora, isto me intrigou, uma vez que não havia nenhum outro caminho a não ser os barracões dos vagões de trem. “Eu acabei de entrar por aí”, eu disse.
“Bem, mas você não pode sair por esse caminho. Pretos não podem usar aquela porta”, o policial disse.
“E como eu saio, então?”, eu perguntei.
“A única forma que vejo”, ele respondeu, de forma séria, “é andando pelos trilhos”.
Assim, para conseguir sair da estação de Savana com o New York Times, eu tive que atravessar os portões dos trens e seguir os trilhos até o cruzamento na rua. Eu jamais havia passado por algo tão absurdo na vida. A seriedade daquele policial e a estupidez elementar de estar à porta, mas não poder atravessá-la, me fizeram rir o dia todo. Eu cresci no Kansas, de modo que os absurdos do Jim Crow no Sul eram, então, novidades e inacreditavelmente pitorescos.
Uma vez, eu devia ter por volta de dezoito anos, eu ia da Cidade do México a Cleveland para ingressar na escola. Uma noite eu entrei no vagão-refeitório enquanto o trem ia em direção ao Norte, pelo Texas. Eu estava sentado sozinho quando um homem branco se sentou à minha frente. Eu olhei através da mesa e o vi me encarando, com um olhar de totalmente maravilhado. De repente ele foi tomado de sobressalto, como se tivesse tomado um tiro e gritou: “Ora! Você é um crioulo, não?”, e saiu correndo do vagão como se tivesse sentado na frente de um leão por engano. Eu rio até hoje do incidente e suspeito que o garçom, que viu a cena, também deva rir.
Ainda que haja tantos negros no Texas, o que se passa para que um negro sentado à mesa de um vagão-refeitório público desperte algo em um homem branco que o faça correr de olhos esbugalhados e sem sua refeição? Certamente a comédia do Jim Crow em ato algumas vezes contrapesa a tragédia de uma mente tão patética quanto a que aquele homem possuía.
Mas de nenhum modo tudo na Jim Crow é engraçado. Uma vez eu tive que esperar por horas antes de levar meu carro a bordo de uma balsa na Louisiana porque a cada viagem, todos os carros dos negros deviam esperar até que todos os carros dos brancos embarcassem. No tempo em que a balsa havia cruzado o rio e voltado, mais carros brancos haviam chegado e então, a cada vez, por diversas viagens, os carros dos brancos lotavam o barco. Uma vez que os carros dos negros tinham que voltar ao fim da fila a cada nova que se formava, nós éramos continuamente deixados à margem do rio. Isso não foi engraçado. Eu daria uma palestra em uma universidade negra a 160 quilômetros de distância naquela mesma noite e queria chegar lá em tempo. Mas a Jim Crow fez com que me atrasasse.
O mesmo acontece agora, segundo me dizem os soldados, em relação aos ônibus de serviço para membros de cor do exército nos acampamentos do Sul. Se os soldados brancos enchem o ônibus, os soldados de cor devem esperar pelo próximo. À altura em que outro ônibus chega, já há soldados brancos suficientes para enchê-lo também e novamente os negros devem esperar. Assim vai, até o ponto em que por vezes os soldados de cor nem chegam à cidade. Seus passes-livres perdem a validade enquanto eles esperam nos portões do acampamento por um assento em um ônibus. Isso, também, não é engraçado. Os soldados que escrevem para casa falando sobre essas inequidades insanas em acampamentos democráticos do exército não parecem se divertir.
Recentemente, o humor negro adotou uma espécie de qualidade macabra em relação ao problema racial. Quando eu falo em humor negro, não quero dizer em relação a um sentido puramente racial. O que quero dizer é que, por conta de fatores ambientais (a segregação), o humor do negro neste estágio da sociedade estadunidense, adotou certas nuances que parecem faltar no humor do branco.
No momento, algumas histórias macabras, ainda que contadas com risos, começaram a circular. Alguns cartuns na imprensa negra possuem essa qualidade macabra, também. Após as rebeliões em Detroit [1], houve um desses cartuns na The People’s Voice de Nova Iorque. Era engraçado. Muitos negros riram, recortaram-na e a enviaram a amigos. Mas nenhuma pessoa branca, de uma dúzia para quem mostrei, riu.
