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o surrealismo e o coração selvagem

Atualizado: 27 de jul. de 2022


Colagem por Fabiana Gibim





A Fresta é uma coluna — ou colina — de periodicidade quinzenal dedicada a publicação de textos e imagens realizados no seio do movimento surrealista e arredores. Por Natan Schäfer



O Surrealismo e o Coração Selvagem. O texto aqui apresentado é uma retradução realizada a partir da tradução de Sergio Lima publicada n’A Phala 1 (revista-catálago da XIII Exposição Internacional do Surrealismo, ocorrida em São Paulo, em agosto de 1967), retomado na revista L’Archibras 2, em outubro de 1967. Vincent Bounoure foi continuador do movimento surrealista em Paris depois da tentativa fracassada de dissolução em 1969 por dissidentes do grupo.


As tempestades do romantismo não foram suficientes, como tampouco o foram suas efusões: mesmo batendo à porta dos salões, onde reinara somente à força de esposar as menos perversas graças, mas as mais ricamente dotadas, a arte obstinava-se em satisfazer, pacientemente, as vaidades do esteta, a mobiliar os desencantamentos de um lazer de cão. A arte era uma linguagem. A missão de um quadro, de uma escultura, era evocar. O hedonismo de primeira classe encontrava aí espinhos de cetim para rosas fenecidas; a seriedade das especulações cedia a noite vindoura à futilidade elaborada das imagens. Uma televisão rudimentar autorizava o gozo de si. Encolhido nas poltronas da passividade, o espectador algumas vezes obtinha pagando caro, porém, sem excessivas despesas nervosas, uma alta noção de suas faculdades sensíveis e do seu espírito de resposta rápida. Quando Guillaume Apollinaire empreendeu de tornar cada um dos seus poemas um poema-acontecimento, à propósito do qual foram inteiramente revisados os meios da poesia, não sem alguns antecedentes mas que ele iluminava a partir de um ângulo novo, este acontecimento corrigia muito oportunamente sua perspectiva para em breve não alimentar as especulações surrealistas. Assim era restrito ao trabalho e à habilidade manual o valor que só pode ser conferido à operação mental, da qual a obra de arte é o produto ao mesmo tempo que a ocasião. No mesmo instante em que ela, para se prolongar durante um quarto de século, o surrealismo era capaz de expulsar lado a lado os protagonistas da querela entre figuração e abstração, uns pintores da efusão ou da estilização formal, os outros artesões de uma linguagem através da qual esperavam resolver a antinomia do individual e do universal. A esta triste quantidade de palavras congruentes que o artista proferia tanto em um com no outro caso, portadoras da sua "mensagem", opunha-se a iniciativa dos artistas que visivelmente repugnavam se definirem como tais, mas que tinham necessidade de palavras e de formas para modificar, por um instante que fosse, as relações que entretinham com o mundo. A esta postulação elementar e irrepreensível, os meios e os materiais tradicionalmente usados nas artes ofereciam um campo de ação quase virgem. A arte moderna fazia assim da necessidade interior o critério maior que julga todo fato da arte. Este movimento explosivo não podia deixar de reencontrar, na sua própria pré-história, os emblemas levantados pelos "loucos" e os "selvagens". Sabe-se que os pintores e poetas foram os primeiros a romper as barreiras ao longo das quais os especialistas sempre montaram uma guarda severa para manter ao abrigo dos olhares os objetos que se limitavam até então à jurisdição de material etnográfico e que passariam a constituir doravante as "artes primitivas". O século XX ainda não havia verdadeiramente começado. A estética era ainda uma categoria da arte de apreciar. E foi indiretamente que as esculturas sagradas produzidas pelas culturas "primitivas" puderam entrar no mundo das artes: a potência mágica de que eram depositárias só podia se perder. Este infortúnio atingiu sobretudo as esculturas africanas; algumas se expunham a isso com complacência. Os jogos de luz sobre o marfim, a estilização paciente da massa, mesmo quando se tratava de uma escultura ritual, testemunhavam uma preocupação com a forma que os cubistas não haviam desprezado. Eles reencontraram nelas o eco de suas preocupações descritivas e de suas vontades de representação global. Mas logo que à esta interpretação do mundo, que em vários níveis foi o cubismo, o surrealismo substituiu a vontade de mudar a vida por uma investigação dedicada ao funcionamento real do pensamento, os critérios da estética clássica mostraram-se ineficazes. Mais que a perfeição formal, importava a necessidade que havia conduzido à manifestação resplandecente de um princípio funcional. Este movimento irrepreensível de exteriorização contava a odisséia do desejo em meio à floresta das substâncias e ao jogo das imagens. Do Pacífico chegavam objetos que as miragens da arte pela arte não podiam de modo algum conferir valor. Eles mostravam