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pequenas prosas infinitivas-derivantes

Atualizado: 31 de jan. de 2022


Still do registro realizado por Alejandro Chab e Alejandra Iscoff de sua visita a Jacques Lacomblez, 2015.


 


A Fresta é uma coluna — uma colina — de periodicidade semanal dedicada a publicação de textos realizados no seio do movimento surrealista e arredores, de curadoria de Natan Schäfer.




 

Jacques Lacomblez


Em certas ocasiões, sinto-me chamado pelo mistério de nomes até então supostamente desconhecidos. Foi o que se deu com Jacques Lacomblez.

Nascido em Bruxelas em 1934, este ymagier [1], como ele mesmo define sua atividade, é uma importante figura do surrealismo. Diretor da revista Edda, “caderno internacional de documentação sobre a poesia e a arte de vanguarda”, ele traz um aporte importante ao movimento surrealista, como outros de seus conterrâneos belgas, muitas vezes ofuscados pelas luzes de Paris. Dentre suas contribuições mais recentes estão a coletânea de poemas Blanc sommeil (Quadri, 2021) e os desenhos para Uma breve! uma longa! [Une brève ! une longue !] (Éd. Le Grand Tamanoir, 2017), de Georges-Henri Morin.


Em entrevista a Pascal Goffaux [2], para a RTBF, Lacomblez situa três estrelas na constelação que compõe seu caminho pela pintura: De Chirico, cuja revelação teve aos quinze anos; Max Ernst, que segundo ele ensina sobretudo “como fazer”; e Kandinsky, responsável pelo “grande laboratório do século”.


Ainda com relação à sua pintura, afirma que procede à “criação da tela pelo acaso”, uma vez que para ele, e como muitos dos que buscam o maravilhoso puderam vivenciar, “é a meta que me parece perigosa, o objetivo”. Assim, “cria uma tela de suscitações”, como afirmava seu amigo Marcel Lecomte [3]. Atento aos ensinamentos taoístas, Lacomblez complementa:


Suscitar caminhos e depois segui-los fielmente não sabendo para onde a gente está indo, como se estivéssemos descobrindo uma floresta árvore após árvore, desconhecendo absolutamente o que está acontecendo atrás da primeira árvore.

E prossegue:


Eu não sei para onde estou indo (...). O que importa é a viagem e o encontro”.

Assim, concordo com Lacomblez quando ele afirma que sua pintura se organiza de forma mineral, em estratos e tendendo a “suprimir o antropocentrismo”. Aliás, segundo ele, “a obra do homem torna-se ou faz parte da natureza”, o que concorda com a visão expressa por Philippe Audoin no texto Macaqueando a natureza [Singes de nature] (A Fresta impressa, nº 3).


Este caráter mineral, ou mesmo natural, de sua obra nos indica mais algo que também já mencionamos anteriormente n’A Fresta. Assim como a precipitação da chuva apresenta uma relação analógica para com a erupção de um vulcão, no movimento surrealista as diferentes, assim denominadas, “expressões artísticas” são vasos em permanente comunicação. É muito comum que um mesmo sujeito dê passagem às suas criações nas mais diversas “linguagens” ou “técnicas” (pintura, escrita, música, etc.), uma vez que justamente o acento não se encontra nos aspectos técnicos formais do fazer — embora seu domínio seja necessário para evitar a obstrução do acontecimento —, mas sim na poesia que ele é capaz de precipitar. E cabe insistir: por poesia entende-se o maravilhamento para além do literário. Via de regra, sabemos que onde há muita literatura abunda o tédio e falta poesia.

Contudo, é preciso sublinhar que isso não exclui o conhecimento da tradição com vistas ao porvir e também os momentos rebeldes em que a poesia irrompe justamente das gavetas e estantes que tentam categorizá-la e neutralizá-la. É assim que Lacomblez mergulha na obra de Stéphane Mallarmé. Como ele mesmo diz: “eu nado em Mallarmé”. E diríamos que não só nada, como vai às profundezas deste enorme poeta, que costuma a ser reduzido à “dificuldade” de seus escritos, a ponto de para o senso comum letrado “mallarmeano” ou “mallarmaico” serem adjetivos utilizados indiscriminadamente para referir-se a poemas impenetráveis e difíceis. Mas o que isso quer dizer?


Antes porém, façamos um breve excurso pelos “mallarmeanos” e “mallarmaicos”, adjetivos sinônimos cuja diferença fundamental é que o primeiro se estabelece a partir do sufixo latino -nus, o qual indica procedência, origem, pertencimento, como em Cambriano — de Cambria, nome latino do País de Gales—, serrano e pubiano; enquanto o segundo se forma a partir do sufixo grego -ικός, que indica pertencimento e maneira, porém que chega ao português a partir do grego antigo, utilizado sobretudo em termos científicos, como jurássico, psíquico e esotérico.


