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cadáver em transe

Atualizado: 2 de mar. de 2022


Arte por Rodrigo Corrêa


Quando Walter Benjamin empreendeu a análise do fascismo, esse regime, fenômeno, ou qual seja o nome que lhe possamos dar, ainda não havia chegado ao ápice de seu potencial destrutivo. Poupado de ver o que aconteceria com sua Berlim nativa, poupado de vir a conhecer o Telegrama 71 e a condena de morte de toda uma nação, Benjamin deixou-nos com a proféticas teses Sobre o Conceito de História. Não estranha que um autor como ele seja, hoje, repetidamente citado no tecer sem fim de textos que clamam pelo fim do atual estado das coisas. Que as coisas continuem como estão – diria ele – eis a verdadeira catástrofe. Como discordar?

Ciente que era do conceito de repetição de Kierkegaard, Benjamin sabia que, mais do que se repetir como farsa, a repetição da história humana era uma em que tudo se dava como inédito, operada mais pelo esquecimento e pela fetichização, do que pelo mascaramento. Nós simplesmente esquecemos o que passamos, ou então, voluntariamente, preferimos não dar ouvidos àquela estranha sensação de dejà vu. Se é verdade, nisto, que a superestrutura se modifica mais lentamente que a base econômica, o que esperar, quando a própria base econômica é a eterna repetição de si mesma?

É pouco, muito pouco, olharmos para o atual estado das coisas do ponto de vista da cultura, pois o que vivemos é, antes, qualquer coisa como sua morte, programática e friamente calculada.

Se na época de Benjamin a humanidade se preparava para sobreviver à cultura, chegamos ao ponto em que precisamos, antes de tudo, sobreviver. E sem a cultura, posto que a cultura é, ela mesma, em seus processos de longa duração que edificaram as identidades de sistemas nacionais, a morte. E que não seja contraditória a ideia de que a cultura é a morte. Pois a cultura, mais do que nunca, mostra-se como aquilo que fere, que contabiliza, que normatiza e anormaliza; como aquilo que mata.

Isto não significa que os fenômenos mais esteticamente articulados - a arte, a música, a poesia, a literatura - sejam eles também mortíferos, mas, sim, mortos, incapazes de resistir à marcha incessante do capitalismo contemporâneo que se incorpora no recipiente mais único e unicamente a nós pertencente, nossa própria vida. Eis o que Vladimir Safatle, em um texto tão belo quanto atemorizante, explicita como o Estado Suicidário. E se é verdade que há um Estado suicidário em vigor, não é menos verdade que ele se dá por haver, como La Boétie apontou há séculos, aqueles que, voluntariamente se dispõe a servir.

“Somos uma almazinha levando um cadáver”, dizia o estoico Epitecto. Traduzido em nossos dias, essa observação é levada à enésima potência por uma política que, ultrapassando sua fome de cadáveres, se foca em arruinar, também, a alma. Pois se essa observação era, para os Estoicos, o que motivava a busca pela vida feliz, ela se torna, hoje, o mote para que busquemos, com grande investimento libidinal, nossa própria ruína, com um sorriso no rosto. Afinal tudo sempre foi assim.

As receitas estoicas para a vida, a ciência da morte, o caráter passageiro da dor, tanto quanto da alegria, não eram elementos de resignação, mas, ao contrário, o motivo pelo qual uma vida justa, bela e ética deveriam ser seguidas. Não à toa foram estes, dentre os grandes da Antiguidade, os filósofos que mais legaram espantosas histórias de vida e beleza poética. Que o mundo moderno não consiga imaginar que outra história é possível, é algo que espantaria de Epiteto a Sêneca e a Marco Aurélio que entendiam, tal qual La Boétie séculos depois, que a humanidade é nascida para viver livre.

E, no entanto, como observou Safatle, chegamos, hoje, a um ponto que perpassa “a já tradicional figura do necroestado nacional”, gestor da morte. Chegamos, finalmente ao Estado Suicidário que gesta sua própria derrocada e, não só, preza por ela. Celebra-a pelo ritual de um mal cada vez mais banal que precede os próprios mecanismos de liquidação: a fala. Pois é na esfera da linguagem (e da língua), que se inicia o processo de de-subjetivação, desconstrução e aniquilamento do que quer que seja que possa ser elevado à categoria de uma verdade própria à realidade material que se vive.

É na declaração da “gripezinha”, do “resfriadinho”, que aquele servo voluntário encontra o eco de sua cultura destroçada, cindida de qualquer patrimônio possível de aliá-lo ao restante da humanidade, a não ser com aquela própria que, de modo semelhante, se voluntariza.

No Brasil, as razões históricas para a servidão voluntária são, hoje, explícitas. Um Estado criado sobre o lombo de indígenas e africanos escravizados, que celebra o fato recente da tortura e do crime institucionalizado (“era um mal necessário contra um mal maior”), não poderia ter outro destino.

Esse país nasceu sob a égide da autodestruição.

Quando foi dito, alhures, que Bolsonaro não é o lado obscuro da nação, mas seu lado mais explícito, era isso que se queria dizer. Não que isso seja privilégio tupiniquim, mas um povo que é largado, e se larga, à atomização de seu corpo como a única coisa que importa, não poderá, nunca, chegar a se ver como pessoa. E essa distinção entre a pessoa é a coisa é o elemento fundante da cultura brasileira.

Só agora, entretanto, parece que começamos a entender tal distinção como fator cultural, ainda que fundamental a uma lógica econômica. Única coisa em que o Brasil conseguiu dar um salto de anos: possuir um fundamento socioeconômico tão precário que atingiu a vanguarda da economia social fascista que é o neoliberalismo.


Texto por Gustavo Racy.

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