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tempo morto


Collage de Rodrigo Corrêa


 

Tempo Morto é a coluna de Mayara Dionizio dedicada a pensar a subversão e a vagabundagem, iniciando pela figura suplementada do Lázaro bíblico, cruzando fronteiras entre vida e morte, entre o conceito e a indefinição, ressuscitando para o fora. Tempo Morto é um testemunho profano das vagabondagens de Lázaro e de outros desviantes do tempo pelo acontecimento, pelo imediato, pelo inefável e a sua eterna metamorfose no aberto.


Mayara Dionizio é escritora, filósofa e tradutora. Doutora em Filosofia (UFPR) e em Littérature et Civilisation Française (UPJV- França), autora do livro "Antonin Artaud: o instante intermitente" (2020), pesquisa e escreve sobre as relações entre comunidade, vagabundagem, antinomia na linguagem e suplementaridade.

 

A errância e o fora são elementos fundadores, inclusive, da fixação e do dentro, do mito da ordem, da Lei e da verdade. Se por fora compreendermos também o chamado àquilo, e daquilo, que escapa à ordem, podemos conceber quem erra, quem vagueia, como quem busca uma relação com o que não permite relação. Aquele que vaga, nesse sentido, não estaria à procura de um ponto, de uma fixação, de uma verdade, mas, sim de uma promessa. Por isso, a miragem, enquanto intervenção desse chamado no imaginário do errante, é a promessa a ser seguida justamente porque seguirá como promessa.


De um lado a miragem, do mesmo lado a promessa, e junto a ambas está a profecia. Essa fala do fora que desde o início dos tempos faz com que vaguemos em busca. A profecia, então, nos retira o tempo presente e passamos, a partir de sua irrupção, a viver um tempo outro, o tempo profético, o tempo da vagabondage, o tempo morto. A morte, dessa forma, não porta somente a negação, e dentro dela o seu contrário, a afirmação da vida, mas a abertura para além desse movimento dialetizante. O tempo morto é, por isso, um tempo que é o puro imediato, que só pode existir nisso que escapa ao sentido da vida e morte. É que a morte comporta todo o enigma para além das definições banais que lhe damos constantemente. Morrer é, portanto, também ser dissidente a todos esses sistemas de ordem e significação. E mortos podemos vagar ou talvez alguns vaguem porque nasceram inscritos na dissidência.

O mito do judeu errante [1] é uma das recusas ao Mito mais antiga que nos chega. E é intrigante como a errância permanece dentro de um gênero narrativo que a nega: o mito. Poder da infiltração subversiva que a linguagem opera em relação à linguagem ordinária. Errar, tal como o judeu, é recusar os grandes mitos humanos: Estado, ordem, verdade. Voltarei ainda a essa recusa epistemológica. No mito em questão, segundo as suas versões mais conhecidas e difundidas – tais como aquela publicada em 1844, Le juif errant, de Eugène Sue, que explora as mais diversas histórias sobre o personagem conhecidas na Europa Ocidental àquela época – Ahasverus foi um sapateiro e tinha uma loja situada bem no caminho em que passavam os condenados à crucificação. A partir desse momento, o mito assume versões diferentes, mas Ahasverus teria zombado, ou mesmo negado ajuda a Jesus que, por sua vez, o amaldiçoou o condenando a errar eternamente. Inclusive, mesmo no Brasil, a expressão “onde o Judas perdeu as botas” tem origem nesse mito. Existem versões que contam que Judas não teria conseguido se suicidar e seria ele o judeu errante.


Esse emaranhado simbólico-histórico-mítico nos coloca face a vários mitos humanos, entre os quais a figura do vagabundo representa diversas recusas, sobretudo, epistemológicas.

Errar é uma maldição precisamente porque implica na perturbação da inconstância, na convivência com a incerteza. Amaldiçoados são, portanto, ciganos, judeus, piratas, imigrantes, circenses, mambembes, mendigos e mais todos que vagam por estarem mortos para as verdades da vida institucionalizada. Assim, surge uma nova categoria de ficção-sujeito-constituída. Desta vez, a ficção se torna a alteridade pela qual as ficções-sujeitos-bem-situadas fixam uma identidade aos vagabundos. Então, vagabundo é o nome que usam para se referirem àqueles que recusam a identidade como fixação.


