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o desejo à obra na história

Foto do escritor: sobinfluenciasobinfluencia

Atualizado: 24 de jan. de 2022


Colagem por @at0falho


A Fresta é uma coluna — uma colina — de periodicidade semanal dedicada a publicação de textos realizados no seio do movimento surrealista e arredores, de curadoria de Natan Schäfer.

 

Vratislav Effenberger (1923-1986) — ao lado de Karel Teige, Jindřich Štyrský, Toyen, Jan Švankmajer, dentre outros — é um dos maiores nomes do surrealismo na Tchecoslováquia. Autor de uma extensa obra, em grande parte inédita, Effenberger foi responsável pela manutenção de paradigmas fundamentais do movimento surrealista, assim como pela promoção de uma renovação de seu “sistema” de pensamento, introduzindo conceitos como “conflito evolutivo” e as “funções críticas da irracionalidade concreta”.

O texto cuja tradução aqui apresentamos — até onde temos notícia o primeiro do autor a ser publicado em português — foi extraído da coletânea La civilisation surréaliste (Payot, 1977), importante volume organizado por Vincent Bounoure que reúne um grande número de ensaios produzidos pelos continuadores do grupo de Paris após a tentativa de dissolução de 1969.

 

O desejo à obra na história

De maneira mais acentuada do que posteriormente, sem dúvida dos seus períodos intuitivos até o Segundo Manifesto [1], o surrealismo é provocação: sua irrupção obedece à necessidade de manifestar explosivamente o conflito entre as funções autênticas às quais a vida social deve fornecer resposta e as catástrofes de fato: as consequências repressivas da evolução histórica. No momento mais apropriado, este conflito ilustra a oposição entre uma “racionalidade” formal, senão de pura aparência, e as energias do desejo, para cuja definição dos contornos Freud acabava de contribuir. Assim como a noção de inconsciente pode ser esclarecida somente a partir do dia em que tornou-se consciente a existência de uma realidade denominada por ele, assim as forças que o constituem podem ser qualificadas como irracionais somente por oposição à uma racionalidade anterior, convencional e formalizada. No debate do possível e do real (onde podemos ver o primeiro impulso da história, mas que a cada instante também define-lhe o sentido), a particularidade dos sistemas de frenagem, aos quais é incumbida a estabilização do navio social, é afirmar a racionalidade do poder repressivo para lançar uma luz de irracionalidade suspeita sobre as tendências em oposição e sobre o dinamismo de sua revolta. No país do cartesianismo, naquele de Hegel e em todos seus estados, a identidade entre racionalidade e realidade permite repelir e lançar no nada os fatos mais bem comprovados, pela única razão de que a lógica de Port-Royal [2] não os teria considerado. Constatamos que este pretenso racionalismo, reclamando aulas de história conforme suas necessidades ou mais raramente confessando suas origens religiosas, na verdade dominou o real exclusivamente à serviço do poder em exercício.

A onipotência do desejo, que o surrealismo afirma desde sua origem, opondo-a à pseudo-racionalidade de um civilização em queda, está muito longe de satisfazer-se com os territórios da utopia. Ela expressa-se tão bem pela voz de Sade [3] quanto pela de Fourier [4]; ela exalta ao infinito o possível para além das perspectivas imediatas que delimitam os baluartes erguidos pela racionalidade repressiva do sistema no poder. Neste sentido o grande desejo de Fourier, a harmonia passional na ordem psicossocial, não é menos agressivo, não tem menos potência de choque do que o cinismo apaixonado de Sade. A imaginação e o desejo, quando intrometem-se na história, parecem dispor de um força oculta cuja eficácia está não somente em sua potência de cavar trincheiras, mas também em sua potência criadora e no pleno exercício do pensamento mítico. Este, tendendo a conferir um sentido unitário à vida individual, às paixões, ao amor e à vida coletiva inteira cadastrada em sistemas ideológicos, ilustra a fase ativa do desejo e sua historicidade. Pois neste momento do desejo, onde ele torna-se pura sedição, momento sempre recomeçado, a unidade da consciência e da existência encontra sua atualização. Podemos supor que sequer uma sociedade tenha podido sobreviver sem o exercício de suas funções mitológicas: amplamente reconhecidas por muitas civilizações antigas e distantes, claramente eficazes no nazismo e stalinismo, elas ainda estão ativas na sociedade de consumo, disfarçadas em alguma racionalidade qualquer.

Inquietando-se com as condições propícias ao nascimento de mitos, examinando seu modo de elaboração e seus meios de ação, reconhecendo nestas desconcertantes criações e na obra da fantasia humana, no sentido mais forte do termo, os produtos sublimados da vida instintiva, o surrealismo veio a conceber como passíveis de serem opostos uns aos outros os mitos que concorrem para a manutenção do poder repressivo e aqueles que, formando a manifestação inovadora dos movimentos de afetividade profunda, fazem-nas passar do virtual ao atual numa formulação liberadora.

A estes últimos opõem-se essencialmente o mito cristão, as mitologias nacionalistas, os cultos à personalidade, os mitos da moral burguesa, as mitologias substitutivas — e mais que repressivas, como diz Marcuse [5] — da sociedade de consumo: estes são apenas alguns exemplos dentre muitos outros inimigos aos quais o surrealismo opôs sucessivamente as ações que fazem a substância de sua evolução e que, a princípio, são sinalizadas por este denominador comum. É pelo preço deste julgamento crítico sobre a natureza dos mitos e sobre seu sentido, julgamento cujos considerandos hoje sem dúvida não passam de esboços, que o surrealismo abre seu caminho em direção à uma consciência reorganizadora e pode eficazmente tender à uma refundação do entendimento em torno do desejo: que enfim o desejo aja em plena luz do dia, ele no qual reside todo o dinamismo da história e do mundo!

Vratislav Effenberger

Tradução por Natan Schäfer

 

Notas: [1]: Segundo manifesto do surrealismo, publicado por André Breton em 1930, disponível em português no volume Manifesto do surrealismo (Nau Editora, 2004; tradução de Sergio Paxá). [2]: Nome de um famoso manual de lógica publicado no século XVII pelos jansenistas Antoine Arnauld e Pierre Nicole na França. [3]: O aristocrata revolucionário e libertino Donatien Alphonse François de Sade, o Marquês de Sade (1740 - 1814), autor de Os crimes do amor (1799), dentre outros. [4]: François Marie Charles Fourier (1772 - 1837), conhecido como Charles Fourier, socialista libertário e utópico francês, criador dos falanstérios e autor da Teoria dos quatro movimentos (1808), dentre outros. [5]: Em Eros e civilização (1955), de Herbert Marcuse (1898-1979).

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