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"como um pint de guinness"

Atualizado: 27 de jan. de 2022


Tom Morello, guitarrista de Rage Against the Machine, compartilhou em seu Instagram uma imagem de Lynott protestando contra o racismo britânico.
 

O post de hoje inicia uma nova coluna em nosso blog: a Balanço & Fúria! Muitos de vocês devem conhecer o podcast de mesmo nome, produzido por Rodrigo Correa, um de nossos editores. Agora, a Balanço & Fúria inicia colaboração com a sobinfluencia edições com um primeiro texto, compartilhado com a coluna Harlem, sobre o rockstar irlandês Phil Lynott e sua construção identitária pela música.

Embora a coluna Harlem tenha recebido esse nome em homenagem a esse coletivo de pensadores e artistas negros ainda pouco estudados entre nós, as publicações tomaram proporções maiores, apresentando traduções de Chinua Achebe e de poetas nigerianos, se tornando uma coluna em homenagem a autores e autoras pretos.as que não foram ainda traduzidos entre nós. No texto que inicia a coluna Balanço & Fúria, nos servimos da confluência entre o swing dos pensadores da Harlem Renaissance e a negritude, e traçamos algumas reflexões sobre esse que foi o primeiro grande astro internacional do rock irlandês, e que viveu uma vida particular, desde a infância, como uma das poucas pessoas pretas da capital do país insular e que teve, por muito tempo, sua precoce morte muito mais enfatizada que sua vida potente.

 

Eireann


Por muito, teve-se que Lynott morreu vítima de overdose de heroína, causando falência múltipla dos órgãos, quando o causa mortis real foi pneumonia e septicemia. Talvez fosse interessante que o único homem negro da Irlanda, rockstar rebelde, morresse aos moldes de tantos outros rockstars, inclusive os negros de sua geração?! Mas não; Lynott não morreu de overdose. Sua mãe, Philomena esteve presente em seus momentos derradeiros: encontrou-o de roupa, submerso numa banheira cheia de água quente, pedindo ajuda à mãe, pois sentia frio. Philomena ergueu o homem alto, levando-o à cama, onde o despiu e embalou, à espera do resgate. Phil morreu alguns dias depois num hospital de Dublin, tendo recebido a extrema-unção a seu pedido. Era irlandês, sem dúvida. E era preto, também. E como era ser preto e irlandês? “Como um pint de Guinness”.


Como O’Hagan (2019) comenta em seu artigo “The Irish Rover: Phil Lynott and the Search for Identity” (“O Andarilho Irlandês: Phil Lynott e a busca por identidade”), poucos estudos, biográficos, musicais ou sócio-históricos envolvendo Lynott deram atenção à interseccionalidade entre raça, gênero, religião e nacionalidade, elementos que confluem, em se tratando de um contexto complexo como o irlandês, na personalidade de Lynott que, conforme parece ser de acordo entre os autores, foi uma em busca de uma identidade, constituída de forma conflituosa entre a poética de suas letras e a postura rebelde do rocker.

Não nos importa, aqui, resolver essa questão, ou buscar definir (ou mesmo discutir), a questão identitária. Mas é inevitável citá-la, pois aparece como algo pungente em canções como “Black Boys On the Corner” (do álbum Vagabonds of the Western World, 1973):


I’m a little black boy and I don’t know my place

I’m just a little black boy, I just threw my ace

I’m a little black boy, recognize my face[1]


Desde cedo, Lynott se deparou com a exclusão. Nascido na Inglaterra, filho de mãe irlandesa e pai Afro-guianense, que nunca conheceu, Phil foi enviado à casa dos avós e tios em Dublin, onde cresceu próximo a um tio pouquíssimos anos mais velho. Mesmo que o racismo irlandês fosse considerado, na memória dos amigos, como algo pouco estruturado, uma vez que os irlandeses não se sentiam, de fato ameaçados pela diferença racial, Blackie, “pretinho”, foi a primeira forma de tratamento público que Lynott recebeu em público, ao iniciar a vida escolar na Scoil Colm Christian Brother’s Scholl na Armagh Road, no bairro operário de Crumlin. Entre trocas de soco tendo ao lado o tio e amigos como Brian Downey, que seria baterista da Thin Lizzy, Phil cresceu fortemente influenciado pela transmissão da história e mitologia irlandesa, que eram passadas no currículo escolar como peça-chave para incutir o sentimento nacionalista irlandês como caráter rebelde ao imperialismo britânico. Nas palavras de um de seus biógrafos, Graeme Thomson, a leitura assídua dos ciclos mitológicos irlandeses fez com que Phil adotasse desde muito cedo uma postura “mais irlandesa, mais dublinense, mais Southside do que aqueles nascidos e criados ali” (2016: 21). Esse “celtismo” seria um elemento marcante da Thin Lizzy, tanto nas artes dos álbuns, criadas pelo artista Jim Fitzpatrick, quanto nas canções, em que a ilha esmeralda aparece de forma constante, como em “Eire”, do primeiro álbum, Thin Lizzy, de 1971:


