top of page
Foto do escritorsobinfluencia

preparação à poesia

Atualizado: 29 de jun. de 2021


Collage de Jorge de Lima

 



A Fresta é uma coluna — uma colina — de periodicidade semanal dedicada a publicação de textos realizados no seio do movimento surrealista e arredores, de curadoria de Natan Schäfer.

 

Inserções: Trecho do documentário Guerreiros de Jorge, dirigido por Marco Aurélio e Rubens Pablo Suassuna. Trecho do livro Guerra dentro do beco (Civilização Brasileira, 1997).

Trecho de Minha crença (Horondino Silva "Dino" / Del Loro) interpretada por Orlando Silva (78 rpm, 1945).

 

Jorge de lima (1893 - 1953) foi um poeta integral cuja aventura foi além. Brasileiro polímata que encontrou expressão tanto na imagem quanto na letra, Lima legou-nos uma obra singular, convulsiva e ascendente. Não seria exagero ver no autor da Invenção de Orfeu (1952) a figura do arqueólogo pioneiro. Afinal, tampouco seria exagero atribuir a ele a aparição da collage no Brasil — aparição esta lançada às sombras graças a uma ardilosa manobra do modernista Mário de Andrade, que designou como “fotomontagens” as imagens apresentadas no volume A pintura em pânico (1943) — manobra denunciada por Sergio Lima no segundo tomo da sua vasta obra A aventura surrealista (Edusp), estudo incontornável das atividades surrealistas e seus arredores no Brasil; e pela ocupação “Mario, collage não é fotomontagem”, apresentada por Bruno Barnabé e Rodrigo Qohen na Livraria Acervo, em outubro de 2019.

O texto que apresentamos n’A Fresta desta semana foi originalmente publicado em 22 de abril de 1951, na coluna Preparação à poesia, mantida por Jorge de Lima no suplemento Letras e artes do jornal A Manhã.

Neste texto, composto por uma série de notas, Lima aborda, dentre outros assuntos, as relações entre a poesia e o sagrado, este último numa versão delirante de um Catolicismo que, em certa medida, poderia ser classificado como herético, dada a negação da religiosidade autoritária expressa sobretudo pelo Velho Testamento — para citarmos somente um exemplo de discordância para com as encíclicas e dogmas do Vaticano. É importante destacar que este caminho trilhado por Jorge de Lima, no qual é acompanhado por Murilo Mendes e Ismael Nery, apresenta várias ressonâncias para com a metafísica igualmente singular e subversiva de Malcolm de Chazal — cujo texto Riso animal publicamos n’A Fresta; com o humanismo cristão de François Mauriac; com a teologia do corpo, de Georges Bernanos.

E para além do essencialismo metafísico, não são poucos e fortuitos os vasos que comunicam Jorge de Lima com o movimento surrealista e seus arredores. Para mencionar somente alguns poucos, que surgem no texto que segue, poderíamos citar: a crítica aos avanços irracionais da ciência; a discussão do lugar e das fronteiras do eu e seus atravessamentos; a confluência dos contrários num ponto focal de suspensão; a consideração da poesia para além da página, e da arte para além do estetismo; etc.

Assim, Jorge de Lima apresenta esta preparação permanente e portanto sempre atual mediante ativação. Pois, como ele mesmo diz aqui “a poesia é próxima” — ao que poderíamos responder com o grupo de Paris, em sua Ruptura Inaugural [1] de 1947, “O SURREALISMO É O QUE SERÁ”.

 

