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30 di mei - uma data esquecida de maio

Atualizado: 2 de mar. de 2022


Colagem por Talita Santana


“Entre Blenheim, o cemitério judaico do Século XVII, e Campo Alegre fica Wakota, um subúrbio de Willemstad. Wakota é um ‘entremedio’, como dizem os curaçaoenses ao responder à pergunta ‘como vai?’. ‘Oh, entre medio’, entre ambos, o que geralmente significa: ‘Entre a enforca e o estrangulo’ – Frank Martinus Arion, Double Play.

Intertítulo de abertura de Geographies of Freedom, de Miguel Peres dos Santos (2019).


Corte



30 di mei, 1969


Nesta data, em Willemstad, capital de Curaçao a população negra antilhana (vale nota que a população antilhana autóctone, indígena, foi massacrada, violada e escravizada pelos espanhóis, expulsa de Curaçao à altura da posse holandesa), se levanta contra as explorações da Werkspoor Caribbean Company, da Shell, que dispendia pagamentos menores a trabalhadores negros para realizar o mesmo trabalho que aqueles de tez branca.

A história do processo colonial holandês é marcada, como todos os processos coloniais, de racismos que vigoram até hoje. Todo Natal, as celebrações são marcadas por visitas de Sinterklaas, o Papai Noel, rodeado de ajudantes, os Pedros Pretos (Zwarte Piet), meninos negros que distribuem os presentes às crianças. Essa representação consiste no adornamento de pessoas com roupas espalhafatosas de época, peruca crespa e black-face, isto é, pintura do rosto com tinta preta, somada à emulação de sotaques dos territórios dominados. Todo ano, a despeito dos protestos, grandes parcelas da população (e não só holandesa, mas, também, belga), reclamam o direito de manter a prática como exercício liberdade de celebração de uma tradição histórica, negando veementemente a existência de qualquer racismo na figuração do Zwarte Piet. Afinal, como poderia tal personagem ser fruto de racismo se ele é um ajudante bondoso do Papai Noel, que distribui presentes e alegra as crianças? Antes, isso é uma homenagem. Além do mais, não é que Zwarte Piet seja, de fato, negro, a cor de sua tez se dá por conta da fuligem que gruda em seu rosto ao descer pelas chaminés das casas. Quanto à peruca crespa, os brincos de ouro e o sotaque surinamês, deve ser apenas a tentativa de contemplar todos na brincadeira.

Ridículas como sejam as justificativas, são exemplares do processo colonial holandês, que naturaliza a hierarquia social e a reproduz, a seu bel-prazer, na personificação e representação pictórica de personagens claramente marcados por traços distintivos de língua e fisionomia; uma alteridade hegemonicamente definida pela relação colonial e pungentemente reproduzida por meio da “dissonância cognitiva” belgo-holandesa, como apontado por Gloria Wekker, lembrada por Peres dos Santos.

30 di mei marcou, na história da Holanda, um evento que procura, de todas as formas, ser esquecido, sucateado e abarrotado nos confins dos arquivos audiovisuais de Haia, mas trazidos à tona, de forma preciosa, pelo trabalho de Miguel Peres dos Santos, pesquisador artístico português radicado na Holanda em dois filmes: Voices (2015, 18 minutos, HD) e Geographies of Freedom (2019, 49 minutos, 4K), este último um projeto de pesquisa mais amplo com algumas atividades no HNI (He Nieuwe Instiuut) de Rotterdam. Por meio destas obras, podemos conhecer a história de uma nação próxima à nossa, pequena, e falante de uma língua crioula, o Papiamento, que pode mesmo ser compreendida, com algum esforço, pelos falantes de português. Ironia que lembremos de tantos maios e se nos escape este 30 di mei, tão potente, em que dois ativistas foram mortos, entre centenas de feridos e presos. Guiado por uma ideologia revolucionária (ou revolusionária, em Papiamento), o levante procurou derrubar os remanescentes do colonialismo holandês. A resposta do governo holandês, além do envio de um destacamento de 300 fuzileiros navais, foi o pedido de que brancos e negros trabalhassem juntos “para que nos tornemos humanos de novo”, como vemos em um trecho das imagens de arquivos desenterradas pelo trabalho precioso de Peres dos Santos. Vale que esbocemos uma rápida consideração sobre o trabalho de Peres dos Santos, que nos resgata esse episódio esquecido. Se atendo à etimologia da palavra “arquivo”, que relaciona origem e poder, seu trabalho aborda o sistema pelo qual o exercício de autoridade se estabelece por meio da construção de uma origem sobre a qual o poder pode ser exercido. O arquivo se dá, neste sentido, como o resíduo material da memória, como a oficialização de uma história que justifica e prova a identidade cultural que provê a autoridade. Na medida em que arquivos são seleções, aqueles oficiais se tornam dispositivos institucionais de poder; uma ordem do discurso que exclui, mais do que inclui, construindo, a partir de preceitos próprio à autoridade, uma zona de exclusão que, neste caso, se erige pela exótico, pela alteridade que destoa da norma. Deste modo, o trabalho com o arquivo operada por Peres do Santos objetiva alternativas futuras e estratégias de subversão do próprio arquivo, isto é, da memória oficial.

