Desde sua aurora e até hoje o movimento surrealista se mostra muito crítico ao
pensamento ocidental, sobretudo no que ele tem de esmagadoramente restrito ao
monoteísmo. De modo que para conduzir esta operação de grande envergadura
sobre a linguagem, o surrealismo busca energias e inspiração — i.e. o sopro das
musas — no outro e naquilo que está, de certa maneira, alhures. Isso é algo que já
vinha sendo afirmado nest’A Fresta há algumas semanas atrás, ao apresentarmos
“Eu, nós, feridos”, de Roger Renaud.
Dessa maneira, é muito natural que já nos anos 1920 os surrealistas enderecem uma
carta ao Dalai-Lama, convoquem seus leitores e amigos a pegar a estrada e apontem
suas proas em direção a tudo aquilo que não é compreendido pela civilização
ocidental como ela se expressa no senso comum e na racionalidade iluminista, mas
nem sempre iluminada.
É aí que se localiza seu interesse por culturas como a celta e outras então
denominadas “primitivas”, assim como pelo oriente, de onde, por sua vez, irradia o
Zen Budismo.
Existem vários pontos de contato entre o movimento surrealista e o Zen Budismo,
sendo que em O surrealismo face ao zen, texto que traduzimos e apresentamos n’A
Fresta desta semana pela primeira em português [1], Jean-Pierre Lassalle coloca diante
de nós algumas das pedras de toque desta intensa e rica relação.
Nesse texto, Lassalle acentua principalmente a relação de Guy Cabanel com o Zen
Budismo. Cabanel (Béziers, 1926) foi um dos poetas mais celebrados pelo grupo
surrealista de Paris após a Segunda Grande Guerra, sendo que Breton, que o recebe
em 1958 de braços abertos, afirma ser justamente para o tipo de linguagem expressa
em seus poemas que ele conservava o coração de sua orelha, afirmando que Cabanel,
Joyce Mansour, Jean-Pierre Duprey e Hervé Delabarre, são os principais poetas
surrealistas depois de 1945. Dentre as principais obras deste verdadeiro poeta que
segue dando a ver realizações inauditas, destacamos O Animal negro, um livro sui
generis.
Recentemente Jay Cruikshank, que possui um dos poucos exemplares originais do
volume, me contava que de fato esse livro tem algo de mágico e a experiência de
folheá-lo se aproxima de um sonho. Parece portanto muito justa e pertinente a
aproximação que Lassalle faz entre estes escritos, magnificamente iluminados por
Robert Lagarde, e os koans Zen, o que pode ser verificado nas citações a seguir:
Em certas regiões hipersensíveis acontece com frequência do negror escorrer e
grudar-se aos esmaltes da presa.
~ O lobo é o homem do lobo ~
É o que afirma Cabanel em O Animal Negro. Enquanto isso, na compilação O portal
sem porta, realizada pelo monge budista chinês Wumen Huikai no século XIII,
temos:
Um dia o Propagador-da-lei-[do-monte-do]-Quinto-Patriarca disse: “É como um búfalo que atravessando o cercado; sua cabeça, seu chifre e seus cascos passaram, mas porque seu rabo não pode passar?. [2]
Além disso, nessa carta com que Cabanel responde a Lassalle é importante notar o
rigor com que ele se debruça sobre o tema em questão. Isto é, aborda-o não como
alguém que se limita à imitação de uma fantasia e a uma tentativa de emulação de
trejeitos, que por sinal é o que mais comumente acontece na sociedade do espetáculo.
Para a sociedade do espetáculo basta o traje para que se faça o monge. Portanto, não é
de espantar a proliferação de ultrajes e tampouco que tantos se sintam tão mal e sua
própria carapaça.
Como já dizíamos no texto de apresentação a “Eu, nós, feridos”, a abordagem
surrealista do outro não busca “imitá-lo”, como faz o turista diante da jaula do
macaco, mas de fato de mergulhar o mais profundamente nas estruturas que fundam
o acontecimento, lançando-se sem rédeas na aventura.
Também temos de sublinhar que a relação do movimento surrealista com o Zen
Budismo não se limita ao que é referido por Lassalle. Seu artigo é breve e não teria
como dar conta de um campo que é vasto e, em grande parte, virgem aos olhares
analíticos. Ainda que o escopo desta apresentação tampouco nos permita
empreender um mapeamento e um estudo detalhado deste tipo, podemos deixar
algumas pistas dessas relações diretas citando os nomes de Jacques Lacomblez,
Meret Oppenheim, Marcel Duchamp, Jacques Lacan e, sobretudo, do próprio André
Breton.
