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trajetórias feministas do operarismo - parte I

Atualizado: 2 de mar. de 2022



“A mulher é o outro em relação ao homem. O homem é o outro em relação à mulher. A igualdade é uma tentativa ideológica de escravizar a mulher em escalas ainda maiores […]. Para a mulher, libertar-se não quer dizer aceitar a mesma vida que o homem, porque esta não é vivível, mas expressar o seu sentido de existência […]. Não queremos, a partir deste momento, nenhuma tela entre nós e o mundo […]. O feminismo foi o primeiro momento político de crítica histórica da família e da sociedade […]. Recolocamos em discussão o socialismo e a ditadura do proletariado […]. A força do homem está em sua identificação com a cultura, a nossa está na sua recusa […]. Procuramos a autenticidade do gesto da revolta e não a sacrificaremos, nem pela organização nem pelo proselitismo. Nos comunicamos apenas com mulheres.” Rivolta Femminile, panfleto (Roma/Milão, julho de 1970); texto atribuído a Carla Lonzi, Carla Accardi e Elvira Banotti.

Este é o texto número #03 da nossa parceria com a GLAC edições, Maio Insurgente. Textos inflamáveis produzidos nos ecos revolucionários de Maio ao redor do mundo. Nesta semana, apresentamos Itália.

Comunicamos que este texto fulminante será dividido em três publicações: hoje, segunda-feira e quarta-feira. Seria impossível não oferecer tamanho espaço a este trabalho: ele abre caminho.

Agradecemos com amor e fúria ao nosso caríssimo Jefferson Viel, tradutor deste trabalho de potência imensa, professor e pesquisador sobre Autonomismo e Operarismo Italiano e suas trajetórias.


 

