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a medicina mental diante do surrealismo

Atualizado: 27 de jul. de 2022


A medida das janelas é a fratura da fuga. Collage por Natan Schäfer. In: Surrealismo em Curitiba (Contravento Editorial, 2019)
 

A Fresta é uma coluna — uma colinade periodicidade semanal dedicada a publicação de textos realizados no seio do movimento surrealista e arredores, de curadoria de Natan Schäfer. Agora A Fresta é também impressa. Para recebê-la, preencha suas informações no formulário a seguir e lhe enviaremos gratuitamente, a cada duas semanas, uma cópia numerada do texto completo impresso em Papel Pólen 90g: shorturl.at/hmIX7

 

Publicado em outubro de 1930 no segundo número da revista Le surréalisme au service de la révolution, o texto A medicina mental diante do surrealismo ataca frontalmente as habituais políticas públicas de saúde mental. Embora o texto seja de 1930, é impressionante sua atualidade, tanto no que ele tem de pioneiro, quanto no que diz respeito à sobrevivência, e em alguns aspectos até mesmo piora, das estruturas repressoras da civilização ocidental, fazendo eco a iniciativas contemporâneas como as de Dassayeve Távora Lima, à frente da página Saúde Mental Crítica, assim como de outros envolvidos na crítica e transformação dos modos como à saúde mental é conduzida no ocidente.


Lembramos que não é por acaso que André Breton escreve este texto. As relações do surrealismo com a medicina não são poucas. Além do próprio Breton, que assim como Louis Aragon, foi estudante de medicina, o movimento contou com nomes importantes ligados a este campo do saber, como os médicos Théodore Fraenkel[1], Pierre Mabille[2], Maurice Heine[3], Jacques-André Boiffard[4], Jacques Lacan[5] e outros.


Ainda cumpre lembrar que Breton e Aragon foram convocados para trabalhar no front durante a Primeira Grande Guerra. É nesse momento que ele pode colocar em prática as primeiras lições de psicanálise, a qual então chegava à França, além de vivenciar de perto os dramas dos estresses pós-traumáticos causados pelos combates. Além disso, com Aragon, Breton trabalha no famoso hospital Val-de-Grâce, onde nas horas vagas lêem Lautréamont, ouvindo os urros dos internos ao fundo. Para além dos traços expressionistas destes momentos de sua Bildung, estas experiências despertam tanto em Breton como em Aragon uma sensibilidade singular para os sofrimentos e misérias do ser humano, contra os quais lutarão ao longo de toda sua vida de maneira exemplar, sendo o texto abaixo — até onde temos notícia inédito em português — um dos marcos representativos da integridade intelectual, aguda sensibilidade e fúria revolucionária de André Breton e do movimento surrealista.

 

A MEDICINA MENTAL DIANTE DO SURREALISMO


... Mas eu me erguerei, mas eu convocarei a infâmia como testemunha de acusação, eu a cobrirei de vergonha! É concebível sermos testemunhas de acusação?... que horror! somente a humanidade dá tais exemplos de monstruosidade! Haverá barbárie mais refinada, mais civilizada, que a testemunha de acusação?...

Em Paris, há duas cavernas, uma de ladrões, e outra de assassinos; a dos ladrões é Bolsa, a dos assassinos o Palácio de Justiça”.

(Petrus Borel)[6]


Dez jornais: Les Nouvelles Littéraires, Œuvre, Paris-Midi, Le Soir, Le Canard enchaîné, Progrès médical, Vossische Zeitung, Rouge et le Noir, Gazette de Bruxelles e Moniteur du Puy-de-Dome até onde tenho conhecimento ecoaram a polêmica levantada pela Sociedade Médico-Psicológica sobre uma passagem do meu livro Nadja: “Sei que, se fosse louco, logo depois de internado aproveitaria um remissão que meu delírio permitisse para assassinar com frieza um desses, de preferência o médico, que me caísse nas mãos. Com isso eu ganharia pelo menos, como acontece com os loucos furiosos, o privilégio de ocupar uma solitária. Talvez assim em deixassem em paz”[7].


A maioria destes jornais, preocupados sobretudo em tirar partido humorístico do incidente, limitaram-se, aliás, a comentar a réplica ridícula do Sr. Pierre Janet[8]: “As obras dos surrealistas são confissões de obcecados e duvidadores patológicos” e a repetir as gracinhas que, aliás, são habituais sempre que o alienista acha que tem do que se queixar quanto ao louco, o colonizador quanto ao colonizado, o policial quanto aquele que ele prende aleatoriamente ou não. Mas ninguém foi encontrado para fazer justiça à surpreendente pretensão do Dr. de Clérambault[9] que, na ocasião, não contentando-se em solicitar a proteção da "autoridade" contra os surrealistas, pessoas que segundo ele só pensam em “evitar os esforços de pensar” (sic), não teme sustentar que um alienista deve estar garantido contra o risco de ser aposentado prematuramente... por mais que se atreva a matar um paciente fugido ou libertado pelo qual ele se considera ameaçado. Nesse caso, ao que lhe parece, deve intervir uma sólida compensação pecuniária. É claro que os psiquiatras, acostumados a tratar os loucos como cães, espantam-se por não serem autorizados a, mesmo fora de serviço, matá-los.


