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não sei nada, nem de eva, tampouco de adão

Atualizado: 29 de jun. de 2021


Le présent du présent, hommage de King-Kong à August Ferdinand Moebius, de Michel Zimbacca. Gentilmente cedido por Pierre Andre Sauvageot
 


A Fresta é uma coluna — uma colina — de periodicidade semanal dedicada a publicação de textos realizados no seio do movimento surrealista e arredores, de curadoria de Natan Schäfer.

 

No último dia primeiro de abril, Michel Zimbacca (1924 - 2021) foi perdido de vista. Membro do grupo surrealista de Paris desde 1949, Zimbacca era um dos membros do grupo há mais tempo em ação.

Nos dizeres de Sergio Lima — a quem agradecemos expressamente a dica que ocasionou o que se segue a esta breve apresentação —, Michel Zimbacca era “um homem de cinema”. De fato, Zimbacca notabilizou-se principalmente pela direção, com Jean-Louis Bédouin, de L'invention du monde (A invenção do mundo), cuja narração foi escrita por Benjamin Péret, e que é apresentado em sua mais recente edição pela Luna Park Films como “Poema cinematográfico exaltando a diversidade da criação do pensamento primitivo, uma inspiradora da poética surrealista”. Além disso, também expressou sua poesia em desenhos, pinturas, collages e poemas, não colocando limites estanques à sua poesia, como é habitual no âmbito do movimento. Parte desta produção pode ser conferida no volume Sans cent vierges ni virgules, publicado em 2017 numa edição conjunta da Sonámbula, de Montreal, e Loplop, de São Paulo, com prefácio de Guy Girard.

Amigo próximo e colega de Michael Löwy no grupo de Paris do movimento surrealista, Zimbacca foi recentemente homenageado em seu mais recente livro, O cometa incandescente, publicado pela editora 100/cabeças. Nesta bela edição, Löwy dedica-lhe um ensaio intitulado “A arte selvagem — Michel Zimbacca e L’invention du monde”, e publica “Os pudores da violência”, uma “carta (poema-collage)” datada de 1995, de Zimbacca para Löwy.

E agora, permitam-me assumir a primeira pessoa: da última vez que estive em Paris, para a abertura da exposição La photographie surréaliste en 2020, na véspera de um lockdown, infelizmente Zimbacca já encontrava-se hospitalizado e, dadas as devidas condições de temperatura e pressão, não pude visitá-lo e conhecê-lo pessoalmente. Contudo, como compomos a cauda de um mesmo cometa, rendo minha mais sincera homenagem a Michel Zimbacca com esta découpage après coup ou roteiro post-choc do seu filme Ni Eve, Ni Adam (título tomado da expressão homônima francesa que, ao pé da letra, é usada para indicar que alguém não conhece absolutamente nada de algo ou alguém), rastro da rota de alguém que vem vendo — portanto, eu diante do filme que Zimbacca nos deixa. Assim, o que se segue é, menos que um lamento, uma celebração do que continua após a dissolução. Agradecimentos a Sergio Lima e Guy Girard.


Cena escura. Um traço vertical de pontos de luz. A silhueta de algo que parece uma mão em movimento. Após alguns segundos, é possível discernir um casal deitado numa cama. O homem vira-se da esquerda para a direita, deitando-se de barriga para cima. A luz parca delineia os perfis. Ele diz: “Eu?”.

Vira a cabeça para o lado, olhando para sua esposa e repete: “Eu?”. Ela vira a cabeça para ele e depois para o outro lado, e acende a luz de cabeceira. Ela olha para ele. Apontando para trás da sua cabeça sussurra “Olha”. Ela diz “sim”.