muito melhor as potências em seu momento de concentração cega, no instante em que elas se dispõem a romper as correntes. Estrelados de ríctus, falavam por gritos de pássaros. O mundo onde eles haviam nascido podia passar por um pesadelo povoado de plumas azul noturno. Toda a fauna da grande barreira de corais australiana deixara neles as suas cintilações ou lhes emprestara sua linguagem rangente. Do extremo norte chegava em cascata o riso dos Esquimós, tomado emprestado dos dez meses da noite vermelha, ao mesmo tempo que da cosmografia dos Pueblos. Os deuses das mitologias pré-colombianas continuavam a turbilhonar. Na Amazônia, prosseguiam os parlamentos dos pássaros, as levitações insanas cúmplices na graça e na glória. Entretanto o desbaratamento dos critérios estéticos não era o bastante. Assim que elas se tornaram mais bem conhecidas, as esculturas organizaram-se ilha por ilha, de modo a se aparentarem aos tipos tradicionais que tornavam mais perceptível a diversidade das origens e mais sensível a significação particular da vida humana e do mundo que lhe correspondia. Sabe-se que a estatuária africana respondia às expectativas graças aos refinamentos da madeira polida de uma concepção animista que busca perpetuar, nas suas operações, a ordem constante dos mundos. A imobilidade de uma tal concepção é própria de uma civilização de camponeses preocupados com a fecundidade de sua linhagem assim como de suas terras. As forças inimigas que arriscam, caso não se tome a devida cautela, comprometer toda fecundidade, as civilizações africanas opunham todas as potências de que dispunham. Se a generalidade de uma tal óptica, à qual devemos as deliciosas finesses da arte Baoulé, não deixa de dar margem na África a numerosas exceções, cujas mais notáveis para o surrealismo foram as esculturas dos Baga da Guiné, com a Oceania e a América tratava-se de toda uma outra dimensão do espírito; seguindo-se os escultores indígenas e melanésios, tratava-se de se aventurar na selva dos sonhos e de lá trazer, como um troféu de plumas de pássaros, os motivos de um encantamento durável. De uma margem a outro do Pacífico, desde o Arquipélago Malaio até Araucanía, passando pela Melanésia, Austrália, Colômbia Britânica e os Pueblos, a algumas reservas próximas em certas ilhas da Polinésia onde uma autocracia sem dúvida tardio transformou profundamente a sociedade indígena, é um mesmo modo de apreensão do mundo que se manifesta; um universo o mais apaixonado possível, geralmente formado de duas metades complementares, universo concebido como um andrógino, não mais primordial como nas especulações da antiguidade mediterrânea, mas atual e ativo, do qual todos as ameaças são dramas de amor [1]. A organização social desses universos deixa transparecer essa trama, às vezes mais geometrizada, como entre os índios Navajos cujas pinturas na areia traçam a rosa dos ventos de um espaço sagrado, outras vezes mais francamente sexualizada, como na Austrália ou na Melanésia, mostrando o estado de interpenetração do mundo social e do mundo natural interpretado pelas cosmogonias. Sem dúvida essa unidade de planos seria necessária em todas as áreas da ação humana para que uma mesma linguagem continue tendo curso de um para o outro e portando sua potência de maravilhamento em obras que tornam manifesta esta consciência elevada. Talvez o surrealismo deva tudo o que ele se tornou à via-claraboia dos malangans, que nas redes dos seus cipós e serpentes deixavam filtrar essa brisa noturna. Lá alguns oceanos interiores foram explorados pelas pirogas com cabeça humana ou pelos tubarões de madeira onde se guarda o crânio dos defuntos nas Ilhas Salomão. Nesse ponto temos consciência da debilidade de nossos sentidos: há muito tempo que os poetas, nas momentos em que retorna o sangue pagão, tinham suspeitado de que sentidos profundos e variáveis podem carregar-se as aparências. Os povos totemistas jamais foram atingidos por essa miopia que retira das formas todo seu valor sensível para lhes conferir uma estabilidade compatível somente com a utilização técnica. Para eles, como na atividade crítico-paranoica, não há realidade que não esteja a ponto de deslizar em direção a outra mais reveladora. Sem dúvida cabe novamente à escultura nos assegurar disso. Mas seja seu objeto puramente ritual ou não, é bem mais importante de assim ver objetivada uma abordagem da vida cotidiana, que jamais deixou de ser a do Surrealismo. Pois como se disse as palavras fazem amor, a partir do que se conclui que as formas do mundo fazem amor. Se por um lado as aparências são bem menos simples do que parecem, seu ser só se revela mediante uma igual equivalente, mediante a disponibilidade atenta necessária à recepção da mensagem interior. Isso é o que é preciso tanto para praticar a escrita automática quanto para perceber as ocorrências da magia cotidiana ou, às margens do Pacífico, para reconhecer os mortos que retornam