Para além de sua constituição etimológica, é interessante notar que no Brasil, ao que parece, o adjetivo “mallarmaico” é o preferido dos poetas concretos, que embora tenham conduzido um importante trabalho de tradução e divulgação da obra deste poeta, é importante que lembremos, contribuíram para a apresentação de uma leitura de uma faceta de um determinado Mallarmé [4], ocultando aquilo que não lhes interessava e assim enquadrando-o em seus discutíveis métodos e objetivos. Por outro lado, tanto André Breton quanto Julio Cortázar, ambos amigos próximos de Jacques Lacomblez, utilizaram o adjetivo “mallarmeano” [5], para referir-se aos seus poemas de juventude. Em 1921, numa carta endereçada a Jacques Doucet, Breton afirma: “Nesta época [em Nantes, no ano de 1916] eu compunha poemas mallarmeanos”. Cortázar, por sua vez, afirma sucintamente, em entrevista a Luis Harss [6], que seus primeiros sonetos, publicados sob o pseudônimo de Julio Denis, eram “muito mallarmeanos”.


A meu ver, no que diz respeito a Mallarmé, a preferência por um ou outro adjetivo para referir-se ao seu nome não é tão relevante [7] quanto a sua recepção e o modo pelo qual ela se dá, a qual continua sendo de suma importância. “Mallarmeano” ou “mallarmaico” segue sendo sinônimo de difícil.

Para além de denotar algo cuja “compreensão” — e aqui caberia pensar o que entendemos por “compreender” ou “entender” algo — exige um vasto repertório, “difícil” é aquilo que abre um caminho novo e, eventualmente, é a constatação daquele que, ao deparar-se com este caminho, ainda não entregou-se à jornada.


Assim sendo, existe uma condição que contribui para a leitura de um poema digamos, com muitas ressalvas, surrealista, ou seja, um poema capaz de provocar efetivamente poesia: a saúde [8], já sinalizada por André Breton em Signo Ascendente [9]. Nesta condição há libido suficiente tanto para fruição em si, que prescinde da hermenêutica e da exegese, quanto para a re-produção dos caminhos que conduziram à cristalização.


Portanto, para melhor sentir as vibrações da correia de transmissão do surrealismo, convém a salutar [10] passagem por Mallarmé — assim como por Baudelaire, Cruz e Sousa e outras simbolistas cruciais —, elo que permite com que, como afirma o poeta, todo pensamento emita um lance de dados.


E para dar a ver os elos e os lances, apresentamos nest’A Fresta, pela primeira vez em português, o primeiro texto do volume Pequenas prosas infinitivas-derivantes, dedicado a este outro grande poeta que é Guy Cabanel. Já nas primeiras linhas deste texto soam os harmônicos [11] dos símbolos, de modo que convoca à leitura profunda e de cor:


Não há mais nada que aflore na Mansão do Emblema que não seja fundado pela ausência.

Diante deste portal, vale a pena lembrar que “emblema” é uma das formas alquímicas de transmissão de saber, baseada num enlace não-discursivo entre a letra e a imagem; e que a Mansão, com maiúscula, aponta para as casas filosofais, como as estudadas por Fulcanelli em O mistérios das catedrais ou em As casas filosofais. Para além do sentido lato destas “casas”, pelas quais Fulcanelli compreendia “todo suporto simbólico da hermética Verdade”, em sentido estrito lembramos que as obras arquitetônicas também são um mutus liber, ou seja, um “livro mudo”, como nos lembra o diálogo entre Fedro em seu diálogo com Sócrates no Eupalinos ou o Arquiteto, de Paul Valéry:


Diz-me (pois és tão sensível aos efeitos da arquitetura), passeando pela cidade não observastes que, dentre os edifícios pelos quais ela é povoada, uns são mudos; outros falam; e outros enfim, os quais são os mais raros, cantam? [12]

E ainda gostaria de chamar a atenção para o enxame evocado nesta primeira das Pequenas prosas infinitivas-derivantes, e que também se relaciona com a “casa”. Até ler este texto jamais havia tido consciência de que as abelhas formam um enxame para deixar uma colmeia em direção da outra. Daí o verbo enxamear, que em francês tem como radical o verbo amar e que aqui traduzimos por “em enxame”, para manter o radical vinculado ao amor. Sublinho que este enxame não diz respeito ao enxame digital sobre o qual discorre o filósofo Byung-Chul Han em No enxame [Im Schwarm] (Vozes, 2013), uma vez que o mesmo significado é expressos por palavras que têm etimologias diferentes em alemão e português: em português, enxame provém do latim ex-agmen, algo como “conduzir para fora”; enquanto em alemão, Schwarm — palavra que designa tanto enxame de abelhas quanto a amada ou o amado, ou coloquialmente o “crush” — surge a partir do radical Proto-Indo-Germânico swer-, que indica zumbido, apontando portanto para uma origem onomatopaica da palavra.


