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voz em off - parte 2



Colagem por @at0falho


A Fresta é uma coluna — uma colina — de periodicidade semanal dedicada a publicação de textos realizados no seio do movimento surrealista e arredores. Por Natan Schäfer


Em outubro de 1967 são publicadas duas entrevistas importantes no segundo número da revista L’archibras: uma delas com Herbert Marcuse e a outra com Marguerite Duras, incontestavelmente uma das maiores vozes do fenômeno que ficou conhecido como nouveau roman. Conduzida por Jean Schuster, a segunda parte desta entrevista continua revelando aspectos fundamentais da visão de mundo e da poética de Duras, que aqui formula uma crítica contundente aos prêmios literários e suas implicações. Voz em off Marguerite Duras [continuação] Jean Schuster: O dom sendo comum, o que faz com que algumas pessoas passem aos atos e a maioria não? De fato é impressionante que a extensão dos meios de expressão não tenha modificado a quota escritora das populações atuais (o número de manuscritos recebidos pelos editores é proporcional e quase matematicamente o mesmo que há 20 anos). Esta quota é tão impressionante quanto a de suicídios num dado país. Eis o que vejo — distinguindo, é claro, como tão bem o faz Ricardou, entre os escritores informativos e os outros: Vejo que escrevemos, na falta de outros meios, como por exemplo meios gestuais, para exprimir as pulsões do eu. Não quero dizer que a forma da pulsão ceda preferencialmente à escrita, de modo algum. Quero dizer que a própria natureza das pulsões do eu levam instintivamente à busca da expressão. Portanto, que toda expressão livremente desejada é equivalente a esta que nos inquieta: a escrita. Perguntamo-nos por que Rimbaud foi em busca de ouro depois de ter buscado expressar o indizível. Pessoalmente vejo que, sempre vi que trata-se de uma mesma busca, porém deslocada. Não vejo nenhum extravio nesta conversão — digamos: trocando em miúdos, da palavra ao ouro. Vejo que em Rimbaud as pulsões do eu levaram-no a um humor de busca ardente não-seletiva. Nenhum meio de busca era privilegiado pelo ser-escritor Rimbaud. Vejo que a busca pelo ouro era difícil, cheia de ciladas, de grandes riscos, riscos mortais, e que tratava-se de um comércio perigoso. Vejo Rimbaud vivendo momentos de explosão, de sucesso, dias sombrios, buscas vãs e desesperos. Vejo que trata-se de uma mutação da busca pelo indizível numa outra busca cujo objeto é bem mais difícil de ser nomeado, bem mais misterioso, mas na qual as pulsões do eu alojavam-se e conseguiam enfiar-se. A gratuidade da primeira busca não desaparece quando Rimbaud passa à segunda busca, mas ao contrário, ela a expressa. A aspiração à riqueza, como a aspiração à expressão do indizível, supõem a mesma ilusão inicial. Mais ainda: a inanidade da segunda busca denuncia a inanidade da primeira busca. Quando Rimbaud busca pelo ouro, ele designa para nós sua busca pelo indizível como sendo da mesma natureza que toda busca, ou seja, de natureza vã. O espírito de inanidade descoberto aqui pela poesia estende-se e veste toda empreitada que a seguirá. O que é espantoso é que não haja mais poetas que, tendo vivido a ilusão criativa com este grau de violência, não se enfiem numa outra busca, esta concreta, numa busca-renúncia. Jean Schuster: Uma vez colocado o condicionamento primeiro do escritor, quais são as razões secundárias que fazem-no escrever apesar disso? Marguerite Duras: Eu escrevo para me deslocar de mim para o livro. Para aliviar-me de minha importância. Que o livro assuma o meu lugar. Para massacrar-me, desperdiçar-me, abismar-me no parto do livro. Vulgarizar-me, deitar-me na rua. Isso dá certo. À medida que escrevo existo menos. Experimento a livre disposição do eu em dois casos: com a ideia do suicídio e com a ideia de escrever. A substituição física do eu pelo livro ou pela morte. Solução de continuidade, livro ou morte. É neste caso que podemos falar em encanto. Um encanto que agiria ao libertar. Podemos falar também num amor à primeira vista, mas suicida. A resposta exata ao livro seria: “Agora pare, você pode, você escreveu alguma coisa”. Isso seria: “CONTROLE-SE”. Isso não acontece jamais. II Jean Schuster: O que é bonito de chorar? Marguerite Duras: O que é bonito de chorar é o amor. E talvez mais ainda: a loucura, única salvaguarda contra o falso e o verdadeiro, a mentira e a verdade, a tolice e a inteligência: fim do julgamento. III Jean Schuster: Você demitiu-se do júri do prêmio Médicis. Trata-se de uma tomada de consciência do que é a instituição literária, com seu sistema de sanções e promoções, sua hierarquia de valores fundamentada em critérios paralisados e paralisantes, sua burocracia comercial, seus modos corteses, todas coisas que reproduzem, em pequena escala, a sociedade na qual vivemos? Nós não podemos excluir-nos individualmente desta sociedade, exceto pela loucura, pelo crime ou pelo suicídio. Mas os escritores contestadores pretendem arruinar sua organização. Não seria um boa inspiração se eles começassem por recusar-se a jogar este jogo, em sua área específica, isto é, recusando-se a obedecer às mesmas regras e a beneficiar-se das mesmas prerrogativas que os escritores mais retrógrados (esta corrida pelas “honrarias” que vai da obtenção de um prêmio à entrada na Academia, passando pela participação num júri), recusando sua caução moral a um sistema que integra e neutraliza as