O cartum era o seguinte: dois menininhos brancos admiram a coleção de troféus de caça de um dos pais deles (uma cabeça de alce, uma cabeça de tigre, de leão-marinho). Entre eles, bem decorada, está uma cabeça humana, uma cabeça de um negro. Orgulhosamente, o pequeno filho da casa explica: “Papai pegou essa em Detroit na semana passada”.
O finado Robert Russa Morton, presidente da Tuskegee, a maior escola negra do mundo, uma vez contou a seguinte história em uma assembleia estudantil na qual eu estava presente. Doutor Moten (sic), disse que havia acabado de vir do Norte e que havia tomado um trem Pullman até Atlanta, Georgia. Disse ele que ouviu um grito atrás de si logo ao descer do Pullman na estação de Atlanta pela manhã, Ele se virou e viu que uma mulher havia prendido seu salto no degrau de cima do trem, fazendo com que começasse a cair para frente. Naturalmente, seu impulso como um homem foi estender seus braços para ajudá-la. Mas quando olhou para cima e viu que se tratava de uma mulher branca, ele baixou os braços.
Neste ponto da história um aluno na audiência explodiu em risos. Cada uma dessas crianças de cor sabia que o ato de um homem negro tomar uma mulher branca em seus braços em Atlanta poderia significar um linchamento. Naturalmente o Dr. Moten baixou seus braços! A mulher caiu de cabeça na plataforma de concreto. De qualquer modo ela não teve a oportunidade de gritar “Estupro”. E então o Dr. Moten pode viver para contar a história, o que divertiu sua audiência infinitamente. De algum modo, entretanto, eu não pude rir. Me pareceu uma das histórias mais tristes do mundo.
No momento, há uma história sendo contada nas comunidades negras que parece no caminho de se tornar uma história folclórica. E é sempre contada como sendo verídica, ainda que eu a tenha ouvida em três versões diferentes no espaço de um mês, como se houvesse se dado tanto no Norte quanto no Sul. O teor da história é esse: em meio às pessoas de pé em um ônibus lotado com gente negra e branca, há um sulista que não suporta ver gente branca em pé enquanto negros se sentam. Então, o sulista diz a um negro em um assento próximo: “Ei, você, pretinho, levanta e me deixa sentar”.
O negro se levanta e o homem branco se senta. Assim que isso acontece, o negro se senta no colo do branco, pressiona uma faca em suas costelas e diz: “Então você quer se sentar, é? E pra isso me faz levantar? Bom, agora você está sentado! E eu também! Diz algo! Vai! Diz algo!”.
Nesta altura, as pessoas de cor, ouvindo a história, gargalham. Naturalmente, o homem branco com a faca pressionada sobre suas costelas, não diz nada, e então o negro chega a seu destino sobre seu colo. Assim triunfa a justiça e todo mundo se sente feliz.
Um novo herói folclórico está sendo gestado entre o povo negro. Não se trata mais do soldado heróis dos fronts da Nova Guiné ou da Itália, mas do homem que combate o front local da Jim Crow estadunidense. Novos contos surgem sobre ele todo dia. Algumas histórias são reais, espalhadas boca-a-boca ou impressas nos meios negros. Outras são obviamente fantasias (como esta do homem negro sobre o colo do homem branco). Quase todas são tocadas com o humor de parar o coração próprio à Jim Crow, desesperada e grotescamente engraçadas.
Há pouco tempo, os jornais negros traziam uma informação de que as pessoas de cor liam aos risos. Parece que nos ônibus lotados da Jim Crow sulina, condutores e papeleiros brancos não raro tomavam dois assentos para si, por conta de sua parafernália, excluindo passageiros. Alguns soldados negros que estavam prostrados em pé colocaram os jornais e revistas dos papeleiros, assim como a caixa de coleta do condutor, no chão e se sentaram em seus assentos. Quando o condutor entrou e viu o que havia acontecido, ordenou que os soldados saíssem imediatamente. Os soldados não se levantaram e, quando o condutor disse “Tudo bem, vou por vocês crioulos para fora”, tentando alcançar a corda do frio, os soldados os agarraram e o jogaram para fora do coche em movimento no meio da noite. Esta história divertiu o público negro interminavelmente.