Ele pega uma maçã de trás da cama e diz “ah, veja só, eis aqui teu lembrete”. Do mesmo lugar ergue e posiciona um espelho no qual os dois contemplam seu reflexo. “Eis aí!”, diz ele. De bruços, ela apoia sua cabeça na mão esquerda, ele aponta para algo próximo da cabeça dela e em seguida diz “há uma nuvem vermelha empalidecendo”. Ela diz “Sou eu, toda rosa”. Ele diz “verdade?”. Mostrando seu reflexo no espelho com um gesto da mão com que segurava a cabeça, ela diz “Você acha que ainda há brasas em todo esse sangue?”. “É claro”, responde ele e, fazendo um gesto como que de desanuviar com as mãos, completa “toda vez você me pergunta isso, e toda vez queimamos os dedos”. “Você conhece meu duplo?, olha, sou eu ao contrário?”, diz ela. “Eu sei”, responde ele. “De verdade?”, pergunta ela e completa “para você sou eu do lado certo”, ao que ele responde “de todo modo, são contrários complementares”, levantando sutilmente os dedos da mão esquerda, que repousa segurando o braço direito, quase cruzado-se. “Complementares…”, repete ela, como que pensativa. Ele aponta para o espelho e diz “ora vamos, o espelho faz contrários simétricos”. Ela olha para ele e diz “Pois, é claro”, ao que ele repete, também olhando para ela e erguendo levemente a mão direita “simétricos”, olhando então novamente para seu reflexo. Ele olha para ela e diz “a menos que isso seja o lirismo”. Ela pergunta “dá pra ver eu fazendo amor?”.“sim, dá pra ver isso em você, mas não nela” e aponta para o espelho. Ela olha para seu reflexo com ar de desdém e diz “prefiro o contrário”. “Por que?”, pergunta ele olhando para ela, “isso te deixa mais bonita!”. Ela olha para ele e diz “não embeleza, não” — apoia-se no cotovelo, a mão ainda segurando a cabeça —, “a mim, isso me devasta!”, e sai da frente da frente do espelho. A câmera segue-a, ele em contraplano. “Eu queria tanto”, continua ela, “ficar para sempre jovem”. Ele também se apoia no cotovelo e diz “Oh, mas já!” e então deita-se junto a ela, que o cinge com o braço no qual antes apoiava a cabeça, aproximando seu rosto do dele e dizendo “não a juventude de idade, mas da ideia”. Sua mão direita repousa sobre o peito dele e ela volta a apoiar a cabeça na mão esquerda. “É a coisa que você diz do amor, que tudo é novo por todos os lados, sempre”. Enquanto ela fala, ele pianola vagorasamente os dedos, deitado de barriga para cima, e diz “É até mais simples”, fazendo um gesto leve com as mãos. “Mais simples?”, pergunta ela. “Escolha”, diz ele, “a eterna juventude e a morte aos 20 anos, ou a imortalidade” e depois de uma breve pausa, segurando nas mãos o que parece ser uma maçã “quando nos amamos, temos escolha” e começa a levantar-se enquanto ela pergunta “como assim?”. “Mas é claro…”, diz ele, no que parece estar se preparando para calçar os sapatos, “nós [incompreensível] esforços”. Ela volta a deitar-se de bruços, a cabeça voltada para o espelho, que ele guarda embaixo da cama, dizendo “mas, eu, escute-me bem”, e senta no chão. Aproxima-se dela e diz “a fórmula de base é realizarmos todos nossos desejos — todos nossos desejos, custe o que custar”. “Então”, diz ele abrindo levemente os braços e as mãos num gesto de conclusão, num corte para uma tomada de cima da cama, ela de costas para o espectador e ele à sua frente, levantando-se. Ela pergunta “o que você está fazendo?”, enquanto ele vai se esgueirando para debaixo da cama, dizendo “você é capaz de ficar 20 ou 25 anos deitada nesta cama?” — aponta para a cama, e interrompe seu esgueirar-se, só o torso à mostra. “Por que?”, pergunta ela. “Você quer a imortalidade”, responde ele, “vou te dá-la”, e desaparece embaixo da cama. Ela se vira para a frente e, a meio do caminho, interrompe-se e pergunta “de barriga para cima ou de bruços?”. De baixo da cama ele responde “como você quiser, mas tire a roupa”. Ela apaga a luz e se deita de barriga para cima, de olhos fechados, ao que parece estar fazendo movimentos para despir-se.