A partir de suas declarações, concebemos que o Sr. de Clérambault não pode encontrar lugar melhor para exercer suas brilhantes faculdades do que no enquadramento das prisões, o que explica o fato de ele portar o título de médico-chefe da enfermaria especial da detenção junto à Delegacia de polícia. Seria surpreendente se uma consciência deste calibre, ou seja um espírito desta qualidade, não tivesse encontrado meio de se colocar inteiramente à disposição da polícia e da justiça burguesa. Entretanto, posso dizer que para alguns olhos isso trata-se de um comprometimento suficiente de modo que não possamos, sem incorrer numa injúria contra a ciência, considerar como sábios homens que, da mesma forma como o escandaloso Sr. Amy, do caso Almazian[10], têm acima de tudo a função de servir como instrumentos de repressão social? Sim, afirmo que é preciso que se tenha perdido todo senso de dignidade (de indignidade) humana para ousar apresentar-se perante um tribunal, a fim de desempenhar o papel de perito. Quem não se lembra da controvérsia edificante entre os peritos alienistas na época do processo da sogra criminosa Sra. Lefèvre, em Lille[11]? Durante a guerra vi a consideração que a justiça militar tinha para com os relatos médico-legais — quero dizer que os peritos alienistas toleravam o que faziam dos seus relatos, pois continuavam a pronunciar-se ainda após as piores condenações, que às vezes chegavam à sancionar suas raras demandas de absolvição, fundadas no reconhecimento da irresponsabilidade “total” do réu. Será que podemos pensar que a justiça civil é mais esclarecida e que os peritos estão moralmente numa posição melhor, uma vez que: 1º que o artigo 64 do Código penal admite o inocentemente do culpado somente no caso em que fosse admitido que ele “estava em estado de demência no momento da ação, ou que ele foi forçado por uma força à qual ele não pode resistir” (texto filosoficamente incompreensível); 2º que a “objetividade” científica, a qual se apresenta como auxiliar de “imparcialidade” ilusória da justiça no domínio que nos ocupa, é por si mesma uma utopia; 3º que está bem entendido — a sociedade não procurando na realidade atingir castigar o culpado, mas o antissocial — que se trata, antes de mais nada, de satisfazer a opinião pública, esta besta imunda incapaz de aceitar que a infração não seja reprimida, pois aquele que a cometeu estava doente somente durante esta infração, de modo que o sequestro médico, a rigor admitido como sanção, não seria mais defensável?


Digo que o médico que em semelhantes condições consente pronunciar-se diante dos tribunais, exceto se for para sistematicamente chegar à conclusão da irresponsabilidade completa dos acusados, é um cretino ou um canalha, o que é a mesma coisa.


Se temos em conta, por outro lado, a recente evolução da medicina mental, e isto somente do ponto de vista psicológico, constatamos que seu desenvolvimento principal diz respeito à denúncia cada vez mais abusiva daquilo que, a partir de Bleuler[12], foi denominado autismo (egocentrismo), burguesamente das mais cômodas denúncias, pois permite considerar como patológico tudo aquilo que no homem não é adaptação pura e simples às condições exteriores da vida, pois secretamente esta denúncia visa exaurir todos os casos de recusa, de insubmissão, de deserção que até aqui pareciam ou não dignos de atenção (poesia, arte, amor-paixão, ação revolucionária). Hoje são autistas os surrealistas (para o Sr. Janet — e para o Sr. Claude[13], sem dúvida). Ontem foi autista aquele jovem estudante de física examinado no Val-de-Grâce, porque ao ser incorporado a um regimento de aviação “não tardou em manifestar seu desinteresse pelo exército e havia comunicado a seus camaradas seu horror diante da guerra que, a seus olhos, não passava de um assassinato organizado”. (Este sujeito apresentava “tendências esquizóides evidentes”, nas palavras do Dr. Fribourg-Blanc[14], que publica o resultado de suas observações nos Anais de medicina legal de fevereiro de 1930). E julguemos então o seguinte: “Busca de isolamento, interiorização, desinteresse por toda atividade prática, individualismo mórbido, concepções idealistas de fraternidade universal”. Amanhã serão autistas todos aqueles que, diante do testemunho infame destes senhores, ou seja de um instante para o outro desviáveis da via na qual são colocados somente por sua consciência, ou seja confiscáveis à vontade, obstinam-se em não aclamar as palavras de ordem por trás das quais esta sociedade esconde-se para tentar fazer-nos participar sem exceção de suas iniquidades.


