A Fresta é uma coluna — uma colina — de periodicidade semanal dedicada a publicação de textos realizados no seio do movimento surrealista e arredores, de curadoria de Natan Schäfer.
Inserções: Trecho do documentário Guerreiros de Jorge, dirigido por Marco Aurélio e Rubens Pablo Suassuna. Trecho do livro Guerra dentro do beco (Civilização Brasileira, 1997).
Trecho de Minha crença (Horondino Silva "Dino" / Del Loro) interpretada por Orlando Silva (78 rpm, 1945).
Jorge de lima (1893 - 1953) foi um poeta integral cuja aventura foi além. Brasileiro polímata que encontrou expressão tanto na imagem quanto na letra, Lima legou-nos uma obra singular, convulsiva e ascendente. Não seria exagero ver no autor da Invenção de Orfeu (1952) a figura do arqueólogo pioneiro. Afinal, tampouco seria exagero atribuir a ele a aparição da collage no Brasil — aparição esta lançada às sombras graças a uma ardilosa manobra do modernista Mário de Andrade, que designou como “fotomontagens” as imagens apresentadas no volume A pintura em pânico (1943) — manobra denunciada por Sergio Lima no segundo tomo da sua vasta obra A aventura surrealista (Edusp), estudo incontornável das atividades surrealistas e seus arredores no Brasil; e pela ocupação “Mario, collage não é fotomontagem”, apresentada por Bruno Barnabé e Rodrigo Qohen na Livraria Acervo, em outubro de 2019.
O texto que apresentamos n’A Fresta desta semana foi originalmente publicado em 22 de abril de 1951, na coluna Preparação à poesia, mantida por Jorge de Lima no suplemento Letras e artes do jornal A Manhã.
Neste texto, composto por uma série de notas, Lima aborda, dentre outros assuntos, as relações entre a poesia e o sagrado, este último numa versão delirante de um Catolicismo que, em certa medida, poderia ser classificado como herético, dada a negação da religiosidade autoritária expressa sobretudo pelo Velho Testamento — para citarmos somente um exemplo de discordância para com as encíclicas e dogmas do Vaticano. É importante destacar que este caminho trilhado por Jorge de Lima, no qual é acompanhado por Murilo Mendes e Ismael Nery, apresenta várias ressonâncias para com a metafísica igualmente singular e subversiva de Malcolm de Chazal — cujo texto Riso animal publicamos n’A Fresta; com o humanismo cristão de François Mauriac; com a teologia do corpo, de Georges Bernanos.
E para além do essencialismo metafísico, não são poucos e fortuitos os vasos que comunicam Jorge de Lima com o movimento surrealista e seus arredores. Para mencionar somente alguns poucos, que surgem no texto que segue, poderíamos citar: a crítica aos avanços irracionais da ciência; a discussão do lugar e das fronteiras do eu e seus atravessamentos; a confluência dos contrários num ponto focal de suspensão; a consideração da poesia para além da página, e da arte para além do estetismo; etc.
Assim, Jorge de Lima apresenta esta preparação permanente e portanto sempre atual mediante ativação. Pois, como ele mesmo diz aqui “a poesia é próxima” — ao que poderíamos responder com o grupo de Paris, em sua Ruptura Inaugural [1] de 1947, “O SURREALISMO É O QUE SERÁ”.