A câmera mostra o tapete, no canto superior esquerdo pode-se ver um pedaço da cama e um pé da mesma sob o número “1969”, escrito em letras garrafais [parecem da família Impact]. Um mão sai debaixo da cama e coloca sobre o tapete um osso, ao que tudo indica um fêmur, com as cabeças grandes e arredondadas como nas representações dos desenhos animados ou bandeiras de piratas. A voz dele em off diz “quando eu tiver terminado, teu esqueleto não vai mais ficar à espreita”. Também em off, ela suspira e diz “melhor assim”. “Aliás”, continua ele sussurrando em off, ao que o numeral muda para 1970 e surgem, como que num passe de mágica, nove ossos ao lado do fêmur, ao que tudo indica, nove costelas. “Do ponto de vista erótico”, continua ele, sempre pensei que uma mulher não deveria ter ossos”. “Eu é que jamais sonharia com isso”, diz ela, ao que o numeral muda para 1975 e surge um coluna cervical ao lado das costelas. “Com que?”, pergunta ele. “Tornar-lhe imortal”, responde ela. “Eu vou te ajudar”, responde ele, e prossegue “você não [incompreensível, soa como “você não tem identidade” ou “você não precisa ditar”]. “Acho que sim”, diz ela, ao que o numeral muda para 1980 e surge um osso indiscernível na parte inferior do quadro, e completa “fiz de tudo”. “Mas então me diga, rápido!”. O numeral continua para 1985 surgem os ossos da bacia, mais um amontoado de ossos cervicais e de costelas e outros e ela diz “com uma só condição — que você não discuta”. “Te prometo!”, diz ele. O numeral segue para 1990 e surge um crânio e ela diz “me estrupre”. “Mas, de todo modo, é impossível”, diz ele, “isso jamais poderia ser um verdadeiro estupro” e depois de um breve silêncio pergunta, sussurrando, “você está me escutando?”. Ele, erguendo a voz, diz “me responda!”. Corte para tomada frontal dela deitada, de olhos fechados, parcamente iluminada. Nas sombras, ele pergunta “Eu?”, e acende a luz da cabeceira. Atrás dela podemos ver uma cortina (branca, pois o filme é em preto e branco). Ele se debruça sobre ela, apoiando as mãos na cama e diz “eu, levante!”. Aproxima o rosto do dela, prestes a encostar seus lábios nos dela, como se ensaiasse um beijo ou estivesse conferindo se ela está respirando. Sem tocá-la se afasta e deita a orelha sobre seu peito, fechando os olhos. Erguendo-se, olha para ela. Ao fundo, começa a tocar um trilha incidental, com ares de música erudita contemporânea (estilo Boulez, Schaeffer, Schönberg, etc) Num plano sequência, a câmera desloca-se, contornando-a e passando por trás dele, aproxima-se ligeiramente e sobe mostrando ele, que olha para o chão. Corte para o crânio e demais ossos. Uma mão aproxima-se da testa do crânio e o plano se abre, revelando que é ele quem está colocando a mão na testa do crânio. A trilha, que vinha num crescendo de tensão, soa alguns agudos e ouvimos a voz dela em off “me deixe dormir — é tão bonito!”, ao que ele se volta para ela e aproxima-se da cama, por trás, dizendo “você me deu medo”, a mão direita apoiada na cama. “Eu também tenho medo”, diz a voz dela em off enquanto ela continua deitada, de olhos e boca fechada, e continua “estou sonhando contigo”. Ele volta-se para o crânio, as mãos ligeiramente espalmadas, como que denotando uma certa tensão, cuidado ou expectativa. Ele coloca ambas as mãos sobre o crânio e, algo bruscamente, curvas-se sobre o mesmo, de joelhos e diz “me deixe entrar no teu sonho”. “Estupre meu sonho”, diz ela ao que ele volta-se para ela na cama, “estupre minha vida”. Ele fica de pé, ela continua deitada sem abrir os olhos, tampouco a boca. Ele se aproxima da cama e descobre-a. Corta para um tomada de uma tumba vista de cima, coberta de algumas folhas ou flores dispersas. Corte para ele em plano americano tirando o paletó, dando às costas à câmera e indo para o fundo da cena, em direção a cortina. Corta para um bandeira oscilando ao vento, a qual exibe um desenho de uma cruz, sobre a qual há um caixão, no interior do qual há uma cabeça feminina de olhos fechados com uma lua minguante [ou crescente?] na testa, duas caveiras indefinidas [de pássaro ou réptil] sobre os olhos com detalhes que parecem indicar penas ao seu redor, cabelos que parecem vegetais e sob o pescoço a frase “MORTE A VIDA TE VIGIA”. Corta para ele em close abrindo o colarinho da camisa branca [até então estava de paletó e gravata, embora na cama], com o olhar fixo e algo perverso [desejante, voluptuoso?]