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pós-anarquismo e falências da representação.



 

COLABORE COM A CAMPANHA DE FINANCIAMENTO COLETIVO PARA A PUBLICAÇÃO DE "DO ANARQUISMO AO PÓS-ANARQUISMO", DE SAUL NEWMAN.



 

FORMAS DE VIDA, SINGULARIDADES E INSURREIÇÕES EM SAUL NEWMAN

por Camila Jourdan[1]


O anarquismo não é um conceito que possa ser encerrado numa palavra, como numa lápide. Não é uma teoria política.É um modo de conceber a vida, e a vida, sejamos jovens ou velhos, velhos ou crianças, não é algo definitivo: é uma aposta que devemos jogar dia após dia. Quando acordamos de manhã e pomos os pés no chão, devemos ter uma boa razão para nos levantarmos, se não, não faz diferença nenhuma sermos anarquistas ou não.

Alfredo Bonanno



A obra Do Anarquismo ao Pós-Anarquismo, de Saul Newman, desenvolve três ideias base, relacionadas, que aqui gostaria de destacar como fundamentais para afirmar a atualidade do anarquismo hoje, ou melhor, para sustentar aquilo que o autor, neste e em outros trabalhos, conceitua como pós-anarquismo, e que nada mais seria do que um anarquismo pensado em sua interface com as demandas contemporâneas e no contexto da falência do paradigma representacional. Particularmente, Newman leva em conta a abordagem de autores pós-estrutualistas, como Foucault, Deleuze e Agamben, para cunhar um anarquismo que dialogue com o tempo presente, constatando-se que não estamos mais no século XIX e que o paradigma reinante não é mais de uma governamentalidade soberana. Deste modo, as respostas e resistências também precisam ser outras. É importante notar que estes elementos originários não são completamente estranhos ao que Newman identifica como anarquismo clássico, de Bakunin, Kropotkin e Proudhon. Trata-se antes de se fazer ver uma convergência e de se retomar outros autores ligados à tradição libertária, como Bonanno e Stirner, que permitiriam ao pensamento-ação anarquista dar conta do contexto social e político no qual vivemos, atualizando seus pressupostos tendo em vista as demandas novas e estranhas ao século ao XIX, tais como: sociedade de controle; crise das metanarrativas; falência climática e espetáculo tecnológico.

Trata-se também de um anarquismo anti-humanista e anti-iluminista, Newman parte da constatação da morte do homem, da crítica à própria ideia de uma natureza humana inata e universal a ser liberta, para uma abordagem libertária que constata a falência desse projeto de ser humano plenamente racional, ocidental e colonial, como constituindo também uma face da dominação. Neste sentido, não há o que lamentar com esta morte, nem buscar restabelecer as bases de um humanismo, mas de saber o que resta de vida a ser afirmada após sua total destituição.


Em geral, em nossa cultura o homem tem sido pensado sempre com a articulação e a conjunção dos princípios opostos: uma alma e um corpo, a linguagem e a vida, nesse caso um elemento político e um elemento vivente. Devemos, ao contrário, aprender a pensar o homem como aquele que resulta da desconexão desses dois elementos e investigar não o mistério metafísico da conjunção, mas o mistério prático e político da separação. (AGAMBEN. In. COSTA, 2006: s/p)

A primeira ideia básica relativa ao pós-anarquismo de Newman consiste em tomar a anarquia como conduta ética fundada no princípio pelo qual os meios são os fins. Não existiria o anarquismo, mas sim uma série de grupamentos e ideias heterodoxas e antiautoritárias, baseadas na administração direta e cooperativa da vida. Esta posição é bastante cara aos anarquistas originários, visto que nela se baseava a recusa a um período de transição estatal da sociedade capitalista para a comunista, ou a utilização de qualquer organização autoritária para libertar os trabalhadores. Vemos assim que o primeiro princípio identificado por Newman no pós-anarquismo não é estranho ao que ele chama de anarquismo clássico:


[...] a mais poderosa intuição que emerge do lado anarquista era de que a revolução deve ser libertária tanto em seus meios quanto em seus fins, e que, se os meios são sacrificados ou simplesmente feitos para servirem aos fins, os próprios fins serão sacrificados. Isso se refere à ênfase que os anarquistas colocam na política ‘pré-figurativa’ (NEWMAN: 33)

Entretanto, Newman parte desse princípio para pensar não apenas a relação com uma pretendida sociedade futura livre, os modos de organização para se chegar nela, mas antes, talvez pela própria natureza do princípio em questão, para pensar aquilo que denomina o aqui e agora. O que podemos fazer ali mesmo onde nos encontramos?

