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sranang, nossa pátria


Cornelis Gerhard Anton De Kom, ca. 1924
 

Iniciando a Coluna Harlem em 2022, a tradução inédita do primeiro capítulo da obra militante e decolonial de Anton De Kom, Wij Slaven van Suriname, (Nós, escravos do Suriname).

Tendo viajado pelos EUA e pela Nigéria, a Coluna Harlem traz a discussão à nossa América do Sul, a um país vizinho, porém pouco conhecido, o Suriname. Colônia holandesa, comecei a me interessar pelo país ao conhecer surinameses na Antuérpia, onde morei. O fato de que esse era um território próximo, ainda que longínquo, relativamente à minha São Paulo natal, me parecia um desafio e um convite à exploração. Graças a um convívio com uma parcela da população surinamesa (principalmente um restaurante a poucos metros de casa), e a amigos envolvidos nas movimentações e manifestações pela responsabilização das autoridades holandesas pelos crimes coloniais, pude conhecer e acessar um pouco melhor o país. A escolha por Anton De Kom, assim, não se dá por acaso. Nascido em Paramaribo em 1898, filho de pai escravizado, De Kom foi um grande militante e ativista decolonialista, tendo trabalhado no Haiti de 1920 a 1921, indo depois para a Holanda, onde serviu por um ano entre os hussardos, posteriormente se transferindo a Haia, trabalhando em diferentes organizações de esquerda.

Em 1932 De Kom retornou ao Suriname, mas, por conta de suas atividades políticas, foi deportado de sua terra, em direção à Holanda, onde mais uma vez se engaja nos movimentos socialistas e comunistas. Em 1934, escreve Nós, escravos do Suriname, que é publicado de forma abreviada pela censura. Com a invasão dos Países Baixos pela Alemanha nazista, De Kom se juntou à resistência, sendo capturado pela Gestapo em 1944, deportado para o campo de Neuengamme, em Sandbostel, onde morreria de tuberculose em 24 de abril de 1945.


Leia "Sranang, nossa pátria", texto de apresentação de Nós, escravos do Suriname, por Anton De Kom.


Gustavo Racy, fevereiro de 2022

 

Sranang, nossa pátria

Anton De Kom


De 2 a 6 graus ao sul, longitude 54 a 58 graus a oeste, entre azul do Oceano Atlântico e as intransponíveis montanhas Tumucumaque, formando o divisor de águas com a bacia Amazônica, capturada entre o Corentyne e o Maroni, nos separando da Guiana Britânica e Francesa, ricas em florestas imensas, onde crescem o ipê, o mata-matá, a mafumeira e a preciosa vouacapoua, rica em vastos rios, onde garças, bem-te-vis e flamingos encontram seus ninhos, ricos em tesouros naturais, em ouro e bauxita, em borracha, açúcar, banana e café... pobre de gente. Mais pobre ainda em humanidade.


Sranang – nossa pátria.

Suriname, como a chamam os holandeses.


A décima segunda província mais rica, não... a província mais pobre da Holanda.

Entre a costa e as montanhas, nossa mãe, Sranang, dormiu por mil e outros mil anos. Nada mudou nas densas florestas de seu interior desconhecido.

As selvas do planalto parecem congeladas em um silêncio milenar, despertado apenas à noite, com o zumbido de milhares de insetos, como uma sinfonia desconhecida. A paisagem nas savanas e ao longo dos rios é mais romântica. Uma trepadeira sinuosa pendendo das árvores como cortinas bloqueia o caminho, orquídeas selvagens florescem; é aqui que vivem as mamoranas ariscas, os macacos-prego balançam nos galhos, papagaios soltam seus gritos estridentes, a onça espreita, um tatu procura por formigas com sua língua pontiaguda.

Intocadas e não cultivadas, as florestas escuras de Mãe Sranang esperaram por milhares de anos. Bestas estranhas, cujos nomes mal se conhecem no Oeste, habitam aqui: tamanduás e porcos-espinhos arborícolas, juruviaras, piopios, socós e estrelas-do-norte; saripocas sentam-se no topo das palmeiras, e enxames de abelhas, morfos azuis brilhantes, pererecas amarelas e alaranjadas muitas vezes se erguem sob a copa das árvores.


Pessoas?

Raramente estão aqui para aproveitar tamanha beleza.


