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a verdade da ficção - parte I

Atualizado: 26 de jan. de 2022


Witnesses, 2016, Ken Nwadiogbu
 

“A verdade da ficção”, de Chinua Achebe, nos traz aquelas que talvez sejam as mais potentes reflexões do autor sobre a arte narrativa. Evocando Coleridge, mestre romântico, e Tutuola, mestre Yorubá, Achebe tece considerações sobre o poder e a necessidade da ficção como faculdades humanas que perpassam espaço e tempo. Se em nosso texto precedente, Achebe debatia as questões políticas que impediam um diálogo honesto entre o norte e o sul, aqui, ele reata (não sem ironia) os nós perdidos deste diálogo ao por em relação a ficção como uma potência que, a despeito de suas diferenças e particularidades, suas capacidade benéficas e maléficas, prescindem, de certo modo, as distinções socioculturais, posto que é uma necessidade da espécie.

 

Picasso disse uma vez que toda arte era falsa. Já que o Ocidente lhe dera crédito por algo em torno de 90% de suas conquistas artísticas do Século XX, Picasso sem dúvida se sentiu à vontade para dizer o que quisesse sobre o assunto! Seja como for, eu creio que ele simplesmente chamava a atenção, na maneira exagerada dos videntes e profetas, para o fato simples, porém importante, de que a arte não pode ser uma cópia em carbono da vida e, enquanto tal, não pode ser “verdadeira”. Se não é verdadeira, deve ser, portanto, falsa! Porém, se a arte pode dispensar a exatidão constritiva da verdade literal, ela, no entanto não adquire, em seu turno, poderes incalculáveis de persuasão à imaginação. Por isso é que uma única tela, a Guernica, do próprio Picasso, pôde assombrar o maquinário estatal do fascismo espanhol. Como pode que uma mera pintura sobre a tela pudesse exercer tamanho espanto senão se estivesse de acordo, ou, pelo menos, tivesse uma relação inquietante com a realidade reconhecível?

Em seus Memorial Verses, Matthew Arnold [1] põe nas bocas do poeta-filósofo Goethe as seguintes palavras: O fim está por toda parte A arte possui, ainda, verdade. Refugia-te nela. Posta nesta situação grandiosa e apocalíptica, a arte, e qualquer que lhe seja a verdade outorgada, estão fadadas a se tornarem indevidamente remotas.

De fato, a arte é o constante esforço humano em criar para si uma ordem de realidade distinta daquela que lhe é dada; uma aspiração em se prover de um segundo apoio sobre a existência por meio de sua imaginação. Por motivos práticos, me aterei a apenas uma das formas que a humanidade moldou a partir de sua experiência com a linguagem: a arte da ficção.

Em seu brilhante ensaio The Sense of an Ending, Frank Kermode [2] define a ficção simplesmente como “algo que sabemos não existir, mas que nos ajuda a dar sentido para e a nos movermos no mundo”. Definida desta forma prática não nos prepara somente para uma, mas para uma variedade de ficções. O próprio Kermode chama a atenção para algumas delas, como, por exemplo, a ficção matemática do “infinito mais um”, que não existe, mas que facilita a solução de alguns problemas de matemática pura; ou a ficção legal de certos sistemas jurídicos que estabelecem que, quando ambas as partes de um casal morrem ao mesmo tempo, a lei, na busca da igualdade, pretenderá que a mulher morreu primeiro, para que se patrimônio não seja exacerbadamente combalido.

Posto de forma distinta, nós inventamos diferentes ficções que nos ajudem com problemas particulares que encontramos pela vida. Evidentemente, estes problemas não são sempre específicos e claros, ou mesmo conscientes, como nas formulações jurídicas e matemáticas. Quando duas crianças bem pequenas dizem entre si “Vamos fazer de conta que...”, e começam a performar papeis como os de pai e mãe, elas estão obviamente criando uma ficção de propósito menos definido, mais espontâneo e, ouso dizer, mais profundo.

Qual a natureza deste propósito? Acho que ninguém pode dizer com certeza. Tudo que sabemos é que, a julgar pela evidência de que a humanidade tem ficcionalizado em todos os lugares e a todos os momentos, ela sem dúvida possui uma necessidade inescapável pela atividade. Até hoje, ninguém pôde chegar a menor evidência de que qualquer grupo humano, atual ou passado, conseguiu dispensar a necessidade da ficção.

Dado a grande espaço entre ser e saber, estre sua essência e sua existência, a humanidade não tem escolha senão criar e acreditar numa ou noutra ficção. Talvez o julgamento último a respeito de uma pessoa seja não se ela se aquiesce a uma ficção, mas qual tipo de ficção a persuadirá àquela aquiescência, aquela suspenção voluntária da descrença da qual Coleridge [3] falou, ou aquela “submissão experimental”, para citar I. A. Richards [4].

Não devemos, entretanto, negligenciar o cuidado mostrado tanto por Coleridge quanto por Richards em suas escolhas de palavras; e isto por uma razão muito boa. A descrença de Coleridge é meramente suspensa, e não abolida, e presumivelmente retorna no momento apropriado; já a submissão de Richards é experimental, e não definitiva ou permanente.