Eu suponho que o ambiente cria nuances variadas em relação ao humor. Certamente não há nada engraçado a respeito de um homem ser jogado para fora de um trem em aceleração no meio da noite. Não se ele é um bom homem. Mas aquele condutor em particular, aos olhos dos negros, era um demônio; e todo mundo gosta de ver um demônio tendo o que merece. Esse tipo de pensamento é o que condiciona muitas mentes negras em relação à nossa atual guerra contra o Japão. Os negros sabem que pessoas brancas na Ásia têm uma atitude em relação aos asiáticos que não difere muito da atitude geral que eles dispõem contra pessoas de cor nos Estados Unidos. Isso conta para que risadas do fundo do diafragma recepcionem piadas como a seguinte:
Um membro distinto do Gabinete Negro (cuja função é aconselhar Washington sobre problemas raciais), estava em uma sessão com um grande oficial do governo durante os dias em que o Japão estava levando vantagem sobre os britânicos na Ásia. Naquela tarde, seu office-boy negro, ignorante de que tinha uma visita, entrou correndo e gritou em júbilo: “Chefe, nós acabamos de tomar Singapura!”.
Outra piada da mesma cepa diz respeito a um homem branco que foi a uma igreja negra do Sul para falar pela Cruz Vermelha, que os negros não respeitam muito, já que a organização começou a segregar sangue negro em seus bancos de sangue. O homem branco deu uma palestra apaixonada sobre os males de Hitler e Hirohito, ao longo da qual ele afirmou, “ora, vocês sabem, esses japas estão realmente tentando limpar nós, brancos, da face da terra”, ao que uma avozinha velha e marcada pelo tempo, em um canto do altar, que havia passado por setenta anos de Jim Crow, disse “Ora, já não era sem tempo!”.
Esses são os tipos de anedotas que animam os EUA negro nos dias de hoje. Novas piadas surgem a todo minuto. Seu humor se baseia no absurdo de brancos estadunidenses darem à liberdade e à democracia um lugar grandioso ao mesmo tempo em que ainda vendem refrigerante de amora para negros por meio de um buraco na parede, ou ameaça lançar soldados negros de um trem em movimento por se recusarem a aceitar a condições ultrajantes de um vagão do Jim Crow sulino, ou ainda, colocando nossos sangues em recipientes separados, à la Hitler, nos bancos de sangue da Cruz Vermelha. Os negros pensam que a mão esquerda da democracia aparentemente não sabe o que sua direita faz. Quando os jornais publicaram, recentemente, a notícia de que o Presidente assinara uma lei garantindo liberdade às Filipinas, um homem de cor em frente a uma banca no cruzamento da 125ª rua e a 8ª avenida, no Harlem, segurou seu jornal aos risos.
“Não temos nem mesmo as Filipinas”, ele disse, “e lá vamos nós lhes dando a liberdade! Gente branca faz as coisas mais engraçadas!”.
Eu classificaria essa afirmação da seguinte forma: “Algumas pessoas brancas fazem as coisas mais engraçadas! Pessoalmente, eu sei que nem todo branco estadunidense pratica a Jim Crow em casa enquanto prega a democracia lá fora. Mas o que é intrigante sobre os que o fazem é sua falta de humor a respeito de seus próprios absurdos. Eu li que Hitler também não tem nenhum senso de humor. Há inúmeras cabeças humanas entre os troféus de caça de Hitler, certamente, espalhadas ao redor do mundo na lama sangrenta da batalha. Eu acho que os maiores assassinos não conseguem bancar o riso. Aqueles mais determinados a recorrer à Jim Crow para cima de mim estão morbidamente matando os Estados Unidos.
Tradução por Gustavo Racy
Nota do Tradutor: [1] A Rebelião de Detroit, de 1943, se deu na noite do dia 20 de junho até a manhã do dia 21, motivada pela conversão da indústria automotiva da cidade em favor do esforço de guerra e da consequente tensão social a ela associada, uma vez que o esforço levou à chegada de quase 400 mil migrantes afro-estadunideses e sulistas brancos, que passaram a competir por espaço no mercado de trabalho. O episódio levou a 34 mortes, 433 feridos e 1800 encarcerados.
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