Tal qual a obra de Peres dos Santos, que nos traz o passado ao presente, também em 1969 o 30 di mei não se resumiu a Curaçao. Dois dias depois, em primeiro de junho de 1969, a comunidade negra antilhana na Holanda se manifestou, junto a muitos brancos solidários à causa, contra a intervenção militar holandesa.

O acontecimento de 30 di mei foi resultado de um processo de exploração do Caribe por conta de suas reservas de alumínio e petróleo durante a Segunda Guerra Mundial, que levou ao recrutamento de muitos trabalhadores no território. Evidentemente, estes recebiam tratamento diferente consoante a cor de sua pele. Mas era lugar-comum, na psiquê neerlandesa, que o país promovia um desenvolvimento civilizatório no território, promovendo o desenvolvimento de infraestrutura a todos. Claro, sem dúvida, à exceção do fato de que os bairros negros foram todos desenvolvidos à margem das refinarias na direção direta do vento que, no país, sempre sopra na mesma direção, levando as fumaças tóxicas exatamente na direção de Whishi e Marchena, os bairros negros. Como resultado, o governo holandês intensificou propostas de migração de antilhanos à Holanda, dando a eles uma estrutura que lhe era negada em seu próprio país e, muitas vezes, negando-lhes moradia em cidades grandes como Amsterdam, Haia, Utrecht ou Roterdam.


Corte


Den mi bola di kristal Em minha bola de cristal

mi ta mira den futuro. vejo meu futuro.

Den mi orea sapu ta yora O sapo canta em minha orelha

un katika di miseria. uma cantiga de miséria.

Mi ta mira mi próhimo Eu olho meu próximo;

disfrasá na eskeleto um olhar disfarçado

lorá den klechi di papel envolto em um lenço de papel

ta kana tene muraya. agarrado à parede.

Mi ta mira un pareha Eu vejo um casal

ta gatia subi trapï Kranshi. subindo as escadas da prefeitura

Madrina a keda ’bou ta pela A madrinha ficou embaixo

kabaron di awa dushi. pelando camarões d’água doce.

Mi ta mira um entiero. Eu vejo um enterro

Kuater homber ku machete Quatro homens com machetes

ta karga morto di moral a carregar o defunto da moral

lorá den lanchi’ ramakoko. enrolando em folhas de palmas.

Mi ta mira kakalaka Sali Eu vejo as baratas saírem

fo ‘i pippanan frusé di Isla. dos canos enferrujados da Shell.

Un imáhen kibrá ta parti Uma imagem quebrada a oferecer

komunion pa totolika, a comunhão às pombas.

I den fondo leu ayá E ao fundo, na distância

lamá di dignidat a seka. o mar da dignidade secou.

Nos ta hunga ‘tapa kara’ Brincamos juntos de “cabra-cega”

hasi bergwensa ta pa Dios. e passamos a vergonha para Deus.


Bola – Elis Juliana (Curaçao, 1927-2013)


Três anos após a redação desse poema, em 1985, a Shell encerrou suas atividades em Curaçao.


Confira a homepage de Miguel Peres dos Santos: https://vimeo.com/peresdossantos



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