É importante estressar esse ponto, pois a humanidade não só cria ficções às quais aquiesce de modo reservado ou temporário, como os jogos de faz-de-conta das crianças saudáveis; ela também tem a capacidade de criar ficções que demandam e impõem sobre si obediência absoluta e incondicional. Voltarei rapidamente a isso, mas antes de tudo, permitam-me que me estenda sobre o que disse a respeito do desejo humano pela ficção para que possa incluir a questão de sua capacidade. O desejo humano pela ficção vai lado-a-lado com sua habilidade para cria-la, assim como a linguagem é inseparável da capacidade de fala. Se a humanidade tivesse somente a necessidade de falar, mas carecesse de seus órgãos específicos de fala, então não teria inventado a linguagem. Pelo que sabemos, outros animais selvagens podem ter tanta necessidade de falar quanto a humanidade sempre teve, e talvez tivessem se tornado tão eloquentes quanto, se tivessem sido dotados do aparato elaborado necessário para se expressar. Certamente, também, ninguém sugeriria que o mudo é silencioso porque não necessita falar, ou porque não tem nada a dizer. Se aplicarmos o mesmo raciocínio à propensão humana pela ficção, veremos que a necessidade de as criar não explicaria sua existência de forma adequada; é preciso também um aparato efetivo.

Este equipamento consiste, na minha opinião, na imaginação. Pois, da mesma forma que o humano é um animal fazedor de ferramentas, e por meio delas recriou seu mundo natural, ele é, também, um animal fazedor de ficções, remodelando sua paisagem imaginativa com suas ficções.

Todas as tentativas de definição precisas do humano devem falhar por conta de sua complexidade. O humano é um animal racional; o humano é um animal político; o humano é um animal fazedor de ferramentas; o humano é... etc etc. Se me perguntarem, eu adicionaria que o humano é um animal inquisitivo, um animal altamente curioso. Dadas as suas capacidades mentais e imaginativas, essa curiosidade não é menos que esperada. Num modo de dizer, o humano se encontra preso em um minúsculo vaga-lume de consciência. Atrás dele, a impenetrável escuridão de sua origem; adiante, uma outra escuridão em direção à qual ele parece ir. O que estas escuridões velam? Qual o significado deste minúsculo ponto de luz que intervém nelas em sua existência terrena? Diante destes mistérios as capacidades humanas são, ao mesmo tempo, imensas e severamente circunscritas. Seu conhecimento, ainda que impressionante e em expansão, jamais suprirá aquilo que a humanidade necessita saber. Nem mesmo o conhecimento e a sabedorias acumuladas de toda a espécie humana seriam suficientes. Com toda probabilidade, as questões últimas permanecerão.

Nos anos 1950, Dr. Sanya Onabamiro, um microbiologista nigeriano, publicou um livro perspicazmente intitulado Porque nossas crianças morrem, ecoando aquela que deve ter sido uma das mais frequentes e pungentes perguntas feitas por nossos ancestrais ao longo de milênios. Por que, de fato, nossas crianças morrem? Sendo um cientista moderno, Dr. Onabamiro forneceu respostas apropriadas ao Século XX: doença, desnutrição e ignorância. Qualquer pessoa razoável aceitará esta resposta “científica” como mais satisfatória do que respostas que teríamos de outros campos. Um feiticeiro, por exemplo, poderia nos dizer que nossas crianças morrem porque foram enfeitiçadas; porque alguém na família ofendeu uma divindade ou, de alguma outra forma, porque errou. Há alguns anos, eu assisti a um penoso espetáculo em que uma pequena e terna criança foi trazida perante os habitués desesperados de uma casa de oração. Fazendo-a sentar-se em um tapete, uma profetisa de autoridade maníaca declarava que a criança estava possuída pelo diabo e que era ordenado que seus pais jejuassem por sete dias.

Estes exemplos me servem para sugerir duas coisas: primeiro, a riqueza e pura prodigalidade da inventividade humana na criação de ficções etiológicas e; segundo, o fato de quem nem todas as suas ficções são úteis ou desejáveis.

Antes de tudo, entretanto, devo explicar minha temeridade em dar a impressão de que estou colocando no mesmo saco, sob a rubrica geral da ficção, os procedimentos frios, metódicos e, de maneira geral, maravilhosos da medicina moderna, com as “visões” erráticas de psicopatas religiosos. Em verdade, esses dois casos nunca deveriam ser mencionados juntos. Ao mesmo tempo, eles compartilham – por mais remoto que pareça – a mesma necessidade humana em explicar e aliviar sua intolerável condição. E ambos se servem de teorias da doença: a teoria do germe, por um lado, e a teoria da possessão diabólica, por outro. E teorias não são mais do que ficções que nos ajudam a criar sentido para nossas experiências, sujeitas à refutação quando suas explicações não sejam mais adequadas. Não há dúvida, por exemplo, de que cientistas do Século XXI e depois, verão algumas das noções científicas mais prezadas de nosso momento atual com a mesma indulgência divertida que mostramos em relação às trapalhadas das gerações passadas.