A existência móvel passa a constar nos livros de lei sob diversos nomes – ou formas de reforço ao sistema de escritura que a classifica –: Art. 59 da Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688/1941): “Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita: Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses”. O vagabundo, descendente dos levitas [2], portanto, antecede toda a ordem instituída, passa a ser visto como uma falha do sistema de produção e reprodução de identidades. A dissidência sistêmica que ele não só representa, mas que afirma ao vagar, é a pura denúncia da ficção. O vagabundo não denuncia a ficção por ser ficção, mas por fazerem dela algo “natural” e não uma produção, uma tecnologia forjada para sistematizar as subjetividades em um sistema de produção e sujeição.

Michel Foucault, em toda a sua obra, mas aqui me refiro a Les Mots et les Choses (1966), para mim, centraliza essa descentralização do humano. Isto é, quando nos referimos às Ciências Humanas, estamos tratando do humano ausente. Quando se grita pela essência do humano, essa que seria a fonte de todo humanismo, estamos clamando pela ficção-sujeito que é ausente. Em torno de nossa ausência são formuladas, por meio de tecnologias, identidades disso que nos definiria enquanto humanos. Mas, a subjetividade não está lá, o sujeito fala e não fala enquanto sujeito, pois a sua subjetividade não fala. Então, o sujeito fala daquilo que ele não é, de sua ausência subjetiva do discurso.

Todo conhecimento se pretende unitário. A história do conhecimento demonstra que conhecer segue uma tradição de esgotar as possibilidades acerca daquilo que se conhece. O que é o vagabundo? Essa pergunta ainda ressoa. Até agora, o vagabundo está a vagar, está inscrito no sistema tecnológico-epistemológico de dissidências como desconhecido, indigente, ocioso e ausente do discurso. Ainda existem outras categorizações, muitas outras: dissidentes do sistema de correspondência sexo-gênero, dissidentes do sistema de propriedade, dissidentes da institucionalização dos afetos. Existem, e todas essas dissidências são, em alguma medida, vagabundas. Então, ser vagabundo é ser dissidente? Se o for, a dissidência seria uma posição de enunciação de uma fala desconhecida e, que por isso mesmo, se infiltra e subverte?


Esse seria o ponto em que a dissidência se torna uma autodenominação, uma autodeterminação que toma a palavra e exige a si uma identidade, ainda que desconhecida. Contudo, creio que não. Penso que o desconhecido é a subversão do sistema de conhecimento e suas tecnologias. Há um não-lugar do desconhecimento que deve permanecer como tal.

O que é o vagabundo?


Recorro à imagem literária, justamente porque ela é neutra, puro acesso ao fora. Talvez esse impoder, do qual nos fala Antonin Artaud acerca do sistema de pensamento e representação, nos permita compreender aquilo que não se permite ser conhecido:


– A expressão verdadeira esconde o que ela manifesta. Opõe o espírito ao vazio real da natureza, criando por reação uma espécie de cheia no pensamento. Ou, se preferirem, em relação à manifestação-ilusão da natureza ela cria um vazio no pensamento. Todo sentimento forte provoca em nós a ideia de vazio. E a linguagem clara que impede esse vazio impede também que poesia apareça no pensamento. É por isso que uma imagem, uma alegoria, uma figura que mascare o que gostaria de revelar têm mais significação para o espírito do que as clarezas proporcionadas pelas análises da palavra [3].


Há um texto de Maurice Blanchot que ilustra o vagabundo, ele o faz o colocando no deserto, atendendo a uma voz desconhecida, “La Parole Prophétique” (1959). Lá, no deserto, no fora, no espaço deslocado em que povos migram, andam, as relações com o lugar e o tempo ganham outra dimensão. O tempo no fora, é o tempo da morte da duração e da linguagem com sentido. Assim, a experiência no deserto transtorna as identidades, as fixações, as dimensões e a lógica mental. Talvez porque no deserto nós voltemos a, de fato, nos aproximar – sempre nos aproximar e nunca chegar – de uma exigência mais originária. Entretanto, essa origem se mostra movediça, como uma tempestade de areia, mostrando-nos que ela é o próprio movimento.

