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a disciplina da indisciplina

Atualizado: 14 de mar. de 2022


Colagem por Alex Peguinelli



"A disciplina da indisciplina" é um dos intertítulos da primeira obra a ser lançada pela coleção Rastilho, "Do anarquismo ao pós-anarquismo", do teórico político britânico Saul Newman.


Newman é professor da Goldsmiths College, de Londres, e trabalha sob a perspectiva de um "pós-anarquismo" como termo abrangente relativo a autores que leem o anarquismo clássico do século XIX à luz de contribuições pós-estruturalistas, perspectiva que foi popularizada a partir de "From Bakunin to Lacan", de 2001, que promoveu uma crítica a conceitos próprios ao ambiente do século XIX.


A coleção Rastilho é organizada por Lucas Piccinin Lazzaretti, doutor em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), tendo sido visiting scholar na Hong-Kierkegaard Library no St. Olaf College em 2014 e 2017, e Fellow para entre 2018/2019, em conjunto com a sobinfluencia edições.



 

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A disciplina da indisciplina


Ao chegar a termo com o fenômeno da servidão voluntária, espero ter revelado a liberdade ontológica que se encontra na fundação de todos os sistemas de poder, bem como forma a base de todo pensamento e ação humana autônoma. Qualquer política radical de emancipação hoje deve ter a audácia de afirmar a inexistência do poder e a sempre presente possibilidade de liberdade. É claro, além disso, que nossa libertação da servidão voluntária não pode ser um empreendimento puramente individual; deve ser praticada comunitariamente. Contudo, como Stirner nos mostrou, ela não pode envolver qualquer determinação coletiva de um ideal de liberdade a ser alcançado, uma vez que isso simplesmente levaria a novas formas de dominação. Entretanto, se, como sugeri, tomamos a realidade da liberdade como um ponto de partida ao invés de um objetivo final – o outro lado de nossa servidão voluntária –, esse problema seria evitado.


Contudo, isso não significa que a libertação da servidão voluntária não requer disciplina, desde que esta seja uma disciplina que nós impomos livremente sobre nós mesmos. Tudo volta ao problema da vontade: se, como La Boétie diz, tudo o que é requerido para nos libertarmos da fascinação pelo tirano é a vontade de ser livre, como geramos essa vontade? Se nos habituamos, como La Boétie diz, com nossa própria domesticação, de tal maneira que esquecemos o que a liberdade significa, como conclamamos a vontade para pensar e agir diferentemente? Não acontece necessariamente de forma espontânea – pelo contrário, temos a mesma provável disposição para obedecer espontaneamente como para resistir espontaneamente. É claro, como La Boétie mostra, quebrar o encanto da dominação é tanto uma questão de quebrar com certos padrões de ação e comportamento existentes, como é de inventar novos padrões; em outras palavras, muitas vezes é uma questão de simplesmente parar, de não mais continuar um padrão particular de obediência. Contudo, mesmo este, não é um gesto completamente passivo, mas eu diria, requer uma expressão deliberada e consciente de um modo de vida diferente e mais autônomo. Parece-me que a afirmação da liberdade (ou propriedade) de alguém requer formas de autodisciplina – aprender os “novos hábitos de liberdade” dos quais Sorel falou.


Como argumenta Richard Flathman, sem disciplina, não há ação e, portanto, nenhuma possibilidade de liberdade. Além disso, os limites disciplinares devem estar presentes para que a liberdade seja testada e comparada, agonisticamente (ver Flathman, 2003). Há o reconhecimento de que dentro de uma pessoa existem tendências, desejos e dependências que a tornam mais suscetível ao poder dos outros. Assim, as formas de “asceses” que, por exemplo, são discutidas por Foucault em seu último trabalho sobre as práticas éticas do “cuidado de si” dentro das culturas da antiguidade grega e romana, envolvem formas de autodisciplina tais que essas tendências podem ser controladas e dominadas, conforme o interesse da liberdade de alguém. Como Foucault coloca: “a preocupação consigo e o cuidado de si eram requeridos para uma conduta correta e para a prática apropriada da liberdade, a fim de conhecer a si mesmo... bem como para se formar, para se superar, para dominar os apetites que ameaçam oprimir alguém” (2000c: 285).


Ademais, tais práticas eram éticas no sentido de que diziam respeito não apenas de alguém para consigo, mas como alguém se relaciona com os outros. Para os gregos, o desejo de dominar os outros, de exercer poder excessivo sobre eles, era, em verdade, uma indicação de que alguém não dominava a si mesmo; a pessoa ficou intoxicada com seu próprio apetite por poder, um apetite ou desejo que dominou todos os outros dentro do indivíduo. Era um sinal de fraqueza ao invés de força. Como Rousseau sabia muito bem, se alguém deseja dominar os outros, é muito mais provável que seja dominado pelos outros. E também encontramos essa ideia refletida na noção de Stirner de propriedade, a qual, longe de implicar um desejo grosseiro e egoísta de exercer o poder sobre os outros, ao contrário, exibe uma extrema sensibilidade aos perigos postos para a autonomia de uma pessoa pelas tentações do que ele chama de “possessão” – onde alguém se torna “possuído” por certas paixões, pelo poder, dinheiro, sensualidade e assim por diante, assim se tornando dependente de objetos externos. A lição aqui de todos esses pensadores é que se joga o perigoso jogo do poder apenas às suas próprias custas. La Boétie advertiu que aqueles que se permitiram ser arrastados para a grande pirâmide do tirano na esperança de recompensas e favores, ou para exercer o poder sobre alguém abaixo deles, estes se colocaram em grande perigo. Então, temos aqui também uma ética (e, eu diria, uma política) da não-dominação, exercida por essas práticas de liberdade, através do autodomínio e da disciplina.


A liberdade, - ou propriedade – enquanto uma libertação de nossa servidão voluntária é uma disciplina, uma arte – algo que é aprendido, que alguém aprende com os outros e ensina aos outros, algo que é moldado, trabalhado, pacientemente elaborado, praticado no nível do eu [self] em suas relações com os outros. É um trabalho sobre nossos limites, tanto externos e, talvez mais importante, internos. O ponto importante, contudo, é que a liberdade é nossa sempre presente possibilidade e nossa condição ontológica, nosso ponto de partida. A percepção e afirmação dessa liberdade ontológica, juntamente com suas responsabilidades éticas, pode ser visto como o motivo central da teoria política pós-anarquista.

 

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