ideologias subversivas e que substitui sua hierarquia falaciosa pela clivagem de ideias? Marguerite Duras: Nada é mais diferente de um “meio intelectual” que um outro “meio intelectual”. A inteligência que temos da inteligência é a diferença última que nada pode preencher. Então se tomamos Sartre, Blanchot, Queneau, e dizemos-lhes: “Dêem um prêmio literário a vocês três”, chegamos a um resultado sem significação nem forma alguma. Não sou contra os prêmios, com a condição de que sejam dados parcialmente, por um determinado grupo de pessoas, em razão de critérios idênticos. Se um prêmio é dado por um grupo de pessoas por desprezo a outros grupos (ou meios) ele refletirá um preconceito, ele será de natureza extremista, ele deixará de ser o prêmio de acordo que coroa “o terceiro livro”, aquele que ninguém condena ou defende. Por outro lado, a nível de escolha pessoal, coloca-se um problema, mais difícil de ser resolvido: a partir do momento em que voto, em que digo “sim” a um livro, faço cessar uma relação que tenho com o livro e inauguro outra. Pois não tenho obrigatoriamente (sobretudo no leque de um ano) uma relação de aceitação ou de recusa . Posso ter uma relação de dúvida. Posso estar numa relação de dúvida para com um livro, a qual pode durar mais ou menos tempo, sempre, até mesmo perdurar minha vida inteira. Posso não saber se gosto ou não de Shakespeare e ficar numa relação de crise com ele. Nesse caso, se voto eu interrompo esta relação e modifico sua natureza. E é bem verdade que o livro pelo qual votamos, que “fez pressão”, cessa de interessar-lhe, tanto quanto antes. De fato num júri, respondendo como eu, responde-se em meu lugar também. Há uma violação da relação solitária que eu tinha com o livro. Ele está desvendado diante de mim. E se um dito cujo que não estimo diz sim a um certo livro, assim como eu, de imediato duvido da fundamentação do meu “sim”. No último dia de um júri tenho vontade de recusar tudo. De dizer não à própria situação que impôs que eu me declarasse, que eu dissesse sim ou não ao senhor prefeito. Se existisse um júri de contestação, faria parte dele. Podemos sonhar com um júri que não distribuiria nenhuma recompensa, mas só desaprovações, e não aos livros, mas ao seus julgadores, à crítica e aos outros júris. Assim como um indivíduo, um livro também tem direito à vida, a um destino, digamos. Mas o julgador que dedica-se a forçar este destino — em todos os casos — é dotado de uma responsabilidade pela qual ele não precisa prestar contas à ninguém. Eis aí a monstruosidade. Meu júri seria destinado justamente a julgar o julgador. Isso não seria o fim da crítica. Isso seria o fim de um certa crítica onipotente e que, sobretudo na França, dispõe da segurança de uma instituição no poder. Meu júri seria uma instância que, por assim dizer, não elogiando ninguém não proporia modelo algum, mas que, reprovando tiraria o poder do poder e o redistribuiria à massa, aos leitores. Ensinaríamos-lhes a dizerem não. Toda educação leva ao “sim” maquinal. Por conta disso, o meu lado que diz “sim” é necessariamente o que menos explorei ou que explorei preguiçosamente. O lado de mim que diz “não” é muito mais significativo quanto à minha personalidade e ao meu indivíduo, este último muito mais programador. Ora, entrar para um júri é entrar para dizer sim, mesmo se acredita-se o contrário. Foi o que fez com que eu entrasse para o prêmio Médicis. Eu acreditava estar agindo contra isso que existia. Certamente não é por nada que o Médicis tenha coroou Ollier e Wittig. Mas isso não é suficiente para lavar os erros. Ao longo de seis anos teria havido somente um erro sobre o qual o prêmio tem dúvidas. Eu falo, é claro, no princípio. Um prêmio, não logo de início, mas ao fim de dois anos, é uma sociedade. Microcósmico, mas duro como ferro. Um prêmio, ao fim de pouco tempo, torna-se O PRÊMIO. Isto é, uma instituição que faz o interesse pelo prêmio passar à frente do interesse pelo livro. Ao fim de dois anos, o interesse pela instituição ultrapassa o interesse pelo indivíduo, pelo prêmio e pelo livro. O prêmio blinda-se com regras, ele defende-se. Um determinado livro é considerado em função do bem ou mal que ele fará ao prêmio. O objeto do prêmio torna-se o prêmio. Como um diretor comercial que lastima a venda de um certo produto, certamente útil, mas de um necessidade restrita pois uma venda mais reduzida causaria prejuízo ao seu renome crescente. Ao fim de dois anos, de cinco anos quando muito, acontece o seguinte: já quase não faz-se mais questão do objetivo atribuído ao prêmio. Foi bom na adolescência, no período poético das estréias. O objeto é a sobrevivência do prêmio. Todos os prêmios colocam-se em princípio como revolucionários no início. Mas relativamente revolucionários quantos aos outros prêmios. E eu creio que o mal vem daí. Se existisse uma ligação real, ideológica — não recuemos diante da palavra — entre os diferentes membros do júri, poderíamos retardar sua decrepitude e a degradação de uma relação inicial que liga os diferentes membros do júri, ligação que, com frequência, provocou a fundação do prêmio. Dez pessoas juntas que têm em comum apenas o gosto de toda boa literatura formam um salão, onde mesmo as querelas são mundanas. Não acredito que no melhor dos casos evitemos o escolho de uma sociedade recomeçada, não, mas ao menos trataria-se de uma sociedade “invivível”.

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