Ainda assim, independentemente do quão incompletos as gerações futuras os creiam, podemos, e, de fato, devemos dizer, que os insights dados por Dr. Onabamiro a respeito da alta taxa de mortalidade infantil são infinitamente mais úteis para nós do que o diagnóstico de um fanático religioso semilouco. Para concluir, há ficções que ajudam e há ficções que atrasam. Para dizer de forma simples, chamemo-las de ficções benéficas e maléficas.

O que torna a ficção – boa ou má – tão apelativa? Por que é que a humanidade deve se apartar da realidade para aliviar sua passagem pelo mundo real? O que jaz além desse aparente paradoxo? Por que é a imaginação é tão forte a ponto de nos levar constantemente além de nossa existência animal, imposta a nós por nossos sentidos físicos?

Deixem-me refazer essas perguntas de outra forma, para que não escapemos pela tangente e nos percamos nas nuvens da abstração.

Por que é que The Palm-Wine Drinkard, de Amos Tutuola [5], nos oferece um insight mais forte e memorável em relação ao problema do excesso do que todos os editoriais e sermões que lemos e escutamos, ou que leremos e escutaremos, sobre o mesmo tópico?

A razão é esta: enquanto editoriais e outras pregações nos dizem tudo sobre o excesso, Tutuola performa o milagre de nos transformar em participantes ativos de um poderoso drama da imaginação no qual o excesso, em todas os seus disfarces, se encarna. Uma vez aí, não podemos mais agir apenas com ouvintes: somos iniciados, fizemos nossa visita e nos encontramos naquele beberrão tanto quanto aquele beberrão encontrou a si mesmo ao longo de uma jornada corretiva – ainda que não sabida – naquele amontoado absurdo de coisas desagradáveis que é seu próprio filho, o bebê com meio corpo. Este encontro, como muito na novela, é inesquecível par anos por conta da inventividade de Tutuola não só em revelar a variedade das faces humanas que o excesso pode vestir, mas também sua hábil exploração das consequências morais e filosóficas da quebra – pela ganância – da lei de reciprocidade que informa, como uma força gravitacional, os movimentos aparentemente aberrativos de seu bizarro universo fictício.

Este auto-encontro, que eu considero a maior fonte de potência e sucesso das ficções benéficas, pode também ser definido como identificação imaginativa. As coisas não acontecem, meramente, diante de nós; elas acontecem, pelo poder e força da identificação imaginativa, para nós. Não apenas vemos, mas sofremos junto ao herói, e somos marcados com a mesma efígie da “punição e pobreza”, para usar uma frase familiar de Tutuola.

Deste modo, e sem que tenhamos pessoalmente que atravessar os desafios que o beberrão deve sofrer para sua expiação perante sua acedia e falta de autocontrole, nós nos tornamos, por um ato de nossa imaginação, beneficiários de sua aventura regenerativa. Que sejamos capazes de fazê-lo é uma das maiores bênçãos à nossa humanidade reflexiva: a capacidade de experienciar, diretamente, a estrada na qual estamos embarcados e, também, vicariamente, “the road not taken” (“a estrada não tomada”), como diria Robert Frost [6]. [Continua]


 

Notas:

[1] Matthew Arnold (1822-1888), foi um poeta crítico cultural inglês central ao longo do Século XIX. Influenciado pelo romantismo e militando pela europeização da Grã-Bretanha, acusou o unitarismo econômico e o puritanismo em sua obra mais conhecida: “Culture and Anarchy”, de 1869.

[2] Sir John Frank Kermode (1919-2010), foi um crítico literário inglês, mais conhecido por “The Sense of an Ending: Studies in the Theory of Fiction”, de 1967, citado aqui por Achebe. Foi docente em diversas universidades do Reino Unido e colaborados de inúmeras revistas literárias.

[3] Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), foi poeta, crítico e ensaísta. Um dos fundadores do Romantismo inglês, ao lado de William Wordsworth, Coleridge desenvolveu uma rica teoria da imaginação que se mantem atual pelo menos até o Século XX, tendo influenciado autores como Tolkien e historiadores como E.P. Thompson.

[4] Ivor Armstrong Richards (1893-1979), foi um crítico literário e retórico inglês cuja obra contribuiu para a formação do New Criticism, movimento crítico formalista.

[5] Amos Tutuola (1920-1997), foi um escritor nigeriano de origem Yoruba e, mais distante, Egba. Sua literatura, que ficou mais conhecida por “The Palm-Wine Drinkard” (“O bebedor de vinho de palma”), publicado em 1952, é inspirada em contos populares Yoruba.

[6] Robert Frost (1874-1963), foi um dos poetas estadunidenses mais importantes do Século XX. De obra múltipla, Frost explorou questões existenciais, refletindo a solidão do indivíduo perante um mundo indiferente.

 

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