Embora Breton não dominasse as línguas orientais, o que torna pouco provável que
ele tenha tido acesso direto aos textos orientais, é importante observar como seu
pensamento — e do surrealismo de modo geral — coincide em inúmeros pontos com
o do pensamento Zen, do qual o ponto sublime mencionado por Cabanel é um
emblemático exemplo.
Também no Brasil o surrealismo encontra o oriente, encontro este que deve muito a
atuação de Sergio Lima, que se refere com frequência ao Zen, o que pode ser
verificado tanto numa conversa quanto folheando A alta licenciosidade ou O corpo
significa. Sergio demonstra um interesse singular pelo oriente, tendo além do mais
sido um habitué do bairro da Liberdade em São Paulo e o responsável por chamar a
atenção de Breton e do grupo surrealista de Paris, quando este ainda se reunia no
café La Promenade de Vénus, para a exposição do monge Sengai Gibon que naquele
início dos anos 1960 estava ocorrendo na cidade.
Também é importante também chamar a atenção para a figura de Chiu Yi Chih,
professor de filosofia taoísta — da qual, como afirma Cabanel, o Zen Budismo “é
muito próximo” — e autor de uma obra marcada pelas conquistas da escrita
automática.
Ora, a escrita automática, os acasos objetivo e outros fundamentos que constituem o
movimento surrealista propõem, ao menos a partir de minha perspectiva — isto é, não é a de um adepto mas a de um mero interessado pelo Zen Budismo —, uma escuta do desejo, dos acontecimentos e dos fluxos, próxima àquela do Zen e distante da ocidental e monoteísta. Para concluir, podemos afirmar que esta última consiste na imposição violenta, mediante uma razão estreita utilizada como instrumento contundente, da suposta vontade de um alguém muito bem determinado — cabe a você a enunciação de seu nome.
Natan Schäfer
Curitiba, abril de 2022
*
O SURREALISMO FACE AO ZEN
Parece-me que a primeira alusão ao Zen figura no segundo número da revista
Medium, subintitulada Comunicação Surrealista e dirigida por Jean Schuster, de
fevereiro de 1954. Sob o título “Limites das duas experiências extremas”, somos
encarados por retratos postos lado a lado. À esquerda, o do Doutor Petiot, assassino
executado em 1946, e à direita, sob a figura do Dharma, o fundador da seita Zen,
Soga Yasoku, falecido em 1483 no Japão. Embaixo do Dharma há uma citação de um
livro de E. Grosse, O lavis no Extremo-Oriente (éditions Crés) [3]:
A figura do Dharma certamente não é o retrato fiel do fundador da seita Zen, como é provado por muitas variantes que existem por aí; elas próprias aliás representam somente uma imagem ideal do homem zen perfeito.
A segunda alusão se encontra no primeiro número da revista Bief, de 15 de novembro
de 1958, subintitulada Junção surrealista e dirigida por Gérard Legrand. Sob o título
“Leste-Oeste”, Bief sinaliza a existência de um “Grupo de estudos do surrealismo em
Tóquio, sob a égide de Shuzo Tokigucchi. Em meio aos membros desse grupo estão
Shin Oka, Jun Ebara, Koichi Ejima, Vémura Misaé, Yoshiyaki Tomo e Roger van Hecke’’. O último aí citado tornou-se um maçom do Rito Escocês na loja Thebah em 1960-1961. No Japão ele casara com Vémura Misaé, de quem fui muito próximo quando estava em Paris em 1959-1960, cidade onde o casal se estabelecera. Nesse mesmo número de Bief há um artigo intitulado De um carta de Guy Cabanel. Citando algumas respostas de mestres a discípulos da tradição Zen, Guy Cabanel as comenta nos seguintes termos:
estas collages de diálogos estabelecem uma correspondência que pode ser plenamente encontrada na beleza considerada como o encontro fortuito de uma máquina de costura com um guarda-chuva [4], nos procedimentos de Max Ernst, na poesia tal como foi definida por Reverdy e, em particular, no jogo das perguntas e respostas (a pergunta não sendo conhecida pelo inquirido). Tais métodos evidentemente não se dirigiam a uma compreensão intelectual. Seu caráter altamente irracional têm como objetivo criar um choque psicológico, com frequência duplicado por um choque exterior violento (vide os golpes de bastão dos mestres Zen e a convocação à violência do Segundo manifesto do surrealismo) [de André Breton] [5] que ele próprio determinará o alcance do ponto supremo.