In the land of Eireann

Sat the high king

Faced with the problems

The dreaded vikings

[...]

All along the north land

They fight bitterly

The land is Eireann

The land is free[2]


Na representação da Irlanda (Eire/Eireann), como uma entidade masculina guerreira, Lynott rompeu com uma tradição constante, pelo menos desde a era elizabetana, da caracterização do país a partir de um imaginário feminino, que se dava como tal para enfatizar uma inata fraqueza frequentemente aliada ao feminino. Num simbolismo singelo e, talvez, desapercebido quando fora do contexto, Lynott trabalhava, já, na reformulação da identidade que lhe havia sido imposta, assim como faria consigo mesmo ao longo de sua curta vida; ainda que no Eire, o “outro”, o estranho seja principalmente o inglês, Lynott, como um homem preto, também corria o risco de ser colocado numa relação exógena. Se bandas Horslips se usavam dos heróis nacionais para um objetivo político de maneira geral, para Lynott, esse uso, transpassado por ressignificações, adquiria um caráter molecular, de transformação política subjetiva e, a partir daí, ressignificação ampla ao esfregar, no ouvido da audiência, as mensagens transformativas das identidades estanques, algo que o fazia único e, ao mesmo tempo irlandês e preto, sem ceder ao nacionalismo ou ao nativismo (e aqui fazemos menção crítica ao fato de que, de todos os autores pesquisados, é senso comum a ideia de que o componente político da música de Lynott seja “meramente pessoal”).


As referências à Irlanda perfazem, por um lado, a luta individual de Lynott para se afirmar como irlandês para além de qualquer dúvida, devido à cor de sua pele. Por outro, não fazem dele menos afirmativo de sua negritude. “Róisín Dúbh (Black Rose): A rock Legend” (do álbum Black Rose: A Rock Legend, de 1979), é o título da canção que alude a um dos poemas mais emblemáticos da resistência irlandesa, Dark Rosaleem, de James Clarence Mangan, escrito em 1846. Canção lançada num dos momentos de alta tensão entre o IRA e a presença britânica na ilha, a canção, no entanto, não remonta a ideais intrinsicamente nacionalistas, mas, antes, a uma atenção quanto aos processos dissociativos que ele, como homem preto irlandês, observa no processo de transformação de seu próprio país. É significativo notarmos a dualidade do termo “black rose”: tanto símbolo nacional quanto significante da subjetividade de Lynott. Como lembra O’Hagan (2019: 5), o túmulo de Lynott no Cemitério de São Fintan está inscrito com os dizeres: “Go dtuga Dia suaimhneas de anam, na Roísín Dúbh” (Vá para com Deus, com paz em sua alma, Rosa Negra).


Um dia, perguntado sobre a situação na Irlanda do Norte, Lynott respondeu “Eu achei que era dureza crescer na classe operária católica da Dublin dos anos 1950, mas era ainda mais difícil ser a única criança preta” (citado por O’Hagan, 2019: 6). As respostas de Lynott, que parecem (e são) evasivas, não refletem uma postura ignorante em respeito à realidade, mas, antes, o fato de que parecia ser mais importante negociar o pertencimento e não-pertencimento consoante suas necessidades. Importava-lhe escapar das amarras das políticas de classe, raça e nação, sem, no entanto, abandoná-las. Junto à banda de Rory Gallagher, o lendário bluesman irlandês, Thin Lizzy foi uma das poucas bandas a continuar tocando na Irlanda do Norte ao longo dos anos 1970, ainda que muitas de suas canções pudessem ser interpretadas de modo nacionalista. Isso pode ser explicado, em ambos os casos, pela constituição diversa das bandas, reunindo católicos e protestantes e, no caso de Thin Lizzy, branco e preto.