Temos aqui a honra de sermos os primeiros a sinalizar este perigo e erguermos contra o insuportável e contra o crescente abuso de poder por parte de pessoas nas quais estamos prontos para ver menos médicos do que carcereiros, e sobretudo os provedores de campos de trabalhos forçados e guilhotinas. Pois uma vez que são médicos, nós os tomamos como ainda menos desculpáveis que os demais por assumirem indiretamente as baixas necessidades executoras. Todos os surrealistas ou “procedistas”[15], que somos a seus olhos, não poderiam mais fortemente recomendar-lhes, mesmo se alguns dentre eles caiam por acidente sob os golpes daqueles que eles procuram arbitrariamente reduzir, a decência de calarem-se.


André BRETON.

 

[1] Filho de judeus russos radicados em Paris, Théodore Fraenkel (1896 - 1964) participa intensamente das primeiras atividades dadaístas e surrealistas em Paris. Apesar de posteriormente afastar-se do grupo de Paris, dedicando-se principalmente à medicina, assina em 1960 o Manifesto dos 121, iniciativa de Jean Schuster e outros contra a guerra da Algéria. [2] Pierre Mabille (1904 - 1952) foi médico-cirurgião, foi autor de diversos estudos aprofundados sobre imaginário e hermetismo e responsável por desenvolver o conceito de "maravilhoso" no volume O espelho do maravilhoso. [3] Maurice Heine (1884 - 1940) estudou medicina e exerceu a profissão durante seis anos para, posteriormente, dedicar-se ao jornalismo. No âmbito do movimento surrealista, é um dos principais autores a debruçar-se sobre a vida e obra do Marquês de Sade. [4] O médico e fotógrafo Jacques-André Boiffard (1902 - 1961) conhece André Breton em 1924 e, a partir de então, participa intensamente das atividades surrealistas, afastando-se do grupo de Paris em 1929. Posteriormente, colabora com a revista Documents, dirigida por Georges Batailles (da qual muitos textos foram publicados no Brasil pela editora Cultura e Barbárie), onde publica fotografias impressionantes que acompanham os textos. [5] Formado em psiquiatria e notabilizando-se como psicanalista, Jacques Lacan (1901 - 1981) foi, sem dúvida, uma das figuras mais importantes do século XX. Participou das atividades do grupo surrealista de Paris nos anos 1930, publicando seus primeiros textos na revista Minotaure. [6] Petrus Borel (Lyon, 1809 - Mostaganem, 1859) escritor francês romântico, autor de Champavert, é definido por Breton como “frenético”. [7] Tradução de Ivo Barroso (Cosac & Naify, 2007). [8] Pierre Janet (Paris, 1859 - Paris, 1947) importante médico e psicólogo francês, autor de importantes estudos sobre a histeria e automatismo. [9] Gaëtan Gatian de Clérambault (1872 - 1934) foi um famoso psiquiatra francês. [10] O então polêmico fait divers envolvendo de Michel Almazian, alfaiate acusado de assassinar o contador Rigaudin. cujo cadáver foi encontrado numa mala, em Lille. Após ser torturado pela polícia judiaciária, Almazian é inocentado ao fim do processo, exigindo então um milhão de francos do Sr. Amy, um dos peritos envolvidos na sua acusação. [11] Em 1927 Marie Lefèbvre (1884 - ?) protagonizou em 1926 o caso que ficou conhecido como "processo da sogra assassina", quando ela assassinou a tiros sua nora grávida. A partir deste caso, Marie Bonaparte publica no ano seguinte ao ocorrido um artigo na Revue française de psychanalyse associando o caso ao complexo de Jocasta. [12] Eugen Bleuler (1857 - 1939) foi importante médico e psiquiatra suíço que manteve correspondência com Sigmund Freud e dedicou-se, dentre outros, ao estudo da esquizofrenia e do autismo. [13] Henri Claude (1869 - 1945) psiquiatra e neurologista francês, criador de um laboratório de psicoterapia pioneiro na Faculdade de medicina de Paris. [14] André Fribourg-Blanc (1888 - 1963) neuropsiquiatra francês. [15] Designação utilizada pelo Docteur De Clérambault para referir-se aos surrealistas, uma espécie de “delírio de reivindicação” que a psiquiatria e os magistratura de então designaria também como “processivo” ou “querelante-processivo”.

 

Agora a Rádio aurora também pode ser ouvida no youtube (além das plataformas de áudio tradicionais). Nesse programa recebemos Caio Russo, historiador e mestrando na UNESP de Assis, que trabalha com Teoria da Imagem. A conversa passa pela destruição do legado platônico que a crítica da imagem provoca, legado este que pretendia afastar a imagem da realidade, rebaixar o sensível. O Devir-Imagem, pelo contrário, é o espelho - é o medium que se desloca entre a subjetividade e a objetividade. A Imagem, é produção deste sensível que antecede o sujeito, do reflexo que se move na superfície, enquanto o objeto permanece. Nosso convidado termina a primeira parte da conversa relacionando imagem ao fazer artístico. O que distancia a imagem banal, cotidiana, do fazer artístico? E na Literatura, o que “representa" a Imagem? Uma impossibilidade que se concretiza? Ouça!



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