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o que é surrealismo?

Atualizado: 27 de jul. de 2022


Colagem por Fabiana Vieira Gibim



A Fresta é uma coluna — uma colina — de periodicidade semanal dedicada a publicação de textos realizados no seio do movimento surrealista e arredores, de curadoria de Natan Schäfer.

 

O alemão Max Ernst (1891 - 1976) é um dos mais importantes nomes do movimento surrealista e foi o responsável por abrir diversos dos caminhos poéticos que seriam trilhados pelas artes no século XX e XXI.

No texto abaixo, publicado originalmente no catálogo Abstrakte Malerei und Plastik: Hans Arp, Max Ernst, Alberto Giacometti, Julio Gonzalez, Joan Miro, em Zurique (Kunsthaus Zürich, 1934) — aqui apresentado pela primeira vez em língua portuguesa e traduzido diretamente do alemão —, Ernst sintetiza magistralmente alguns dos fundamentos do surrealismo, desfazendo certos mal-entendidos que muitos insistem em fazer perdurar por meio de vista grossa — e grosseira.

 

“No geral, a palavra delito não foi compreendida” Paul Éluard

A lenda da criatividade do artista foi o que restou à cultura como última superstição e triste destroço do mito da criação. Fez parte dos primeiros atos revolucionários do surrealismo atacar este mito com meios objetivos e da maneira mais aguda, talvez aniquilando-o para sempre. O surrealismo fez isto ao insistir energicamente no papel puramente passivo do “autor” no mecanismo poético da inspiração e ao desmascarar como o contrário dela todo controle “ativo” efetuado por meio da razão, da moral ou de considerações estéticas. Ele pode assistir a criação de uma obra como espectador e acompanhar as fases do seu desenvolvimento com indiferença ou paixão. Assim como o poeta então escuta e anota o andamento automático dos seus pensamentos, o pintor projeta no papel ou na tela aquilo que a sua capacidade de inspiração ótica inspira-lhe.

Obviamente acabou-se com a velha concepção de “talento”, com o endeusamento dos heróis e com as lendas, recebidas com adoração concupiscente, de “fertilidade” do artista, o qual hoje coloca três ovos, amanhã um e no domingo nenhum. Uma vez que, como se sabe, toda pessoa “normal” (e não somente o “artista”) leva no seu inconsciente um inesgotável estoque de imagens soterradas, cabe à coragem ou a um procedimento libertador (como a “escrita automática”), trazer à luz achados (imagens) não falseados (não tingidos por controle algum) a partir de explorações no inconsciente, cujo encadeamento pode ser designado como conhecimento irracional ou objetividade poética, a partir da definição de Paul Éluard: “A objetividade poética existe somente na sucessão, no encadeamento de todos elementos subjetivos, dos quais o poeta é, até segunda ordem, não senhor, mas escravo”.

No início não parece fácil para o pintor e escultor encontrar um correspondente à “escrita automática” para a alcançar a objetividade poética em seu procedimento adaptado às suas possibilidades expressivas técnicas. Isto é, exilar entendimento, gosto e vontade consciente do processo de criação da obra de arte. Investigações teóricas não seriam capazes de ajudar-lhes, apenas experimentos práticos e seus resultados. “O encontro fortuito, sobre uma mesa de operações, de uma máquina de costura e de um guarda-chuva” (Lautréamont) é hoje um famoso e quase clássico exemplo do fenômeno descoberto pelos surrealistas, de que a aproximação de dois (ou mais) elementos essencialmente estranhos um ao outro, num plano essencialmente estranho a eles, provoca as mais fortes ignições poéticas [1]. Inúmeros experimentos coletivos e individuais (como por exemplo aquele denominado “Cadáver delicioso”) manifestam a utilidade deste procedimento. Com isso mostrou-se que quanto mais arbitrariamente os elementos pudessem encontrar-se, mais seguramente haveria de ocorrer uma completa ou parcial reinterpretação das coisas a partir das fagulhas poéticas emergentes. A alegria diante de cada uma das divertidas metamorfoses não corresponde a uma miserável pulsão de distração estética. Correspondem, sim à uma necessidade vital ancestral do intelecto por uma libertação do paraíso das traiçoeiras e tediosas lembranças fixas; e à sondagem de um vasto campo do empírico novo e diverso, no qual as fronteiras entre o assim denominado mundo interior e mundo exterior (a partir da representação filosófica clássica) confundem-se cada vez mais e talvez um dia (quando métodos mais precisos que a “escrita automática” forem encontrados) desapareçam completamente. Nesse sentido pude bem designar “História natural” uma série de quadros nos quais fixei uma sequência de alucinações ópticas com a maior precisão possível. O significado revolucionário desta descrição natural que a primeira vista pode parecer absurda, talvez torne-se nítido a partir de resultados análogos obtidos pelas microfísica moderna. P. Jordan registra como resultado da medição de um elétron sem força em movimento e a posterior medição de sua posição: “Mas esta diferenciação (do mundo exterior e interior) é um dos principais apoios que será subtraído com a refutação experimental das representações de que no mundo exterior encontram-se fatos que possuem um ser-aí objetivo independente do processo de observação” [2].