Em suma, a presença da Irlanda nas letras de Lynott se fazem marcantes principalmente no início da década de 1970, antes que a banda se estabelecesse como uma das grandes do hard-rock da época e talvez seja coroada em duas canções: “Dublin” (do primeiro álbum) e “Whiskey In The Jar” (do álbum Vagabonds of the Western World, de 1973). Enquanto a primeira fala de uma cidade, capital do país, que era mencionada somente em canções folk, a segunda tradicionalíssima, se tornou o primeiro hit da banda, levando-os ao programa Top of the Pops, da BBC. Dando à banda um caráter eminentemente irlandês e, aos olhos da indústria fonográfica britânica “estrangeiro”, “Whiskey in the Jar” assombrou Lynott por anos, por alocá-lo em uma identidade sobre a qual ele mesmo tinha que ter a palavra final.


Um caso emblemático dessas negociações e imposições está quando da chegada da banda a Londres, em 1970, para gravação do primeiro álbum: à busca de alojamento, os integrantes depararam-se com inúmeros anúncios em hospedagens dizendo “No Irish, no blacks, no dogs”, isto é, “Não [aceitamos] irlandeses, negros, cachorros”. Se seus colegas se viam excluídos por serem irlandeses, Lynott se via duplamente excluído por ser irlandês e negro. Se, por um lado, as letras de Lynott evocavam o heroísmo irlandês, por outro, elas paralelamente faziam referência à longa história diaspórica da nação, o que pode ser refletido à luz da diáspora africana da qual ele mesmo fazia parte. Assim, por exemplo, em “Fools Gold” (do álbum Johnny the Fox, de 1976), se inicia com Lynott contando a história da Grande Fome do século XIX, que levou à morte e ao exílio milhares de irlandeses. Uma particularidade, que sem dúvida é notada pelos falantes nativos de inglês, reforça o significado político da canção: Lynott marca de maneira clara o sotaque irlandês, algo que é definitivamente um signo da identidade irlandesa.


[continua...]


 

[1] "Sou um menino preto e não sei qual é meu lugar/Sou um menino preto, e dei minha cartada/Sou um menino preto, lembre-se de meu rosto" [2] "Na terra de Eireann/Sentava-se o alto rei/Diante de problemas/os temidos viquingues [...] Ao longo das terras do norte/lutaram amargamente/a terra é Eireann/a terra é livre" – na versão original da canção, as duas últimas frases eram cantadas em gaélico, o que foi alterado pela gravadora Decca, por receio de que soasse nacionalista.

 

Referências

CLAYTON-LEA, T. “The Philip Lynott Interview (1983).” Hot Press Magazine. 28 de fevereiro de 2011. Diponível em: https://www.hotpress.com/music/the-philip-lynott-interview-431546 - acessado em 16 de agosto de 2021.

CULLEN, M. 2012. Vagabonds of the Western World(s): Continuities, Tensions and the Development of Irish Rock Music, 1968-1978. Tese de Doutorado, Universidade de Limerick, Irlanda. Disponível em: https://dspace.mic.ul.ie/handle/10395/1530 - acessado em 16 de agosto de 2021.

O’HAGAN, J. 2019. “The Irish Rover: Phil Lynott and the Search for Identity.” Popular Music and Society, pp. 1-23.

THOMSON, G. 2016. Cowboy Song: The Authorised Biography of Philip Lynott. Londres: Constable.


Discografia

Phil Lynott. Solo in Soho. Vertigo, 1980. LP. ________. The Philip Lynott Album. Vertigo, 1982. LP.

Thin Lizzy. Thin Lizzy. Decca, 1971. LP.

________. Vagabonds of the Western World. Decca, 1973. LP.

________. Nightlife. Vertigo, 1974. LP.

________. Fighting. Vertigo, 1975. LP.

________. Johnny the Fox. Vertigo, 1976. LP.

________. Black Rose: A Rock Legend. Vertigo, 1979. LP.

________. Vagabonds Kings Warriors Angels. Universal, 2011. CD.

 

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