Contígua a este artigo, um outro, intitulado Retórica do eclipse e assinado por Adrien
Dax, comenta o livro de Guy Cabanel, Ao animal negro, aproximando seus poemas
dos “diálogos Zen em razão das possibilidades também imprevistas da fala que aí se
afirmam” (Adrien Dax foi um pintor e desenhista-calígrafo originário de Toulouse,
que em 1970 realizou a meu pedido o desenho da fênix que está na capa de
Renascença tradicional [6]. Uma destas fênix também figura na capa de um de nossos
antigos Cadernos [7].
Estas linhas tiveram um eco no Japão, pois o segundo número da Bief, de dezembro
de 1958, faz referência a uma carta de Tóquio não assinada, mas que sei emanar de
Roger van Hecke, datada de 19 de novembro de 1958:
Nestes tempos nossos belos espíritos parisienses se monstram servis deleitando-se com o ‘Zen’ e outros ‘espiritualismos’. No Japão o Zen é o Bushido, o Bushido é o Nacionalismo, o Militarismo, o regime policial e todas suas consequências!
Este julgamento, muito reducionista, chocou muitos membros do grupo surrealista
de Paris, e Guy Cabanel continuou se interessando pelo Zen, sem renegar as
aproximações sutis que havia feito. Ora, quarenta e oito anos depois dessas linhas
(quase meio-século!) e a breve controvérsia que se seguiu a elas, Guy Cabanel teve a
amabilidade de endereçar-me suas reações ao artigo de Daniel van Assche publicado
no número 38 de nossos Cadernos da Aquitânia (notemos de passagem que nosso
amigo Daniel van Assche, como Roger van Hecke e Alain Jouffroy, é casado com uma
japonesa). Lembremos a nossos leitores que Guy Cabanel, um poeta secreto, vive em
Couserans, onde ele é, para retomar uma expressão de Mallarmé, não um “passante” [8], mas um “hóspede considerável” [9]. Eis aqui então sua reação:
Carta de Guy Cabanel a Jean-Pierre Lassalle datada de 31 de agosto de 2006:
“Encontrei sua carta com o Cahier d’Occitanie de junho e lhe agradeço por ter pedido
minha opinião sobre o estudo de Daniel van Assche.
Este artigo, que meu desconhecimento dos ideogramas não me permite de apreciar
inteiramente parece-me no entanto justo ao tratar da especificidade e das vias do
Zen, mas muito incompleto, e mesmo parcial, no que concerne a parte histórica, e
francamente tendencioso quanto às relações do zen com o bushido.
— Sobre a parte histórica: o autor parece fazer pouco caso da tradição chinesa. Penso
que ele é inexato ao pretender que o zen seja uma adaptação do budismo à sensibilidade japonesa. O Zen, denominação que traduz o termo chinês Tch’an, foi uma adaptação do budismo ao estilo do espírito chinês, resultado de seu encontro com o taoísmo do qual ele é muito próximo. O fato determinante foi a chegada na China, por volta do ano 500, de Boddhi-Dharma (Pou-tai para os chineses, Daruma para os japoneses) considerado como o primeiro patriarca do budismo Tch’an. Mas é a Houei-Neng (638-712), seu sexto patriarca, a quem devemos a verdadeira e sempre atual especificidade do tch’an:
não pense no bem, não pense no mal, mas veja neste momento tua face original que tinhas antes mesmo de vir à existência.
O tch’an foi introduzido muito tardiamente no Japão, cerca de cem anos depois de
Houei-Neng, e em todo caso bem depois de seus outros grandes mestres: Ma-Tsou,
Lin-Tsi ou Mou-Tcheou, ou seja, ao longo do século XII, onde ele assume o nome de
Zen e continua uma diversidade já anunciada na China que produz as tendências
Honen, Soto (com Dogen) ou Rinzai (com Mysam Eisai). Creio que quanto a isso é
muito importante notar que o Japonês não inventa, ele exacerba.