Ora, quando é dito que os surrealistas são pintores de uma realidade de sonhos constantemente variável, isto não deve indicar que, por exemplo, eles pintem seus sonhos (isso seria um naturalismo ingênuo e descritivo); ou que cada um deles constrói seu mundinho a partir de elementos do sonho, para comportar-se nesse mundo de acordo com sua bondade ou maldade. Mas sim, que eles registram um real plenamente físico e psíquico (“surreal”), ainda que algumas áreas de fronteira específicas do mundo exterior e interior movam-se livre, natural e ousadamente.

Assim, eles interagem com o que aí vêem e vivenciam, seguindo os conselhos do seu instinto revolucionário [3].

A oposição fundamental entre meditação e ação (a partir da concepção filosófica clássica) cai juntamente com a distinção fundamental entre mundo exterior e interior. É aí que localiza-se o significado universal do surrealismo, ou seja, que após esta descoberta nenhuma área da vida permanece-lhe inacessível. Dessa forma, as artes plásticas, obviamente frágeis à todos automatismos, necessariamente fizeram sua entrada no movimento surrealista. Ao lado das esculturas de Arp e Giacometti há que se indicar os “objetos de funcionamento simbólico” (e.g. a “Bola suspensa”, de Giacometti) e os projetos utópicos, dos quais o leitor por ter uma ideia a partir da descrição que se segue: “Grandes automóveis, três vezes maiores do que um automóvel normal, serão reproduzidos (com uma minúcia de detalhes ultrapassando a dos moldes mais exatos) em gesso ou ônix, para, envolvidos em roupas íntimas femininas, serem fechados em sepulturas, cuja localização será reconhecível somente pela presença de um pequeno relógio de palha” (Salvador Dalí) [4].

Obras plásticas preexistentes, assim como todas as demais “realidades”, podem funcionar na experimentação surrealista como elementos poéticos, o que foi demonstrado por investigações coletivas para o embelezamento irracional de Paris. “As mais convencionais estátuas embelezariam maravilhosamente o interior. Algumas mulheres nuas em mármore causariam um ótimo efeito num grande campo arado. Animais nos riachos e concílios de personagens sérios com gravatas pretas nas enseadas formariam encantadores escolhos contra a monotonia das ondas. O flanco das montanhas seria admiravelmente bem ornamentado com todas as petrificações da dança. E para levar em consideração a mutilação indispensável, quantas cabeças no chão, quantas mãos nas árvores, quantos pés nos telhados de palha!” (Paul Éluard) [5].

O que é surrealismo? Quem espera por uma definição como resposta à esta pergunta ficará decepcionado, uma vez que este movimento não chegará a uma conclusão. Minhas brevíssimas explicações certamente serviram para dar um norte com relação a algumas confusões conceituais generalizadas e em certa medida profundamente naturalizadas sobre o movimento surrealista. Para além disso, podemos somente remeter aos “Manifestos surrealistas” e aos “Vasos comunicantes”, de André Breton. O fato de poderem ser apontadas contradições nas sucessivas posturas surrealistas, e que elas continuem aparecendo por muito tempo, demonstra que o movimento está no seu melhor fluxo. A partir disso, o fato de ele ter feito as relações entre as “realidades” caírem por terra uma sobre as outras, pode somente contribuir para a aceleração da atual crise generalizada do conhecimento e da consciência.

Traduzido por Natan Schäfer

 

Notas: [1] Nota do tradutor: traduzimos wesensfremden como “essencialmente estranho”, baseando-nos na tradução alemã da obra De ente et essentia (1255), de São Tomás Aquino (em alemão traduzida por Wolfgang Kluxen como Über das Seiende und das Wesen). [2] N. do t.: Seguimos a tradição heideggeriana que traduz “Dasein” por “ser-aí”. [3] Nota do autor: opostamente ao abstracionismo que, ao contrário, limita propositalmente suas possibilidades à pura interação estética entre cores, superfícies, volumes, linhas, espaço, etc. Ao que parece, para dar uma força para as velhas crenças criacionistas, como a denominação de um grupo como “Abstração, Criação” demonstra [em francês Abstraction-Création, foi um coletivo internacional de artistas organizado em Paris, em 1931]. [4] N. do t.: publicado originalmente em francês no número 3 da revista Surrealismo a serviço da revolução, em dezembro de 1931. [5] N. do t.: publicado originalmente em francês no número 6 da da revista Surrealismo a serviço da revolução, em maio de 1931.

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