Se os meios não se separam dos fins, trata-se, antes de tudo, de fazer hoje a vida que queremos, não visando um projeto vindouro, mas prefigurando no presente outra maneira de viver. Assim, o anarquismo constituiria uma ontologia e uma ética não-estrategista por excelência: ser anarquista seria liberta-se de um telos universalizante, isto é, do fazer isto para obter aquilo ou isso por causa daquilo. Uma maneira de viver regida pelo princípio estratégico não encontra nunca algo que vale por si, de tal modo que é uma maneira de viver destituída de sentido constitutivo ou mesmo de valores inegociáveis. O anarquista é aquele que desempenha ações com fins em si mesmos. Ou melhor: a ação anarquista é direta precisamente porque não mediada, ela não tem outros fins externos predeterminados, ela carrega sua própria recompensa.

Vemos assim uma ética liberta da ação estratégica, ou ainda, uma ética enquanto forma de vida, se entendemos essa noção como se referindo a uma vida que não se separa de sua forma, ou seja, que não tem uma forma externa, um sentido outro que não si mesma, que não é representada externamente.


[...]


O segundo ponto desenvolvido por Newman, que não é, sem dúvida, independente do primeiro, e que também nos levará diretamente ao último, diz respeito à noção de singularidade. Assim como uma ética da ação com fins em si mesma se opõe à noção de projeto estratégico, a noção de singularidade se opõe a de sujeito revolucionário do pensamento moderno. O que nasceria das insurreições contemporâneas, enquanto exemplos paradigmáticos de ações sem telos externo, são singularidades e não identidades libertas. Aqui, convém ressaltar que a singularidade não é o ator da insurreição libertária, é seu produto, e exatamente por isso não nos cabe esperar a consciência de classe revolucionária para que possamos agir, o sujeito não é compreendido aqui como causa da ação libertária. A singularidade não se confunde com o sujeito de direito liberal precisamente por não ser um átomo independente dado na base de um sistema de representação. As singularidades não caberiam na representação, seriam irrepresentáveis. Aqui Newman vai buscar elementos no A Comunidade que vem, de Giorgio Agamben, em diálogo já com a obra A Comunidade Inoperada, de Jean-Luc Nancy, para conceituar noções de singularidade e comunidade, internamente relacionadas, que não caberiam nas categorias do universal e do particular, e que não poderiam se relacionar por meio da representação. O singular teria uma comunidade interna a ele - e não correspondente a ele. Tratar-se-ia justamente do ponto no qual essas categorias tradicionais se romperiam, pois o singular não poderia ser tratado como um microestado com limites próprios.


Um conceito que escapa à antinomia do universal e do particular eis-nos desde sempre familiar: é o exemplo. Qualquer que seja o âmbito em que faça valer a sua força, o que caracteriza o exemplo é o fato de valer para todos os casos do mesmo gênero e, simultaneamente, estar incluído entre eles. Ele é uma singularidade entre as outras, que está no entanto em vez de em cada uma delas, vale por todas. Por um lado, todo o exemplo é tratado, de fato, como um caso particular real, por outro, reconhece-se que não pode valer na sua particularidade. Nem particular nem universal, o exemplo é um objeto singular que, digamos assim, se dá a ver como tal, mostra a sua singularidade. (AGAMBEN, 1993: 16)

A singularidade se oporia às identidades bem definidas, instaurando a recusa à representação. Agamben fala em ‘singularidades quaisquer’ para abordar uma noção de pertencimento interno, fora do primado representacional. E é a própria distinção entre singularidade e identidade que nos permitiria fazer também a distinção entre insurreição e revolução, enquanto terceira e última ideia base do pós-anarquismo. Aqui, novamente, reaparece a noção de chave de forma de vida, no âmbito da discussão via Agamben.