— Sobre a doutrina e seus métodos. Ao longo de seu capítulo sobre a via iniciática, o
autor sublinha a estreita relação existente entre o taoísmo e o zen (o yin-yang, o não-
agir…) reconhecendo portanto implicitamente sua origem chinesa.
Além disso, como não sonhar, lendo estas linhas, com aquele ponto do espírito
evocado por André Breton, onde os contrários deixam de ser percebidos
contraditoriamente 10? Por outro lado, as frases tiradas dos Evangelhos, que têm toda
uma significação racional, não tem nada que ver com o Koan, ao contrário dos jogos
e collages surrealistas.
— Sobre o bushido. De minha parte, não vejo relação entre Zen e bushido [Guy
Cabanel coloca aí um sinal de nota de rodapé e, em post-scriptum, detalha: ‘sinto
muito bem que em teoria é o zen que inspira o bushido e se pretendo não ver relação
entre eles é porque se trata somente, a meu ver, de um aspecto exotérico [11] do Zen.
Quanto à amazona que representaria o ideal feminino, tenho algumas dúvidas,
precisamente em um país onde as poetisas como Onon-no Komachi ou Minasaki
Shokotu ocupavam uma elevada posição social. Mas é verdade que o Japão é uma
terra de contrastes”]. Se podemos efetivamente aproximar o comportamento dos
cavaleiros europeus e dos nipônicos, não devemos ver aí a mesma implicação
religiosa. Enquanto o cavaleiro europeu se arvora como um campeão de Cristo [12], o
agir do samurai não leva em conta religião alguma. Além disso, você talvez vai dizer-
me que isso é somente uma questão de palavras, mas me parece constrangedor
assimilar o zen ao monoteísmo. Não há um verdadeiro deus nas religiões do
Extremo-Oriente.
— Enfim, espanto-me que o autor não mencione na bibliografia os Ensaios sobre o
budismo Zen em três volumes de D.T. Suzuki [13] , tampouco O não-mental segundo o
pensamento zen [14], do mesmo autor, e A doutrina suprema [15]”.
Este tão importante fragmento da carta de Guy Cabanel mostra que o notável
trabalho de Daniel van Assche não passou em branco. Esperemos que as portas
tenham sido abertas para novos artigos que aguardamos impacientemente.
Jean-Pierre LASSALLE
1 A versão francesa do texto foi publicada em: Cahiers d’Occitanie, n. s. n° 39, décembre 2006, p. 116-118.
2 Traduzido a partir da versão francesa de Catherine Despeux em La passe sans porte (Éditions Points, 2014).
3 Le Lavis en Extrême Orient (Éditions Crés, 1924), de Emil Grosse; tradução de Charlotte Marchand.
4 Cf. Os cantos de Maldoror, de Lautréamont.
5 N. do t.: as inserções entre colchetes no texto são do autor.
6 N. do t.: Renaissance Traditionnelle, revista fundada em 1970 por René Guilly e atualmente dirigida
por Roger Dacher, Pierre Mollier e Jacques Léchelle.
7 N. do t.: Cahiers de l'Occitane, ou em português, Cadernos da Aquitânia, revista na qual o presente texto foi pela primeira vez publicado. 8 N. do t.: provável alusão ao poema À uma passante, de Charles Baudelaire.
9 N. do t.: provável alusão ao poema Um Espetáculo Interrompido [Un Spectacle Interrompu], de Stéphane Mallarmé, que se inicia da seguinte maneira: “Como a civilização está longe de possibilitar os gozos que podem ser atribuídos a estado [de sonhação]! devemos, por exemplo, espantar-nos que em toda cidade grande não exista entre os sonhadores que aí se hospedam uma associação para prover um jornal que assinale os acontecimentos à luz que é peculiar ao sonho”.
10 Cf. Segundo manifesto do surrealismo (1930).
11 N. do t.: Não confundir “exotérico” — i.e., segundo o dicionário Caldas Aulete “Que pode ser ensinado em público (diz-se de doutrina filosófica ou religiosa)” ou “Que se mostra comum, vulgar” — com “esotérico” — ainda segundo o mesmo Caldas Aulete “ensinamento ministrado apenas a círculos restritos de estudiosos ou interessados” e também “que somente poucas pessoas ou iniciados conseguem entender”.
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