Embora estas anotações de leitura e tradução pareçam corroborar a exigência de um repertório para entrar neste poema, lembramos que a vivência e vidência da imagem são chaves que podem conduzir a intuição à revelação das cintilâncias da poesia, das quais o ser jamais volta igual ao que fora — como bem o saberá aquele que “chamar lá longe um horizonte que tranca a porta”.

Natan Schäfer
26-27.01.2022
 

Pequenas prosas infinitivas-derivantes

Para Guy Cabanel


I


Não há mais nada que aflore na Mansão do Emblema que não seja fundado pela ausência.

Senão alguma pálida errância, magro langor do Velo,

onde o sujeito se esvazia na frase em enxame — amar ainda é escolher-se disperso?

Senão o amargo desejo de peneirar o Tempo, entregar o metal elevado

pelo braseiro de palha.


Vias infinitivas: sob a soberba das penteadeiras evidentes,

ousar gravar com um canto primeiro a carne morta do verbo.

Assim intimar o silêncio, pelagem do nada, a içar com ouro,

em seu lugar de sombra, o rito auricular.


Chamar lá longe um horizonte que tranca a porta.


"Beijei a Alvorada de verão" [J'ai Embrassé l'Aube d'Été] (verso de "Aube", de Arthur Rimbaud), 1997. por Jacques Lacomblez.

 

NOTAS:

[1]: Título de uma publicação dirigida por Alfred Jarry e Remy de Gourmont e também como era conhecidos os fabricantes de imagens — como das cartas do Tarô ou das Imagens d’Épinal — na Idade Média.

[2]: As citações de Lacomblez a seguir foram extraídas desta entrevista, que em abril de 2016.

[3]: Um registro do lento fazer que permite a germinação destas suscitações foi realizado por Ludovic Tac no documentário Jacques Lacomblez: marxista e surrealista [Jacques Lacomblez : marxiste et surréaliste], (Plan Large Production, 2011).

[4]: Trabalhos como a recentemente publicada tradução de Álvaro Faleiros de Um lance de dados (Ateliê Editorial, 2017) tem contribuído muito para ampliar a recepção de Mallarmé e restituir-lhe a riqueza.

[5]: Em francês, até onde tenho conhecimento, não há uma variante para este adjetivo. Em espanhol, sim, também pode se dizer “mallarmaico”.

[6]: Publicada sob o título "Julio Cortazar o la cachetada metafísica", em Los nuestros (Sudamericana, 1967).

[7]: Embora tenha uma leve suspeita difícil de ser empiricamente verificada de que “mallarmaico” continua possuindo ares “concretos”.

[8]: Além da saúde poderíamos incluir aqui a tristeza, ou mais precisamente a “sinkenende Traurigkeit” de que fala Kant, e que não necessariamente forma um par antinômico com a saúde, parece-me conduzir a uma identificação e projeção. Porém, sua discussão foge ao escopo desta apresentação.

[9]: Texto publicado n’A Fresta online. Disponível aqui. Acesso em 26 de janeiro de 2022.

[10]: “Nesta bela embriaguez me lanço/ Sem mesmo temer o balanço/ A erguer a saudação de pé // — Solitude, recife, estrela —/ Ao que for digno, a tudo que é/ O branco afã de nossa vela”, últimos versos do poema Salut [Brinde ou Saudação], de Stéphane Mallarmé, na tradução de Dante Milano.

[11]: O escopo desta apresentação infelizmente não nos permite abordar também as profícuas relações da obra de Jacques Lacomblez com a música, as quais passam pelo ritmo do vazio de Mallarmé e pelo silêncio de ouro de Breton. Contudo, indicamos a Sinfonia nº 8 em Dó Menor, de Brückner, compositor mencionado por Lacomblez, e a seguinte citação de Breton (apud Gérard Legrand, in: Potências do Jazz, [Puissances du Jazz], Arcanes, 1953):


Ao não mais reconhecerem para si uma origem e um fim em comum no canto, a música e a poesia tem tudo a perder e permitem com isso que a boca de Orfeu se distancie cada dia um pouco mais da lira da Trácia. O poeta e o músico degenerarão se persistirem agindo como se estas duas forças jamais devessem novamente encontrar-se… É preciso querer unificar e re-unificar a audição, no mesmo grau que é preciso unificar e re-unificar a visão. — “Mensagem automática”, in: Le point du Jour (Gallimard, 1934) [tradução nossa].

[12]: Tradução nossa.




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