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teremos que adiar

Atualizado: 28 de jun. de 2021


Colagem por Alex Peguinelli

Esse texto faz referências a eventos vividos por companheiros de uma vida inteira de lutas, Emma G. e Alexander Berkman [Sasha] e é dedicado à todas as pessoas que, mesmo diante de tantas dificuldades enfrentadas, continuam em pé e se recusam a aceitar caladas que um sistema nos imponha a miséria e nos entregue à um total colapso.

 

No começo da pandemia um pensamento aleatório veio à tona na cabeça de Emma. “Nós vamos olhar pra qualquer entretenimento barato que vier numa tela de celular porque não podemos fazer muito mais e ainda vamos agradecer e mentir à nós mesmas que tivemos uma experiência incrível”. Ela escreveu num papel junto com outras preocupações e enviou ao seu melhor amigo, Sasha.

Os dois tinham percepções diferentes na maioria dos assuntos que discutiam. Eram muito próximos na visão geral do mundo, na verdade, mas acabavam sempre por provocar-se um ao outro justamente para exercitar suas mentes e enxergar mais além qualquer pequeno fato, embora ninguém admitisse nada disso. Sasha já ficava mal humorado só de pensar em pessoas criando certos tipos de conteúdo dizendo-se inspiradas pela pandemia. “Não me entenda mal, a sisudez é só parte de uma constatação do que futuramente pode ficar em evidência sobre a condição humana. Imagine um mundo que, além de todos os males, afasta o contato físico e aproxima o virtual, só que esse virtual é popularizado dentro dos moldes de mega corporações com os maiores lucros de tudo que se conhece no planeta. Nós instalamos tudo isso de graça em nossos smartphones, logo, os produtos somos quem?”

Estavam afastados pelo Atlântico e se não fosse pela demora do correio, Emma teria respondido com um vestígio do senso comum dos primeiros meses. “É hora de nos juntarmos. Vamos sair disso fortalecidos como sociedade. Tudo vai ficar bem”. Ela logo percebeu o movimento dentro de todos nós que abria espaço para perdoar, tolerar e permitir um senso maior de comunidade global fluir ou realçar nossa ingenuidade num esforço de deixar tudo mais leve e abaixarmos a barra do julgamento à tentativas de entretenimento, que afinal significavam proximidade. Porém, experiente como era, reiterou o pensamento do camarada e lhe escreveu que “(…) a cada onda ou moda dessas, milhões de hashtags surgem e no final não vão significar para a história nem um grão de areia. O mar já levou o dia de ontem. Mas as ondas se sobrepõe e os meses passam numa sequencia de paródias, de simulações estranhas da realidade.” Sasha vivia muitas incertezas em seu trabalho, acumulou algumas contas e não sabia exatamente como sair da situação. Havia também perdido pessoas próximas pela doença. Quando recebeu a carta da amiga, via-se como um ser envolvido em algumas fantasias que o atormentavam. Tinha completa noção que buscava refúgios da realidade, mas a maior parte do conteúdo era sobre sentir-se fraco e despossuído para dar um basta. Era uma “autotraição consentida”, disse ele na resposta à Emma.

O tom sombrio não era coisa habitual de Sasha. A amiga logo percebeu a falta do fogo sempre revolucionário e direto em suas objeções e preocupou-se. Queria trazê-lo de volta ao seu estado normal e apressou-se em respondê-lo com suas próprias anotações políticas do assunto inicial que discutiam. “(…) ao pensar que um pequeno redemoinho de bytes nos envolve agressivamente em direcionamento de marketing, com nossos dados explorados em várias direções e para diferentes efeitos, um imediato é sentido: nossa existência fica reduzida pelos significados do que produzimos na tela. Sasha, eu sei que parar e pensar sobre isso não é muito agradável, talvez muita gente nem perceba nada do se passa, outras não acham que questionar esses pontos seja importante, mas a verdade é que as redes sociais estão majoritariamente em mãos que a levam cada vez mais para um caminho onde uma linguagem se sobrepõe às demais, a do consumo. Tu sabes bem disso e não podes deixar esse vazio confundir-se com o que é sua vida, infinitamente maior que qualquer vão que estejas, meu querido.” “Querida Emma, a passagem do tempo é movida não por relógios e engrenagens, mas sim por elementos que não temos nenhum controle. E isso, na maior parte das vezes, é nosso maior bem em vida, pois não permite que fiquemos viciados em nossas próprias prisões”. Um longo suspiro acompanhado de um breve sorriso emanou de sua boca ao ler o começo da resposta do seu grande amigo. Sasha manteve o conteúdo bastante sério em relatar que passou por maus bocados e em luta contra a depressão. “Logo me vi num buraco onde eu sou o produto principal e não valho absolutamente nada. As paredes que vejo caem vagarosamente conforme tento me mexer! Eu não via ninguém, não queria contato e achava que isso era o que eu e toda essa sociedade estúpida merecia, afinal.”

Depois lhe explicou como saiu dessa condição e pediu que ela não risse enquanto lia. Havia lembrado de uma cena de apenas um ano e meio atrás onde muitas pessoas estavam dançando e cantando juntas uma música poderosa para ele. O cantor então se emociona com a manifestação entusiasmada de todos e tenta se esconder do público. Sua mulher, nesse momento, invade o palco com a filha mais nova no colo, beija-o e levanta-o do chão. Ele a abraça e em seguida, olha diretamente para todos com um semblante pesado, mas ao mesmo tempo, aliviado e agradece à todos por estarem ali. “Eu desatei-me a chorar, não quando aconteceu, mas só agora que lembrei daquele olhar que cruzou com o meu.”

Sasha terminou a carta pedindo desculpas pelas vezes que escondeu seus sentimentos e que sentia uma enorme vontade de vê-la, mas entendia que não era o melhor dos momentos. “Deixei escorrer uma lágrima ao pensar que sempre gostei de trazer para perto quem eu me importo e o máximo que teríamos agora com todos nossos companheiros e companheiras seriam várias questões difíceis de responder e desconfiança nos abraços. Teremos que adiar!” O encanto e o orgulho que Emma sentia de Sasha eram os mais genuínos. Tantos anos de luta lado a lado, o amadurecimento das ideias e dos gestos, o respeito e a alegria de sentir a sólida amizade ainda crescia com as ultimas palavras que havia lido quando um telegrama urgente chegou em seu nome. Sasha estava internado com certa gravidade, dizia. Com rapidez e sem medir os pedidos de ajuda aos companheiros para que lhe ajudassem numa passagem urgente para Nice, Emma voou e o encontrou sem poder dizer palavra alguma. Ele a reconheceu e fixamente se olharam no tempo permitido da visita.

No dia seguinte, Sasha entrou em coma para nunca mais voltar. Seu pedido de ser cremado e enterrado próximo aos “mártires de Chicago” — a cidade que de certa forma os colocou na mesma caminhada — não pôde ser cumprido pelo custo demasiado alto. Foi enterrado numa vala comum no cemitério municipal. Por insistência de Emma e com os poucos recursos que tinha, uma pequena lápide se encontra acima de seu corpo com os dizeres: “Agora e depois!”

 

Escrito por Vinícius Buenaventura, você pode encontrar outra crônica dele em nosso periódico CARDUME, disponível em nossa loja virtual.

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