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a culpa do branco - parte II

Atualizado: 26 de jan. de 2022


The Savoy Ballroom, Harlem, New York, 1940.
 

Na segunda parte de “A Culpa do Branco”, vemos a conclusão da reflexão de James Baldwin sobre a distância abismal criada entre os EUA branco e os EUA preto. Referindo-se a Henry James, um dos maiores escritores dos EUA, Baldwin propõe uma metáfora acerca de uma sociedade infinitamente desigual, produtora de máquinas inomináveis que ceifam a humanidade pela criação de mecanismos e cortinas atrás das quais a subjetividade branca se esconde para poder viver, cindida de sua consciência social.

 

A situação estadunidense é muito peculiar e talvez sem precedentes no mundo. Nenhuma cortina sob o céu é tão pesada quanto aquela da culpa atrás da qual os estadunidenses brancos se escondem. Esta cortina pode se mostrar ainda mais mortal às vidas humanas quanto aquela Cortina de Ferro sobre a qual tanto falamos conhecendo tão pouco. A cortina estadunidense é a cor. Cor. Homens brancos tem usado essa palavra, esse conceito, para justificar crimes inenarráveis não só no passado, mas no presente. É possível medir de forma bem nítida a distância entre o branco estadunidense e sua consciência – consciência de si mesmo – ao observarmos a distância entre os EUA branco e os EUA negro. Basta se perguntar quem estabeleceu essa distância, a quem essa distância é destinada a proteger e de que essa distância é delineada para oferecer proteção.

Eu vi tudo isso de forma bem vívida, por exemplo, pelos olhos dos oficiais a lei no Sul que barravam, digamos, a entrada para uma corte de justiça. Viam-se lá prostrados, camaradas, vestidos com a autoridade da comunidade, com seus capacetes, cassetetes, armas e aguilhões de gado. Diante deles, negros desarmados, ou melhor, um grupo de pessoas desarmadas arbitrariamente chamadas de negras, cujas cores na verdade iam da estepe russa ao Chifre de Ouro e a Zanzibar. De um momento para o outro, porque não podia resolver a situação por nenhum outro meio, um xerife, um delegado, um honrável cidadão estadunidense, começou a bater nessas pessoas. Algumas delas bem poderiam ser seus parentes de sangue. Certamente se relacionam à mãe preta de sua memória e a seus coleguinhas negros de escola. Por um instante ele pareceu quase implorar às pessoas diante de si para que não o forçassem a cometer ainda mais um crime, aprofundando o oceano de sangue em que sua consciência se afogava, em que sua hombridade perecia. As pessoas não se foram, é claro; uma vez que o povo se levanta, nunca se vai (algo que devia ser incluído no manual da Marinha). Assim, o pau cantou, o sangue correu, e sua amargura, angústia e culpa se completaram.

Também vi isso isso nos olhos de policiais novatos do Harlem – novatos que eram, na verdade, as pessoas mais amedrontadas do mundo e que tinham que fingir para si mesmos que o junkie preto, a mãe preta, o pai preto, a criança preta, eram de uma espécie humana diferente da deles. O xerife sulista e o policial novato podiam (e suspeito que ainda podem), somente lidar com suas vidas e seus deveres se escondendo atrás da cortina da cor – uma cortina que, de fato, eventualmente se torna a principal justificativa para a vida que levam. Por isso, eles mesmos montam uma barricada por trás desta cortina e dão continuidade a seus crimes, no grande e inadmissível crime que causaram contra si mesmos.

Pessoa branca, me escute! Um homem é um homem, uma mulher é uma mulher, uma criança é uma criança. Negar estes fatos é abrir as portas a um caos mais profundo e mortal e, no espaço de vida de uma pessoa, a algo mais atemporal, mais eterno do que a visão medieval do inferno. Homem branco, já conseguiste chegar a essa blasfêmia impronunciável em nome do lucro. Não sobreviverá às coisas que adquiriu – o único motivo pelo qual continua a adquiri-las, como adictos que gastam cem dólares por dia – e seu dinheiro existe principalmente em papel. Que Deus lhe ajude no dia em que o povo demande saber o que se esconde atrás desse papel. Além disso, é terrível levar em conta a natureza precisa das coisas que comprou com a carne que vendeu, do que continua a comprar com a carne que continua a vender. Em direção a que, de fato, você vai? Em direção a qual produto humano você devota tanta ingenuidade, tanta energia?

Em The Ambassadors, romance de Henry James publicado antes de sua morte, o autor conta a história de um homem de meia idade da Nova Inglaterra, a quem sua noiva, viúva de meia-idade, delega a tarefa de regatar seu filho único do ambiente abastado de Paris. Deseja que ele retorne aos EUA para assumir a direção da fábrica familiar. No processo, é o sujeito de meia-idade da Nova Inglaterra, o Embaixador, que é seduzido não por Paris, mas por uma forma de vida nova e menos utilitarista. Ele aconselha o jovem para que “viva, viva tanto quanto puder; é um erro não viver”, o que traduzo como significando “confie na vida e ela lhe ensinará, na alegria e na tristeza, tudo que precisa saber”. Jazzistas sabem disso. Os velhos e velhas de Montgomery[1], aqueles que acenavam, cantavam e choravam, mas não podiam participar do protesto, ainda que tenham trazido tantos de nós ao local onde nós, sim, podíamos marchar, sabem disso. Mas os estadunidenses brancos não sabem disso. Entrincheirados dentro de sua própria história, permanecem presos naquela fábrica à qual, no romance de James, o filho torna. Não sabemos o que essa fábrica produzia, pois o autor nunca diz. Ele nos diz somente que a fábrica, num custo humano inacreditável, produz objetos inomináveis.

 

[1] Referência aos boicotes aos ônibus de Montgomery, Alabama, ocorridos entre 1955 e 1956 e iniciados na segunda-feira seguinte à prisão de Rosa Parks, mulher negra que se recusou a ceder seu assento a um homem branco. A Suprema Corte dos EUA considerou as leis de segregação do Alabama (e de Montgomery) como inconstitucionais.

 

Tradução por Gustavo Racy


 

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