PREPARAÇÃO À POESIA A poesia, em si mesma, esparsa naquele céu, naquelas praias, naquelas densas florestas do dia da descoberta do Brasil. A poesia era tanta que transformava tudo em si mesma. A carta de Caminha ficou poema, o índio em símbolo de poesia e de revolução. * A criação interrompendo a eternidade humanizou a poesia. * Ah! a luta para o desnudamento terminado para sempre com a queda! A veste do pudor, a veste contra as intempéries, as superestruturas exóticas aderidas à pele, as cinzas dos mortos cada vez mais densas. Dizia Gide que “Le nourritures terrestres” reagindo contra certas interpretações, falsas no seu entender, são a apologia do desnudamento. François Paul Alibert acha que “la plupart des livres de Andre Gide ne sont plus qu’une série de dépouillements successives” [2]. * D.S. Mirsky escreve em Commerce: “A definição mais ambiciosa que se pode dar, de poesia: uma ética não-euclidiana”. * Prece e poesia. Escreveu um estudiosa da Liturgia que os anjos rebeldes e os nossos primeiros pais caíram porque não oraram. Foram eles os iniciais antipoe-[tas]. * Não houve, não há, não haverá nenhum século desprovido de poesia. Confunde-se às vezes poesia com versificação. De nenhum século a poesia está ausente. Não devemos procurá-la em muitos livros que se intitulam de poesia, mas fora deles. A poesia é próxima. * “Ainsi pria Madeleine aux pieds de Jesus, non par formules ou par discours. Non! Ses larmes prient, son attitude prie, sa chevelure en désordre prie” [3]. Jos. Schrijvers. * Artes plásticas, música, poesia, tudo isto corresponde a um grau de ser, a uma forma de realidade interior e não a um destino ou solução à fome do espírito cristão. A arte desenvolve em nós uma determinada grandeza intelectual, uma certa virtualidade, sublima algumas de suas realidades, por vezes entremostra uma parte de sua Verdade complexa. A música para nós é a música pura; não podemos aceitar uma música obediente a um programa literário, música para contar coisas estranhas à sua essência, por exemplo. * Esta concepção forma[dora] da arte nos explica o que a experiência nos ensina: a arte não é por si só o corolário do profundo problema da vida e da meta para que o homem se encaminha. Em seu contato a vida pode adquirir uma grande força, mas a arte, apesar de toda sua amplitude, não a dessedenta. A alma estética é infecunda; esta esterilidade, esta aridez, esta infecundidade, esta precariedade transparecem nas obras não irrigadas de sangue metafísico. * Minha apreensões sobre a pesquisa moderna da ciência são dirigidas não contra a ciência, porque a ciência é neutra, mas contra a sua aplicação como força de morte, contra o uso injustificado da máquina, contra a mecanização da vida humana; a máquina e laboratório contribuem para o bem estar do homem quando este controla seu emprego e não consente que tais forças encurralem o seu destino. Devo, pois, aceitar o verdadeiro espírito científico como uma das expressões da alma criadora do indivíduo. Quanto à cultura atual, não acho que se ocupe somente das coisas materiais e que nem tudo nela é condenável. Ela pode ter tido um eclipse em sua fé na religião, mas não na humanidade. O homem, por sua essência, é espiritual, a sua contingência não é de ser imperfeito nem perfeito, mas de tender à perfeição.
* Se nós considerássemos a civilização pela sua encenação, enganar-nos-íamos seriamente, porque o ideal da atividade humana é verdadeiramente o da alma: sua sanção se acha dentro das consciências e não no que lhe é estranho como salvação ou mito. Esta atitude do homem é essencialmente espiritual. Foi esse mesmo espírito que recusou aceitar como definitivos os limites da natureza ordenados pela superstição científica do século. A natureza criou o homem com o medo da morte para assim moderar seu poder dentro dos limites da possibilidade, mas o homem zombou da Morte, destruiu as fronteiras e subverteu o poder de voar; perdido com a queda, ao mesmo tempo pretendeu tornar-se ubíquo, profeta, quase angelical de novo. Mas, neste momento em que se tornaram fáceis as relações entre os homens mais distantes, e que os povos e nações chegaram a se conhecer de diversos modos, poder-se-ia imaginar que o momento de fundir suas divergências numa única comunidade houvesse surgido afinal. Infelizmente, quanto mais se abrem as portas e as fronteiras se desmoronam, mais a consciência da distinção individual ganha em força centrífuga.
Jorge de Lima Curado por Natan Schäfer
Notas: [1] Rupture Inaugurale: panfleto publicado em 21 junho de 1947 pelo grupo surrealista de Paris. [2] Tradução nossa: “A maioria dos livros de Andre Gide não passam de uma série de despojamentos sucessivos”. [3] Tradução nossa: “Assim rezava Madalena aos pés de Jesus, não em fórmulas ou discursos. Não! Suas lágrimas rezam, sua atitude reza, sua cabeleira em desordem reza”.
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