Os movimentos sociais que animaram a Itália da segunda metade do século XX e as correntes teóricas do operarismo e da Autonomia que os acompanharam continuam a formar uma referência decisiva para boa parte da esquerda radical e/ou revolucionária francesa atual. No entanto, malgrado essas novas perspectivas teóricas tenham influenciado o movimento feminista da época, deve-se notar que elas desapareceram quase por completo das referências dos movimentos feministas contemporâneos. Em torno de grupos como o Lotta femminista, dos vários comitês para o assalariamento do trabalho doméstico ou de figuras como Mariarosa Dalla Costa, Leopoldina Fortunati e Silvia Federici, despontam efetivamente análises que, ao se situarem no sulco do corpus marxista “clássico” e se inspirarem diretamente na perspectiva operarista, foram capazes de renovar o exame dos mecanismos da dominação capitalista e dos processos de exploração não apenas das mulheres como do conjunto da classe operária. Dado que souberam pensar a articulação entre trabalho assalariado e não assalariado e, sobretudo, desenvolver perspectivas de luta a partir dessa articulação, parece-me interessante retornar a essas feministas ­– particularmente no contexto contemporâneo, marcado, duma parte, por uma massa cada vez mais consistente de trabalhadores explorados fora do modelo clássico de assalariamento e, doutra, pelo fato de que a classe operária sindicalizada, tradicional, parece seguir ainda hoje como o principal fator capaz de, graças a sua imponente capacidade de paralisação e de bloqueio econômico de setores chave, realmente influenciar a relação de forças que opõe os trabalhadores ao capital. Em um primeiro momento, então, abordarei o diálogo teórico surgido entre o movimento operarista e o movimento feminista no período que se estende do fim dos anos 1960 ao fim dos anos 1970. Em um segundo momento, enfocarei as perspectivas de luta desencadeadas por essas análises teóricas, antes de, à guisa de conclusão, interrogar se – e como – é possível reatualizar os instrumentos forjados à época para pensarmos as lutas hodiernas. Pensar as mulheres no capitalismo de um ponto de vista operarista No marxismo clássico, sobretudo depois de Engels, a questão das mulheres é amiúde vista como mera questão de opressão: as mulheres são dominadas justamente por não serem exploradas à maneira capitalista. Sua libertação, portanto, pressuporia em primeiro lugar sua inserção nas fileiras operárias, mediante a obtenção dum trabalho remunerado. Tal estratégia foi questionada particularmente pelo Lotta femminista, para quem o problema se situava não à jusante, mas à montante de divisão sexual do trabalho: O ponto de vista da luta é descobrir a fraqueza organizacional que permite separar as frações de classe com mais poder daquelas com menos poder, isto é, a fraqueza organizacional que, ao permitir que o capital planifique essa divisão, nos derrota [1] Assim, o tema da divisão da classe operária efetuada pelo capital torna-se o eixo principal da abordagem das militantes feministas italianas. Elas compartilham de vários pontos fundamentais do pensamento operarista, particularmente a ideia do primado da classe operária, mas a ampliam de modo a incluir nesta também as mulheres e os não assalariados. Entre outras coisas, essa redefinição envolveu uma transposição feminista das principais perspectivas de lutas do operarismo – da recusa ao trabalho à centralidade da questão salarial – no quadro de uma organização que permite o surgimento de uma nova subjetividade, revolucionária. A mais efetiva transformação de paradigma realizada pelo operarismo em relação ao marxismo clássico, elaborada particularmente em Operai e capitale, consiste em considerar o capital do ponto de vista da classe operária, ou seja, considerar a classe operária como ponto de partida, como autêntica conditio sine qua non, do processo de valorização do capital: primeiro a luta, depois o capital, dizia Mario Tronti [2] Se o vendedor da força de trabalho é o pressuposto do capitalismo; de uma perspectiva feminista, a dona de casa é o pressuposto do vendedor da força de trabalho. Sob esse ângulo, a dona de casa pertencente à classe operária, a “working class housewife”, torna-se “indispensável à produção capitalista” e “determinante para a posição de todas as outras mulheres”, como escreve Dalla Costa ao fim das primeiras linhas de Potere femminile e sovversione sociale [3]. Quando essa figura da “working class housewife” é posta à luz, duas transformações de paradigma concernentes à abordagem marxista clássica são realizadas: por um lado, a situação da dominação na qual as mulheres se encontram não aparece mais como consequência do capitalismo que lhes havia (voluntariamente ou não) integrado apenas de modo parcial ao mercado, mas, ao invés, a divisão entre homens e mulheres aparece como anterior ao desenvolvimento capitalista; por outro, é transposto um limiar ulterior, respeitante à perspectiva desenvolvida pelo operarismo em relação à produção de mais-valor. No entanto, esse passo adicional já havia sido tangenciado por Tronti, quando escreveu em “A fábrica e a sociedade”: Para reduzir o valor da força de trabalho, o crescimento da produtividade deve afetar os setores da indústria cujos produtos determinam o valor dessa força, ou seja, as indústrias que fornecem quer mercadorias necessárias à reprodução do operário quer os meios de produção dessas mercadorias [4] O que Tronti não foi capaz de explorar, é o fato de que, além das “mercadorias necessárias para a reprodução do trabalho”, é preciso levar em consideração todos os serviços que são prestados a tal reprodução. Se examinarmos o trabalho realizado pela “working class housewife”, notaremos que, antes mesmo do crescimento da produtividade das indústrias que participam da reprodução da força de trabalho, é a instauração da gratuidade do trabalho vivo da reprodução que representa um fator determinante na redução do valor da força de trabalho e, por conseguinte, no aumento do mais-valor. Isso nos leva a um outro aspecto-chave da perspectiva operarista sobre a relação entre trabalho e capital, qual seja, a ideia de que o capital se organiza politicamente em resposta à organização (e à unidade) da classe operária. Tronti define a história do desenvolvimento capitalista como segue: Na sociedade do capital, o poder político efetivamente possui uma necessidade econômica: a de, por meio da força, obrigar a classe operária a renunciar seu papel social de classe dominante [5] Essa perspectiva será desenvolvida particularmente por Silvia Federici em sua obra mais importante, Calibã e a bruxa, em que é articulada a tese conforme a qual “o capitalismo foi a contrarrevolução que destruiu as possibilidades que haviam emergido da luta antifeudal” [6]. A exposição de Federici sobre a maneira como a divisão entre homens e mulheres e entre produção e reprodução constituiu um elemento fundamental dessa contrarrevolução torna claro como o poder que se impôs aos corpos das mulheres resulta de um contexto específico: a crise demográfica europeia na passagem do século XV para o XVI, que permitiu à nascente classe operária conquistar certo poder sobre a classe capitalista, visto que esta carecia dramaticamente de mão de obra a ponto de criar as premissas duma crise de acumulação. Nesse contexto, a contracepção, o aborto, o infanticídio etc. passaram a ser severamente reprimidos, particularmente por meio da assim chamada caça às bruxas. Justamente porque as mulheres, na qualidade de produtoras de força de trabalho destinada à exploração, detinham certo poder, sua repressão específica e sistemática tornou-se um imperativo aos capitalistas, que deveriam disciplinar sua força subversiva [7]. Se devemos sobretudo à Autonomia, e particularmente aos textos pós-operaristas de Antonio Negri, a exploração do conceito de fábrica-social; sem embargo, devemos às feministas a compreensão daquilo que ocorre fora da fábrica como momento integrado ao ciclo de produção capitalista. Relações amorosas, sexualidade, procriação, educação etc.: cada aspecto da vida social será analisado a partir da lógica da valorização capitalista. Até mesmo os lugares do trabalho assalariado serão examinados através desse prisma, a fim de observar a parte de trabalho reprodutivo, feminizado (sorrisos, atenções etc.), que lhe é frequentemente exigida, embora não seja reconhecida como tal. Mediante diferentes figuras, da mãe-de-família negra às “trabalhadoras do sexo” [8], da esposa do operário branco às mulheres assalariadas num dos setores daquilo que hoje se chama de care [9], emerge a possibilidade de unidade do proletariado para além das especificidades de qualquer uma dessas figuras. Assim como o operário, a “working class housewife” de fato ocupa um posto nevrálgico na relação de capital: se seu trabalho, e até mesmo a totalidade de sua atividade, são subsumidos ao capital, opor-se a tal subsunção requererá sobretudo lutar contra si próprio, impelir o trabalho contra o trabalho.