. Corta para uma mão com dedos de réptil e unhas pretas brilhantes e pontiagudas, como de um lagarto ou pássaro, segurando os esteios de uma cerca branca; movendo e fazendo um zoom in, a câmera dá um close nos olhos claros em contraste com a pele acinzentada de uma figura tenebrosa, similar a um demônio [Sargento Bertrand]. Corta para um portão do cemitério, uma lápide com cruz medieval [de malta?] de cada lado, dramaticamente iluminadas. A figura demoníaca abre o portão num gesto de “abre-te, Sésamo” e entra com um grande cajado na mão direita. Trilha sonora incidental de filme de horror e tão dramática quanto a luz. A figura demoníaca caminha vagarosamente, aproximando-se da câmera até ser apreendida em plano americano. Corta para a tumba, onde um vento sopra as folhas ou flores e agora podemos ler, esculpido em baixo relevo na tampa “AQUI JAZ EU”. Corta para a figura demoníaca em plano americano. Ela finca o cajado no chão enquanto, ao fundo, ouvimos o que parece ser ruído de uma metralhadora atirando ou de uma britadeira. O colarinho de figura é feito de uma multidão de pequenas cruzes que parecem coroar uma espécie de torre, similar à torre do tarô, cingida de penas pretas, de uma corrente e ferramentas indiscerníveis. Corta para o homem em plano americano, de camisa aberta até o segundo ou terceiro botão, revelando o que há de ser uma camisa regata sob a camisa. Ele sobe na cama de joelhos e avança em direção a ela, apoiando as mãos próximo a sua cabeça enquanto debruça seu corpo. Corta para a figura demoníaca em contraplano debruçando-se sobre a tumba e erguendo a tampa como que por telecinese [lasciva e galvânica]. No seu interior, vemos ela/eu, deitada e de olhos fechados, como na cama, porém com o rosto marcado e as bochechas encovadas. Corta para ele em cima dela na cama. Ele toma seus braços e os estende para trás de sua cabeça, em seguida puxando-os para frente. A trilha sonora acompanha os movimentos. Corta para a figura demoníaca e ela, ambas em plano americano, uma lápide à esquerda. Eles aproximam-se um do outro e ela em seus desmaia nos braços de garras afiadas, como uma sonâmbula. Close da figura demoníaca a segurando nos braços, ao vento. Corta para um close dele que continua movendo os braços dela para frente e para trás, como uma espécie de manivela, alavanca ou bomba de poço. Ao fundo, novamente o ruído da metralhadora ou britadeira. Corte para ela nos braços da figura demoníaca, o zoom da câmera aproximando-se cada vez mais. Corta para ele sobre ela, também em close. Corte para a figura demoníaca com ela nos braços. Corta para o rosto dela deitada sob ele, enquanto ele move seus braços. Corte para ela nos braços da figura demoníaca, desacordada e com o pescoço mole, tombando a cabeça. Corta para ele fazendo respiração boca a boca nela deitada na cama, em outro ângulo. Corta para ele fazendo respiração boca a boca nela deitada na cama, em outro ângulo. Corta para ela oscilando desacordada nas garras da figura necrófila e lasciva. Corta para um close do rosto da figura demoníaca, arregalando seus olhos claros, abrindo a boca e movendo a língua. Zoom in e close no rosto dela desacordada e oscilando o pescoço mole durante alguns segundos. Ela então abre os olhos e olha para cima.

Corta para uma mão fazendo um montinho de folhas ou flores sobre a cama. O plano se abre e vemos que é ela que faz isso ajoelhada ao pé da cama, enquanto ele alisa o lençol e ajeita os travesseiros. Ela guarda as folhas no interior de uma caixinha. Ele para, debruçado sobre a cama e apoiado nas mãos, olhando fixamente para ela. Sem olhar para ele e terminando de guardar as folhas na caixinha, ela arremata “eu te disse” e fechando a caixinha e apoiando-se sobre ela — um braço descansando sobre a caixinha, a cabeça apoiada na mão — completa “o amor é eterno”. Em resposta, ele deixa sua cabeça pender por um segundo. Em seguida deita-se na cama e, mexendo nas unhas, olha para o vazio.

 

Créditos: “A roupagem do “Necrófilo” foi criada por JEAN BENOÎT [Homenagem ao Sargento Bertrand] e o sudário por MIMI PARENT”. Realização de Michel Zimbacca (roteiro e mise-en-scène). 16mm / 9:50 minutos / preto-e-branco. Versão digital disponível online.


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