nos grandes lagartos rosados. Mas não nos enganemos, o maravilhamento é atingido apenas ao fim da corrida, após aterradores encontros nas curvas dos caminhos. Os troncos das árvores são habitados. Na axila dos galhos há escotilhas que veem. Os velhos, que foram vistos desatando-se dos seus costumes de vivos e que não frequentam mais os povoados, mas sim a floresta, eles então trazem sucessivamente todos os seus adornos. Adornos do dia em que os pepinos-do-mar são celebrados, adornos da dança do tubarão e às vezes os adornos de guerra, que cortam o coração das mulheres. Pouco importa se as imposições do sonho, asperamente discutidas pelos que convivem com os espíritos, concernem antes de mais nada aos negócios públicos da tribo, a conduta dos indivíduos em meio às emboscadas das aparências ou apenas à ereção de uma escultura ritual; seja o que for, é algo que toma de imediato um lugar dentre os acontecimentos maiores da vida pública. Quando Dalí transpôs as intenções dos escultores ameríndios e oceânicos através da representação em trompe l’oeil das imagens do sonho, sua pintura tendia a derrubar as barreiras que faziam das intenções surrealistas uma ação de em grupo de artistas muito restrito. Mas embora mais discreta, a representação figurativa dos escultores das margens do Pacífico não é menos submissa a um julgamento público, que confronta seus elementos com um ensinamento legendário. É isso que mantém o rigor estilístico de uma arte que segue sendo tradicional. A extrema liberdade que pode ser vista reinando no interior destas províncias artísticas, tôdas diferentes entre si, define-as mais como territórios regidos por uma mesma gramática de formas, a única apropriada para expressar o gênio de cada povo. Da mesma forma que a escrita automática respeita integralmente a sintaxe corrente, o movimento espontâneo da expressão oceânica ou americana entrega seu butim de novas invenções sem inovações consideráveis no estilo. Trata-se de uma condição de receptividade ou de inteligibilidade. Mais que isso, trata-se da condição prática fora da qual a fidelidade à mensagem interior seria fatalmente perdida. Língua materna do artista, o estilo que lhe impõem os acasos de seu nascimento é a substância natural de sua ação. É a este idioma que ele recorre espontaneamente quando se encarna nele, como numa armadilha onde se precipitam os sais mais ativos do espírito público, a explosiva vontade de expressão de sua raça. Os ventos que passam, os nevoeiros, as correntes imperceptíveis que deslocam as águas profundas do oceano moderno, as migrações dos pássaros durante o equinócio, entrecruzam hoje suas rubricas nestas páginas brancas que pretendem ser as que ousam testemunhar os poderes do espírito. Sua herança está disposta na soleira com as lembranças da escola e o chumbo da mochilinha; a casa está aberta; assim desprezamos as pretensões do espírito de conduzir-se sabiamente, as quais são apenas uma maneira avarenta de moderar seus entusiasmos ou de consentir em seu exercício servil. De acordo com esse único critério é possível avaliar todo o patrimônio cultural. Através disso é dado a cada um o poder de assistir ao brotar desconcertante da mais cega das potências humanas, que derruba os tronos, fala na voz dos amotinados soberbos e fuzila os arcebispos nas Comunas, que leva de roldão as barragens pacientemente erguidas durante vinte séculos pelos senhores e seus escravos, e faz cair duras pedras na mão do poeta, nas quais se desgastam em vão as mós do pensamento encarquilhado e ponderado. Quero dizer que a atividade especulativa e a práxis não tem de ser colocadas em oposição, como decide uma interpretação maniqueísta do marxismo. Só os seus gritos, do fundo da noite antiga até aos derradeiros sobressaltos da história recente, ainda falam em honra do homem. Sua vontade prática, os gestos que lhe escapam, as palavras que chega a proferir, os emblemas que ergue na beira de seu caminho são os signos que equivalem ao seu protesto fundamental. Um certo número de anos, uma história de cócoras nos genuflexórios, daqui para a frente a espera será suficiente para nos sustentar com os seus cinemas de hipóteses? Espessos cálculos de plausibilidade não vencerão o poderio do fogo subterrâneo. Ele foi uma evocação cotidiana naquelas sociedades "primitivas" que se organizavam num plano dialético. Somente delas é que o Surrealismo deveria tirar uma lição capaz de embaçar e fazer murchar alhures a regular subordinação da expressão livre a fins de eficácia diferida ou de aquisição intelectual: todo a posse de espírito foi saldada nas ruínas, no dia seguinte às infames repressões, às quais não cabe extinguir o fogo iniciático. Aqui se abre um dossel de elevada folhagem. A gralha lhes levará em sua asa.

Vincent Bounoure, abril de 1967. Tradução de S. C. De F. Lima e Natan Schäfer. 1967-2020 Nota: [1] Gestes majeures.

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