A experiência no deserto, assim como nos conta esse arquivo da humanidade ao qual denominamos História, mostra como os hebreus foram transtornados pela promessa do fora, do deserto. Os hebreus surgem no deserto, enquanto povo, enquanto povo que existe na esterilidade de uma promessa que os mostra que a não-fixação é um lugar para se viver. E frente à miséria, à recusa ao antropomorfismo, eles escutam o vento que uiva e fala mais do que os deuses. É nesse momento que percebo a recusa ao mito.


“O deserto é o fora, onde não se pode permanecer, já que estar nele é sempre já estar fora, e a fala profética é então aquela fala em que se exprimiria, com uma força desolada, a relação nua com o Fora, quando ainda não há relações possíveis, impotência inicial, miséria da fome e do frio, que é o princípio da aliança, isto é, de uma troca de palavras em que se destaca a espantosa justeza da reciprocidade [4]”.

O fora, dentro do sistema de representações metafísicas, é diversamente nomeado, assim como o vagabundo e a morte. Isso, para mim, se inscreve no sistema antropomórfico. No sistema da escritura tecnológico-histórica, tudo deve ser classificado, criando assim diversos Mitos. Então, toda e qualquer experiência que dissidente desse sistema, é automaticamente marginalizada.

Na experiência do deserto, assim como na experiência de Auschwitz, esse povo nômade, como escreve Robert Antelme, L’ Espèce Humaine (1947), após a experiência nos campos, rejeita o antropomorfismo, rejeita o sistema. Ao rejeitá-lo, se rejeita o mito.

É que nos campos a SS trabalhava para que esse povo de passagem, que tem o movimento como verdade, voltasse a acreditar em mitos, tais como Hitler, Estado, sociedade, identidade, verdade.

É que esse povo insubmisso às verdades do dia levantam a própria antinomia da lei: ora mito, ora verdade de passagem; ora palavra de lei, ora literatura.


Continua...



 

NOTAS: [1]: Este aqui é o artesão de Jerusalém... O artesão que se tornou mau pela miséria, pela injustiça e pela opressão, aquele que, sem piedade dos sofrimentos do homem divino carregando a sua cruz, o tinha empurrado para fora de sua casa... gritando-lhe duramente:

- ANDE... ANDE... ANDE.... ANDE...

E desde esse dia, um Deus vingativo disse, por sua vez, ao artesão de Jerusalém:

- ANDE... ANDE... ANDE.... ANDE...

E ele caminhou... caminhou eternamente... Sem limitar a sua vingança a isso, o Senhor quis por vezes associar a morte aos passos do homem errante, e que os inúmeros túmulos fossem os limites militares da sua marcha homicida através dos mundos / Celui-là est l’artisan de Jérusalem… L’artisan rendu méchant par la misère, par l’injustice et par l’oppression, celui qui, sans pitié pour les souffrances de l’homme divin portant sa croix, l’avait repoussé de sa demeure… en lui criant durement :

– MARCHE… MARCHE… MARCHE…

Et depuis ce jour, un Dieu vengeur a dit à son tour à l’artisan de Jérusalem :

– MARCHE… MARCHE… MARCHE…

Et il a marché… éternellement marché… Ne bornant pas là sa vengeance, le Seigneur a voulu quelquefois attacher la mort aux pas de l’homme errant, et que les tombes innombrables fussent les bornes militaires de sa marche homicide à travers les mondes.

(SUE, Eugène, 1844, pp. 225-231, tradução nossa). [2]: Me refiro a Levi, filho de Jacó e Lia: “Levi veio a viver junto com seus irmãos na margem leste do delta do Rio Nilo. Seu pai, antes de morrer, abençoou Levi juntamente com Simeão, prometendo que sua casa seria espalhada pela Terra Prometida, condenando seu furor e sua ira” (Gênesis 37:25-25). [3]: ARTAUD, 2006, p. 76. [4]: BLANCHOT, 2013, pp.115-116.


REFERÊNCIAS: ANTELME, Robert. L’Espèce humaine. Paris : Gallimard, 1947.

ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. Tradução de Teixeira Coelho. São Paulo: Companhia das letras, 2006.

BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

SUE, Eugène. Le juif errant. Bruxelles : Méline, Cans et compagnie, 1844.

FOUCAULT, Michel. Les mots et es choses. Paris : Gallimard, 1990.

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