Nas terras baixas vivem os Warãs, Arawaks e Caraíbas, tornados débeis e moribundos, descendentes impotentes da população original, deslocada pelos brancos dos melhores lugares. Na região alta vivem os Trios e Ojanas, com seus trabalhos artísticos com contas e vime, suas joias de dança finamente trabalhadas, que expressam um senso inato de beleza. Cerca de 2450 indígenas e 17300 quilombolas, os negros do mato, doas quais falaremos mais adiante.

No máximo 20000 pessoas habitam o interior de Sranang, uma área quase cinco vezes maior que Holanda. De resto, as matas estão povoadas apenas por cotias e preguiças, diabos-do-mato, antas e porcos d’água, bugios, tamanduás e abomas.

A história de mãe Sranang passou; três séculos de colonização holandesa deixaram seu interior intocado, motores não cortas as corredeiras de seus rios, seus solos férteis não são semeados, os preciosos tesouros das florestas não foram explorados. Vivem em abjeta pobreza, na escassa ignorância, as tribos selvagens perecem em meio a uma natureza cujo excesso é inútil.

Raramente um branco se lança nesta terra inóspita, cujas sendas são conhecidas somente pelos indígenas e negros do mato. Ao longo das margens dos rios, por vezes, um libéré francês, um brigão britânico ou um pesquisador holandês se lançam terra adentro. Fincam suas facas na casca branca da massaranduba, fazendo o precioso suco leitoso fluir. Mas o libéré retorna ao litoral, o brigão bebe até morrer em rodadas de whisky, em sua fogueira solitária, o holandês deixa-se remar rio abaixo pelos quilombolas numa piroga; a selva permanece, crescem as feridas das seringueiras, o acampamento deserto se cobre de plantas rasteiras.

Não há vestígios da influência, da energia, da civilização de Holanda no interior de Sranang; a história de Holanda não está escrita em nenhuma estrada, nenhuma ponte, nenhuma casa. Os brancos conheceram apenas o medo da selva, onde os escravizados fugidos se refugiaram.

Há apenas uma linha ferroviária lamentavelmente negligenciada, que não leva a lugar nenhum e nunca foi concluída, testemunha um breve sonho de ouro enlouquecido.

As amplas planícies das savanas, as florestas e as altas montanhas de granito da Mãe Sranang estão adormecidas há cem séculos.


Nenhuma história foi escrita para elas, ainda.


Só na estreita faixa ao longo da costa marítima, aqui e ali na foz dos grandes rios, nos solos aluviais mais férteis, sopra o vermelho, o branco e o azul da tricolor holandesa.


Vermelho –

“Olha, mãe” – diz o espantado garotinho branco do maravilhoso livro de Magdeleine Paz [2] “Irmão Negro” – “Você vê que esses pretos também têm sangue vermelho?”.


Branco –

A cor dos tratados de paz de Crommelin[1].


E azul?

A cor de nosso céu tropical, para onde olhamos através das folhas escuras de nossas árvores, lendo no brilho cintilante das estrelas a promessa de uma nova vida?

Não. Esse azul é aquele profundo, do Oceano Atlântico, sobre o qual os traficantes carregavam seus despojos africanos, suas mercadorias vivas, nossos pais e avós, para sua nova pátria: Sranang.

 

[1] O Tratado de Paz de 10 de outubro de 1760 foi uma conquista de quilombolas, assinados com a Sociedade do Suriname. O Tratado deu aos Ndyuka liberdade e autonomia territorial. Uma das condições do tratado era que os Ndyuka trouxessem aos holandeses escravizados fugidos de outros grupos. Graças ao tratado, entretanto, diversos grupos quilombolas se serviram do exemplo para conquistar autonomia e hoje, a data da assinatura é um feriado nacional conhecido como Dias dos Quilombolas (Nota. do Tradutor).


[2] Magdeleine Legendre, depois Paz (Étampes, de julho de 1889 - Paris, 12 de setembro de 1973), foi uma jornalista, escritora e militante francesa. Publicou sua primeira reportagem "C'est la lutte finale!" em 1923, após dois anos de viagem pela Rússia Soviética. Apoiadora de Trotski, foi afastada do PC Francês em 1927, engajando-se na luta pela liberdade de Victor Serge, cuja defesa sofreu tentativa de boicote por parte dos escritores soviéticos presentes no Congresso Internacional de Escritores pela Defesa da Cultura, em 1935, presidida por André Gide. Ali, obteve apoio de Charles Plisnier, Gaetän Salvemini e do anarquista Henry Poulaille, que cunhou a noção de "Literatura proletária". O texto ao qual De Kom se refere é "Frère Noir", de 1930, traduzido na Holanda como "Omdat ik zwarte ben", ou seja, "Porque eu sou negro".

 

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