[...]


Também Jean-Luc Nancy teria falado em termos de uma comunidade não essencial, não previamente dada. Partindo de Bataille, a noção de singularidade em Nancy indica já um lugar de mistura do sujeito com o objeto. A própria ideia de indivíduo seria relativa ao Estado, enquanto totalidade soberana, autocentrada e fechada em si mesmo. A noção de comunidade não essencial, por outro lado, seria pensada pela relação de abertura, de incompletude, o comum não seria uma completude, uma classe fechada em si mesma, seria o que nos faz desde sempre de um pólo ao outro, sempre passando, em relação. A comunidade aberta permitiria a relação sem comunhão, e assim o compartilhamento e a coexistência,co-existência, por estarmos sempre se desproduzindo, produziríamos sentido. Esta seria o lugar da linguagem: uma comunidade da comunicação.


A singularidade é um ‘fundo’ sem fundo, no sentido de ser feito apenas da rede, do entrelaçamento e da partilha. (…) A própria partilha não é uma comunhão, nem uma apropriação do objeto, nem um reconhecimento de si, nem mesmo uma comunicação, como a compreendemos, entre sujeitos. Mas esses seres singulares são eles mesmos constituídos pela partilha, eles se distribuem e se põem, ou mesmo se espaçam pela partilha que os fazem outros: (...) ‘comunicado’ para não ‘comungar’. Esses ‘lugares de comunicação’ não são mais lugares de fusão. (NANCY, 2016: 55-56).

Newman chega por fim à singularidade via Stirner que, enquanto crítico ao humanismo moderno, também pensaria este único singular como vazio. O ego aqui, portanto, também nada tem do ego individual autocentrado, mas é uma espécie de nada indefinível, um devir constante forjado por meio de uma rede de afetos compartilhados. É assim que da noção de singularidade chega-se à noção de grupos de afinidade, coletividades relacionadas por vínculos que transpassam a fronteira da separação entre político e pessoal e que mantém antes de tudo uma partilha da confiança por meio de afetos comuns e intensidades alegres.

Além disso, essa noção de singularidade se relacionaria muito melhor com as demandas do agora, no qual as subjetividades controladas correspondem às séries governáveis por algoritmos guiados pelo afeto e pelo consumo, que Deleuze chamou ‘divíduos’: redes controláveis de produção-consumo.


[...]


Neste contexto, as insurreições aparecem como faíscas na abertura para fora da aparência totalitária que o espetáculo capitalista assumiu hoje. A terceira e última contraposição básica que aqui gostaríamos de ressaltar diz respeito então à diferença entre insurreição e revolução. Newman entende que o movimento de ocupações recentes, os levantes antirracistas atuais e as revoltas contrassistêmicas das últimas décadas seriam insurrecionais.insurrecionários. A diferença da insurreição para a revolução diria respeito, primeiramente, ao caráter totalizante: na revolução haveria uma transformação total das relações sociais e políticas. Uma insurreição pode ser parcial, uma revolução não. A revolução seria um evento vindouro, que transformaria, após um processo, a sociedade de uma vez por todas. Entretanto, diante da falência das metanarrativas, é difícil até mesmo imaginar algo deste porte hoje, não conseguimos conceber outro evento final total que não o apocalipse.

Outra diferença relevante diria respeito à relação das revoluções com o chamado poder constituinte: uma revolução termina numa constituinte na medida em que deve inaugurar uma nova ordem social e política do zero. Diferentemente, tal como também analisa Agamben, a potência insurrecionária seria, antes de tudo, destituinte. Não podemos esquecer, entretanto, que a noção de revolução social em Bakunin é já destituinte, e que ali encontramos a ideia de uma destruição criadora e, mesmo, de uma abolição da política (ou antipolítica) e da representação. Em certo sentido, a revolução social anarquista sempre foi insurrecionária. E aqui precisamos notar que o princípio ético da não separação entre meios e fins é retomado por meio da noção de insurreição.insurreilção. Por um lado, não há estratégia ou instrumentalização das instituições e das relações de poder numa insurreição. A insurreição vale por si e em si, é uma ação antipolítica enquanto práxis não-determinada por um projeto ou por um telos externo. E aqui é inevitável lembrarmos as palavras de Furio Jesi:


O que mais distingue a revolta da revolução é uma diversa experiência do tempo. Se, com base no significado das duas palavras, a revolta é um repentino foco insurrecional que pode ser inserido dentro de um desenho estratégico, mas que por si só não implica uma estratégia de longo prazo, e a revolução é, por sua vez, um complexo estratégico de movimentos insurrecionais coordenados e orientados relativamente a longo prazo em direção a objetivos finais, seria possível dizer que a revolta suspende o tempo histórico e instaura repentinamente um tempo em que tudo isso que se realiza vale por si só, independentemente de suas consequências e de suas relações com o complexo de transitoriedade ou de perenidade no qual consiste a história. (JESI, 2018: 72-77, grifo meu)

Também neste sentido, toda insurreição é prefigurativa, ou seja, incorpora no aqui e agora os princípios éticos do que pretende construir. Recusa estratégias e meios sacrificados em favor de um fim que nunca chega, mas encarna na sua maneira de se organizar os elementos da autogestão e horizontalidade. Uma ação com fim em si mesmo, um comunismo que se vive na própria luta, e não que é objeto de um processo independente. .O anarquismo é insurrecionário porque é antidualista: reúne matéria e forma, público e privado, fins e meios, na práxis libertária.


[...]


Colapsar as distinções bem-comportadas da representação seria destituir as abstrações fetichizadas. Assim, deixamos de ser cúmplice ali onde nos situamos com as estruturas de poder que se reproduzem para além do centro e por todo o tecido social, entendendo-se que o estado não é antes de tudo, ele mesmo, uma entidade abstrata, mas uma maneira de viver, um tipo de relação que precisa ser combatida nas nossas dependências e também nos nossos desejos. A insurreição é uma instância valorativa e criativa, que se abre quando nos revoltamos e recusamos reproduzir uma sobrevida de dívidas, encarceramentos, consumo, servidão e precariedade. Afirmar o que não aceitamos é sempre estabelecer já um âmbito inegociável, um valor tomado como necessário. E há sem dúvida uma dimensão ética nas revoltas contemporâneas, quando, diante de um risco incontornável, uma coletividade responde que a morte de alguns não será mais aceitável [...]


Vemos assim, via Newman, a atualidade do anarquismo sendo pensada enquanto ontologia através de uma ética dos meios enquanto fins; da noção de singularidade enquanto oposta ao indivíduo e da noção de insurreição enquanto distinta da grande revolução. Nessas três bases, a noção de forma de vida cumpre um papel central relacionando a política libertária com a falência da representação.


BIBLIOGRAFIA

AGAMBEN, G. 2006. In. Flávia Costa. “Entrevista com Giorgio Agamben”. Disponível em <https://www.scielo.br/j/rdpsi/a/qfWSyKkKcpMD-Vxy3Bj5Vmzz/?lang=pt>. Acessado em

10/08/2021.

_________. 1993. A Comunidade que Vem. Trad. Antonio Guerreiro. Lisboa: Presença.

BONANNO, A. 2006. A Tensão Anarquista. Trad. e edição, raividições

JESI, F. 2018. Spartakus: Simbologia da Revolta. Trad. Vinicius Castro Honesko. São Paulo: n-1.

NANCY, J-L. 2016. A Comunidade Inoperada. Trad. Soraya Guimarães Hoepfner. Rio de Janeiro: 7Letras.

NEWMAN, S. 2022. Do Anarquismo ao Pós-Anarquismo. São Paulo: sobinfluencia edições

 

[1] Camila Jourdan é professora associada do Departamento de Filosofia da UERJ, militante anarquista no coletivo ADEP e autora do livro 2013 - Memórias e Resistências. Rio de Janeiro: Circuito.






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