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sobre o infinito, de daniel liberalino



A Fresta é uma coluna — uma colina — de periodicidade semanal dedicada a publicação de textos realizados no seio do movimento surrealista e arredores, de curadoria de Natan Schäfer.




 

Hoje não há remédio de ação imediata: padecemos de uma espécie de ressaca

prolongada justamente pela festa não ter comparecido ao salão quando

esperada. Contudo e como todos sabem, neste momento não podemos perder a

concentração pela falta de distração e pelo achatamento do dia-a-dia. A

esperança não tem grande serventia agora, é preciso dar passagem à vida: Um

colar de pérolas para o qual não poderíamos encontrar fecho e cuja existência

não está sequer por um fio, eis aí o desespero [1].


É por essas e por outras, quando o instante parece prestes a devorar qualquer

tentativa de elevação, que apresentamos nest’A Fresta o doutor em Filosofia

pela Universidade Federal do Ceará, Daniel Liberalino, alguém que está longe

de ter diluído sua pulsação insubmissa no banho morno de urtigas da

burocracia institucional e na pasta “satisfatória” dos jornais.


Fiel ao seu nome, Liberalino é daqueles que, como já mencionamos em outras

publicações d’A Fresta, aventuram-se por uma busca que não reconhece as

fronteiras impostas pelo establishment entre os supostos campos de seu saber-

fazer: filosofia, narração e desenho se confundem em uma só verve poética que

tende à liberdade.


A partir de meu ponto de vista algo distante, localizado geograficamente quase

como seu antípoda nacional, a figura mítica através da qual vejo Daniel é uma

espécie de David Foster Wallace do semi-árido, isto é, alguém que, enquanto

desvencilha sua guitarra de uma fita cassete acaricia com a manga da camisa de

flanela um desenho nas areias da lanchonete sem-nome na beira de uma longa

BR, tudo isso filmado por um Euclides da Cunha videomaker que esconde em

sua calça jeans, e longe de sua JVC Compact VHS, um smartphone.


Figuras de massa à parte, ao pensar em Daniel lembro, e não sem certa

gravidade, de José Alcides Pinto, um dos grandes herdeiros do conde de

Lautréamont e cujos Cantos de Lúcifer constituem um acontecimento de grande

envergadura e cuja ressonância ainda foi devidamente reconhecida pelo público

lusófono. E não citarei com prazer os Cantos de José Alcides Pinto pelo simples

fato de recentemente, e em condições que não excluem uma aura de mistério ou

ares de acaso objetivo, ter perdido meu exemplar deste livro, juntamente com

um de meus cadernos de anotações de sonhos.


Neste Sobre o infinito que apresentamos hoje n’A Fresta, Liberalino demonstra

que, para além do enxofre dito pós-moderno que esparge gotículas de ironia

sobre a cabeça dos existencialistas de plantão, os grandes temas seguem dignos

de atenção e capazes de nos abrir as portas do maravilhoso. Assim, encontramos

um belíssimo desenvolvimento que, pensando a partir do desenho, aponta para

o humor não somente como método de dissolução mas também como raciocínio

e abertura.


Algumas das aberturas permitidas por este texto brevemente podem ser

encontradas na Revista Pessoa, onde publicamos paralelamente uma reflexão de

maior fôlego sobre Sobre o infinito. Portanto, para aquele que quiser mergulhar

mais fundo ou voar mais alto com Daniel e conosco, basta seguir rumo à festa.


Avante!


Natan Schäfer

Curitiba, 6 de outubro de 2022


Notas sobre o infinito


I. Prova de um eletrodoméstico transfinito


Considere o breve prolegômeno à álgebra dos eletrodomésticos abaixo.



Somemos a ele a seguinte prova da existência de um eletrodoméstico transfinito, que

pode ser generalizada em casa pela leitora aos eletro-selvagens, doméstico-domésticos

etc.



Seja Exy o eletrodoméstico construído pela solda dos eletrodomésticos Ex e Ey. A tabela

abaixo enumera todos os eletrodomésticos infinitos desse tipo.



Ora, cada linha x da tabela é uma possível solda infinita de eletrodomésticos finitos.

Mas podemos construir o seguinte eletrodoméstico:


T = E’1 + E’2 + E’3 + ... E’i ...,


tal que E’n En,n, para todo n ≥ 1. Logo, T difere de todo eletrodoméstico

infinito x, para x = n, quanto à solda En,n na diagonal da tabela. Assim, T não

está na tabela. Mas como esta contém todos os eletrodomésticos infinitos possíveis, T é,

forçosamente, um eletrodoméstico transfinito. Quod erat demonstrandum.


II. Considerações sobre a heterodoxia do frevo teutônico


Se a idéia de algo maior que o infinito soa miçanga talk de palleteria blavatskiana

envolvida em tráfico humano, foi percutindo gorados europresuntos abraâmicos desse

tipo que Georg Cantor (o matemático alemão, não o tecladista itaquaquecetubense)

passou seus últimos dias em DRs inflamadas com as paredes do manicômio.

Também queria ter o infinito como xodó. Levá-lo pra passear. Fazer pra ele um perfil

de pet no insta. Limpar seus dejetos imperenes da bela calçada do condomínio, feito

uma dondoca criptonazi num domingo gordo, sob um céu de cromo.


