A Fresta é uma coluna — uma colina — de periodicidade semanal dedicada a publicação de textos realizados no seio do movimento surrealista e arredores. Por Natan Schäfer
Se não me falha a memória, foi num pequeno café em La Paz que o garçom indicou-me, dentre outros nomes, o de Jaime Saenz (1921 - 1986). Foi assim que, quase por acaso e no meio de uma grande aventura, descobri um dos gigantes sul americanos, um poeta integral boliviano, infelizmente pouquíssimo conhecido em altitudes mais baixas. Saenz é dono de uma biografia tão aventureira que mesmo o mais parcial resumo não caberia nesta breve nota. Embora não tenha associado-se diretamente a nenhum grupo, a afinidade de seu pensamento à do movimento surrealista é evidente. O texto que traduzimos abaixo é prova disso: trata-se da primeira parte da introdução ao seu livro Imágenes paceñas - Lugares y personas de la ciudad (1979) — acompanhado por fotografias de Javier Molina B. —, o qual incursiona pelos mistérios e maravilhas da cidade latente na cidade, orbitando na mesma constelação onde podemos situar, guardadas as devidas proporções e irredutíveis singularidades, Nadja de Breton, La forme d'une ville de Julien Gracq, Topologie d'une cité fantôme de Alain Robbe-Grillet, Introduction à une critique de la géographie urbaine de Guy Debord, Résidence Secondaire de Claude Courtot, dentre outros que aventuram-se pelos labirintos das cidades.
Introdução
[extraído do livro Imágenes paceñas - Lugares y personas de la ciudad; Plural editores, 2012]
Partindo do princípio que a cidade de La Paz tem uma fisionomia dupla e admitindo que enquanto uma delas exterioriza-se a outra se oculta, gostaríamos de dirigir nossa atenção a esta última.
Pois, efetivamente, o que interessa aqui é a interioridade e o conteúdo, o espírito que mora no profundo e que se manifesta em cada rua e em cada habitante, e no qual seguramente há de encontrar-se a chave para vislumbrar o enorme enigma que constitui a cidade que se esconde aos nossos olhos.
No mais escuro confim de algum bairro, num beco esquecido cuja boca se em quem sabe que precipício; num simples muro de adobe, que desafiou os embates das chuvas e dos ventos ao longo de muito tempo; na porta ignorada de algum saguão ou na pedra lisa e lavada que repousa anos e anos numa pracinha talvez inominada; ali pode encontrar-se o espírito da cidade, a cifra de muitos mistérios — num pátio, na superfície ruinosa de uma parede, nos degraus gastos que já não servem a ninguém, no lugar em que antes achava-se uma casa.
E o que isto significa, em toda sua profundidade, poderia ser explicado por um paradoxo, pois muitas vezes, como bem se sabe, a destruição de uma cidade foi a verdadeira causa de sua definitiva permanência.
Estranhamente, isso significaria que uma cidade é indestrutível.
E convencionando-se que efetivamente o fosse, seria óbvio perguntar-se porquê, supondo que a resposta encontra-se no espírito de todos nós, os homens. Pois se os homens construíram as cidades, fizeram-no por uma ordem e por uma necessidade inteiramente elementares, sob o signo da convivência e sob a coação da solidão — a mais humana e grave e, portanto, a maior dentre todas as coações.
No entanto, é evidente que semelhante coação na verdade tomou proporções de angústia, longe de encontrar algum paliativo no âmbito das cidades. E eis aqui uma coisa estranha: é fato que existem cidades e cidades, como efetivamente há cidades verdadeiras e cidades falsas; porém, não obstante, não há cidade que não seja mágica para quem a habita. Pois bem, o homem que reúne-se à multidão e submerge nela sempre há de encontrar-se completamente só e confundido ao mesmo tempo, como uma gota de água que luta para reconhecer-se no mar. Pois neste sentido, se o homem busca um remédio ali onde precisamente não há, é porque a solidão é remediada somente com a própria solidão.
Daí que a magia da cidade, se assim quisermos, não é outra coisa que a magia da solidão.
Tradução de Natan Schäfer.
ความคิดเห็น