“[1] LOTTA FEMMINISTA, “Alla Redazione del Manifesto”, Quaderni di Lotta Feminista, n. 1: L’Offensiva, Turim: Musolini, 1972, Prefazione, p. 19, apud Steve WRIGHT, Storming heaven: Class Composition and Struggle in Italian Autonomist Marxism, 2a ed., London: Pluto, 2017, cap. 6, p. 123.”

“[2] Cf., “Lênin na Inglaterra”, trad.: Homero Santiago, Cadernos de Ética e Filosofia Política, v. 2, n. 29, pp. 158-63, 2016, p. 158.”

“[3]Mariarosa DALLA COSTA, Potere femminile e sovversione sociale, 4a ed., Venezia: Marsilio, 1977, p. 33.”

“[4] In Ouvriers et capital, trad.: Yann Moulier-Boutang, Paris: Christian Bourgeois, 1977, p. 59. [Trata-se, na verdade, de uma citação d’O capital. Cf. Karl MARX, O capital: crítica da economia política, livro I: o processo de produção do capital, trad.: Rubens Enderle, São Paulo: Boitempo, 2013, cap. 10, p. 390. Na última edição italiana de Operários e capital (Roma: DeriveApprodi, 2006), a citação aparece, bastante modificada, na p. 47]”

“[5] TRONTI, Operai e capitale, p. 240.”

“[6] Silvia FEDERICI, Calibã e a bruxa: mulheres corpo e acumulação primitiva, trad.: Coletivo Sycorax, São Paulo: Elefante, 2017, cap. 1, p. 44.”

“[7] Ibid., cap. 2, pp. 167 e ss.”

“[8] “Operaia del marciapiede”, no original. Trata-se de uma referência a uma canção do grupo musical do Comitê para o assalariamento do trabalho doméstico de Pádua, citado em Louise TOUPIN, Le salaire au travail ménager: Chroniques d’une lutte féministe internationale (1972-1977), Montréal: Remue-Ménage, 2014, p. 408”

“[9] Em português, os setores de “cuidados”, como a saúde e a educação infantil, que visam particularmente o atendimento de pessoas em algum sentido carentes de autonomia plena. [Nota do Tradutor]”


Maio Insurgente * Leia também o outro texto do programa, publicado pela GLAC Edições, traduzido do jornal operarista Rosso de 1976, o texto "Um comunismo mais forte que a metrópole”. Rosso foi um jornal organizacional por excelência - tece sua manifestação na cisão radical e imediata, sem alternativas ou quebras de compromisso com o verdadeiro corte revolucionário que irrompe em direção ao futuro. Sem a superficialidade de discursos corteses ou burocracias que institucionalizem a revolta. Clique neste link para ser redirecionado para a postagem. Avante. * Celebramos também a publicação da GLAC Edições “Um Piano nas Barricadas: por uma história da autonomia, Itália 1970”. Certamente, o mais precioso material que alcançamos nos últimos tempos. Clique neste link para conhecê-lo.



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