PREPARAÇÃO À POESIA A poesia, em si mesma, esparsa naquele céu, naquelas praias, naquelas densas florestas do dia da descoberta do Brasil. A poesia era tanta que transformava tudo em si mesma. A carta de Caminha ficou poema, o índio em símbolo de poesia e de revolução. * A criação interrompendo a eternidade humanizou a poesia. * Ah! a luta para o desnudamento terminado para sempre com a queda! A veste do pudor, a veste contra as intempéries, as superestruturas exóticas aderidas à pele, as cinzas dos mortos cada vez mais densas. Dizia Gide que “Le nourritures terrestres” reagindo contra certas interpretações, falsas no seu entender, são a apologia do desnudamento. François Paul Alibert acha que “la plupart des livres de Andre Gide ne sont plus qu’une série de dépouillements successives” [2]. * D.S. Mirsky escreve em Commerce: “A definição mais ambiciosa que se pode dar, de poesia: uma ética não-euclidiana”. * Prece e poesia. Escreveu um estudiosa da Liturgia que os anjos rebeldes e os nossos primeiros pais caíram porque não oraram. Foram eles os iniciais antipoe-[tas]. * Não houve, não há, não haverá nenhum século desprovido de poesia. Confunde-se às vezes poesia com versificação. De nenhum século a poesia está ausente. Não devemos procurá-la em muitos livros que se intitulam de poesia, mas fora deles. A poesia é próxima. * “Ainsi pria Madeleine aux pieds de Jesus, non par formules ou par discours. Non! Ses larmes prient, son attitude prie, sa chevelure en désordre prie” [3]. Jos. Schrijvers. * Artes plásticas, música, poesia, tudo isto corresponde a um grau de ser, a uma forma de realidade interior e não a um destino ou solução à fome do espírito cristão. A arte desenvolve em nós uma determinada grandeza intelectual, uma certa virtualidade, sublima algumas de suas realidades, por vezes entremostra uma parte de sua Verdade complexa. A música para nós é a música pura; não podemos aceitar uma música obediente a um programa literário, música para contar coisas estranhas à sua essência, por exemplo. * Esta concepção forma[dora] da arte nos explica o que a experiência nos ensina: a arte não é por si só o corolário do profundo problema da vida e da meta para que o homem se encaminha. Em seu contato a vida pode adquirir uma grande força, mas a arte, apesar de toda sua amplitude, não a dessedenta. A alma estética é infecunda; esta esterilidade, esta aridez, esta infecundidade, esta precariedade transparecem nas obras não irrigadas de sangue metafísico. * Minha apreensões sobre a pesquisa moderna da ciência são dirigidas não contra a ciência, porque a ciência é neutra, mas contra a sua aplicação como força de morte, contra o uso injustificado da máquina, contra a mecanização da vida humana; a máquina e laboratório contribuem para o bem estar do homem quando este controla seu emprego e não consente que tais forças encurralem o seu destino. Devo, pois, aceitar o verdadeiro espírito científico como uma das expressões da alma criadora do indivíduo. Quanto à cultura atual, não acho que se ocupe somente das coisas materiais e que nem tudo nela é condenável. Ela pode ter tido um eclipse em sua fé na religião, mas não na humanidade. O homem, por sua essência, é espiritual, a sua contingência não é de ser imperfeito nem perfeito, mas de tender à perfeição.

* Se nós considerássemos a civilização pela sua encenação, enganar-nos-íamos seriamente, porque o ideal da atividade humana é verdadeiramente o da alma: sua sanção se acha dentro das consciências e não no que lhe é estranho como salvação ou mito. Esta atitude do homem é essencialmente espiritual. Foi esse mesmo espírito que recusou aceitar como definitivos os limites da natureza ordenados pela superstição científica do século. A natureza criou o homem com o medo da morte para assim moderar seu poder dentro dos limites da possibilidade, mas o homem zombou da Morte, destruiu as fronteiras e subverteu o poder de voar; perdido com a queda, ao mesmo tempo pretendeu tornar-se ubíquo, profeta, quase angelical de novo. Mas, neste momento em que se tornaram fáceis as relações entre os homens mais distantes, e que os povos e nações chegaram a se conhecer de diversos modos, poder-se-ia imaginar que o momento de fundir suas divergências numa única comunidade houvesse surgido afinal. Infelizmente, quanto mais se abrem as portas e as fronteiras se desmoronam, mais a consciência da distinção individual ganha em força centrífuga.

Jorge de Lima Curado por Natan Schäfer

 

Notas: [1] Rupture Inaugurale: panfleto publicado em 21 junho de 1947 pelo grupo surrealista de Paris. [2] Tradução nossa: “A maioria dos livros de Andre Gide não passam de uma série de despojamentos sucessivos”. [3] Tradução nossa: “Assim rezava Madalena aos pés de Jesus, não em fórmulas ou discursos. Não! Suas lágrimas rezam, sua atitude reza, sua cabeleira em desordem reza”.

17 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page