Antes, urge ameaçar a família em seu mais íntimo seio institucional: não só a idéia de

transfinito, ou o método da diagonalização cantoriana acima, senão o próprio infinito é

um trambique matemático. O matemático é o agiota setentista oleaginoso da filosofia?

O mundo das Formas, anúncio classificado espectral num orelhão da era Collor?

Não me fulmine ainda o sobrecenho com o Über die Anzahl der Primzahlen, leitora

anti-broweriana. Peço uma nova chance. Poincaré disse algo nessa linha: a beleza da

matemática jaz na sua liberdade. Foi mesmo Poincaré? Mas o Georgie ali é prova de

que, se você abre demais a mente, ela pode cair, cataplofe. Ou extraviar-se no último

trólebus da gare.


Ou buscar as verdes varandas. Ou seguir a romaria de rios peregrinos por rictos de

descaminho na noite de azeite e cal. Ou chorar por coisas distantes no seio crepuscular

das cubanas, na madrugada ferida por mil pandeiros e recusas, e sofrer a febre terçã

dos umbuzais, transido de miragens, secas no solo de sangue coagulado das coxas das

fêmeas, e suas faces de sal, e dormir e esquecer, velado no colo do coro devoniano das

biscates logradas.


Ah, sim, os algebristas. Os pracistas do Absoluto. O busílis me lembra o malabarismo

retórico de Santo Anselmo na prova ontológica, aquela da existência de Deus, ou o

paradoxo de Russell: o conjunto dos conjuntos que não pertencem a si mesmos.

Levando um acamado Frege a flertar com a morte, a joãokleberiana pegadinha do

Russell foi resolvida, por assim dizer, de boinha, limando fora dos axiomas de Zermelo-

Fraenkel a infinitude radical como vil joselitismo formalista.


A semelhança dos casos acima é partir de objetos (o Deus de Anselmo, o transfinito, o

conjunto de Russell) puramente apofáticos – cuja essência é só, e tão só, não ser o que

seu tamborilante coração de estudante, com olhos rutilantes feridos pelo deflúvio de

pomada modeladora Bozano, espera. São a forma (eidos) do isentão? O channer

apodítico, hipostático? O tio inconsútil? O vaper inamovível? Um sólido patriota de

bochechas coradas, obnubiladas por um imputrescível, bizantino, iconográfico halo de

Malbec?


Mas a matemática sempre foi a linguagem de férias em Tambaba, lendária praia

nudista aqui em Baía do Vago Norte. Jamais confundir com a Vaga Baía do Norte. Nisto

radica o tanglomanglo linguístico em corrente escrutínio – no permitir-se tomar

infinito por número. No lulussantear o que há de bom na micareta semântica.

O infinito matemático não é um número porque fala sobre números. Sobre sua

cardinalidade. Confundi-los é atirar no mensageiro – no máximo terapêutico. Como

uma caricatura fala do modelo, a cardinalidade parodia o terno ato infantil de contar

nos dedos, vertido, pela anal-retenção matemática, em hieráticas funções bijetoras. Ou

antes, o infinito fala sobre como números podem ser empilhados, e empilhados, e,

insisto, empilhados, ainda que algo fundamental sangre no mais intimorato glúteo. É,

pois, um metaconceito, a regra de indução comum à sobrevivência nas ruas brasileiras,

a Orfeu no tártaro e às vítimas hepáticas do Johnny Walker: “Continue andando”.

Corrijam algum deslize, argonautas do alambique.


Hilbert, que apesar de usar chapéu Panamá pautou a matemática do século XX, foi o

grande cuck do infinito? Nele tudo apostou – e tudo perdeu. Viveu, reginaldamente, de

migalhas amorosas do eterno. Sua carta de amor ungular meio Blaue Engel foi um

ensaio, "Sobre o Infinito", para ele o pilar de tudo o que podemos saber com distinta certeza. Gödel, o piranha destruidor de lares da matemática, britou-lhe as canelas provando insofismavelmente que, em se aceitando o conceito de infinito, não há mostrar que a matemática, pilar sildenafílico da certeza, não é contraditória. E, de modo mais geral, partes dela não seriam demonstráveis, nem certas, nem hialinas; e tudo seria um umbrático resvalar ensaboado na cama inflável do finito; e seria tudo uma oleosa justa mamária no piscinão guguesco do impermanente.


Ó Hilbert, maltratado ballbusted da metafísica, ou antes de sua sombra formal. Não se

sinta tão sozinho. Não somos todos cornos do absoluto?


Adendo

Outra confusão categórica voluntária dos matemáticos não-intuicionistas quanto ao

infinito: agir como alguém que imagina uma cadeira cada vez menor e, a certa altura,

batizá-la "A Fantástica Cadeira Inexistente". Eis ali um grávido varão de bem, mas grávido em grau zero. Por que não entra? A porta não está fechada; está infinitamente

desaberta. Ou, talvez, chamar grau de categoria seja a heteróclita noção de frevo dos

teutões.


[1] “O verbo ser”, de André Breton. Disponível em: < https://www.sobinfluencia.com/post/o-verbo-ser; acesso em 6 de outubro de 2022.




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