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"como um pint de guinness" - parte 2

Atualizado: 27 de jan. de 2022



 

Dando continuidade à nova coluna em nosso blog, a Balanço & Fúria!, a segunda parte de "como um pint de guinness", texto dedicado ao compositor irlandês Phil Lynott.

Muitos de vocês devem conhecer o podcast de mesmo nome, produzido por Rodrigo Correa, um de nossos editores. Agora, a Balanço & Fúria inicia colaboração com a sobinfluencia edições com um primeiro texto, compartilhado com a coluna Harlem.

Embora a coluna Harlem tenha recebido esse nome em homenagem a esse coletivo de pensadores e artistas negros ainda pouco estudados entre nós, as publicações tomaram proporções maiores, apresentando traduções de Chinua Achebe e de poetas nigerianos, se tornando uma coluna em homenagem a autores e autoras pretos.as que não foram ainda traduzidos entre nós. No texto que inicia a coluna Balanço & Fúria, nos servimos da confluência entre o swing dos pensadores da Harlem Renaissance e a negritude, e traçamos algumas reflexões sobre esse que foi o primeiro grande astro internacional do rock irlandês, e que viveu uma vida particular, desde a infância, como uma das poucas pessoas pretas da capital do país insular e que teve, por muito tempo, sua precoce morte muito mais enfatizada que sua vida potente.

 

Vagabond of the Western World


Uma outra marca da identidade irlandesa na música de Lynott é a presença do imaginário católico, determinante em sua criação nos anos 1950. Em “She Knows” (do álbum Nightlife, de 1974), por exemplo, vê-se um forte paralelismo entre a mulher em questão (aquela que sabe, conforme o título), e a Virgem Maria. A evocação de “Mother Mary” é um dos aspectos recorrentes da expressão musical irlandesa moderna, padroeira da vida doméstica, o que evoca, à luz da biografia de Lynott, sua relação com sua mãe, Philomena, e a necessidade de sua presença em tempos de necessidade. Philomena, lembremos, havia enviado o filho para viver com os avós e tios, enquanto ela mesma mantinha-se em Manchester e, embora mãe e filho tivessem um relacionamento, segundo Philomena essa relação era mais entre amigos do que entre mãe e filho.


Voltando à sua identidade irlandês e negra, entretanto, Lynott sempre teve claro que sua maior inspiração era Jimi Hendrix. Ele quem mostrara que era possível um “cara preto estar à frente de uma banda e ser completamente respeitado pelo que fazia” (citado em O’Hagan, 2019: 9). Na canção “Song for Jimmy”, lançada pela primeira vez em 2001, no box Vagabonds, Kings, Warriors, Angels, Lynott declara-se como “irmão” do guitarrista, “stone free”, como ele, isto é, livre das amarras da escravidão. O que começa a se desenhar, é uma relação interseccional entre sua negritude e a Irlanda, que são vistas como identidade subalternas relativamente à cultura dominante. No caso de Lynott, a discriminação e o racismo eram duplos, como explicita o caso dos anúncios de hospedagem em Londres, citado anteriormente.


E, no entanto, Lynott havia sido pouco exposto à cultura negra, seja em que forma fosse. A Irlanda dos anos 1950, isolada dos centros metropolitanos, não recebia as inovações vindas dos EUA ou da vizinha Inglaterra. Lynott mantinha contato com sua cultura negra única e exclusivamente através da música e essa relação emerge em sua poética de forma extremamente pessoal, expressando muito mais uma conexão e uma busca do que propriamente um pertencimento. “Com conhecimento pessoal da cultura negra limitado, Lynott se viu obrigado a adotar uma imagem do povo preto que era especificamente intercultural e transnacional” (O’Hagan, 2019: 10). Isto colocava Lynott numa posição intermediária enquanto negro, como fica claro na canção “Half-Caste” (do álbum Fighting, de 1975), em que um menino mestiço não consegue levar adiante sua relação com uma moça negra por ser claro demais, ao mesmo tempo em que não satisfaz as meninas brancas por ser negro demais. Essa canção não é autobiográfica, mas mostra de que modo o autor via os desafios enfrentados para alguém como ele.


É fora da banda, em seus dois álbuns solo (Solo in Soho, de 1980, e The Philip Lynott Album, de 1982), que Lynott começa a explorar sua identidade de maneira mais aprofundada, dando preferência a ritmos mais marcadamente pretos, como o blues e o soul. Sua primeira turnê contou com uma banda inteiramente negra. “Ode to a Black Man” (de Solo in Soho), cita inúmeras personalidades pretas e enfatiza que “há pessoas na cidade que nunca poderiam entender um homem preto”. E talvez ele mesmo, como um dos poucos pretos irlandeses, lutasse para entender a si mesmo, na cidade que tanto amava. Pois não só Lynott era negro, ele era, também, um filho ilegítimo. Lynott conviveu toda sua vida com esse tipo de status, sem conhecer o próprio pai, a quem se referia como um “grande bastardo preto” (a big black bastard), numa referência pícara em inglês ao “black and tan” (meio pint de Guinness misturado a meio de pale ale), também uma expressão para denotar a força paramilitar de ocupação britânica na Irlanda. Sem qualquer referência sobre seu pai, Lynott gradualmente “começou a formar sua própria versão romantizada de si como um dançarino brasileiro ou caribenho com jeito para mulheres, ou como um cigano misterioso vindo de longe” (O’Hagan, 2019: 11). Lembremos que os roma, presentes por toda a Irlanda, são ainda outro povo subalterno e excluído, vítima de perseguição racista e cultural, e evoca, além disso, o álbum Band of Gypsies, de Hendrix (com Billy Cox no baixo, que integrara a banda Gypsy Sun and Rainbows, de Hendrix, que se apresentou em Woodstock), cuja ideia de nomadismo também pode ter sido fundamental para a negociação identitária de Hendrix como um afro-estadunidense. Essa natureza andarilha de Lynott, como a de alguém sempre no limiar, aparece de forma explícita no título do álbum Vagabonds of the Western World, isto é, “vagabundos do mundo ocidental”, em que “vagabundo” significa andarilho, alguém em constante movimento, sem lugar fixo. Seis meses antes de morrer, Lynott confessara a um amigo que sua paixão por Dublin, a quem endereçara inúmeras confidências de paixão, morrera.


Em 1974, um ano após o lançamento de Vagabonds of the Western World, Lynott conheceu o pai, Cecil Parris, que vendia chapéus em Londres. Pediu a Scott Gorham, o guitarrista da banda, que não o deixasse só com o pai. O encontro durou cerca de 10 minutos e Philip nunca mais mencionou o progenitor. É evidente, entretanto, que conhecer seu pai afetou-o profundamente. Sua composição mudou consideravelmente depois do episódio, voltando-se cada vez mais para um fascínio com o Oeste dos EUA. Muito provavelmente por conta da indústria cultural hegemônica, o fascínio irlandês com o Velho Oeste foi grande, e certos pesquisadores afirmam que esse fascínio pode ter se dado porque as dicotomias do Oeste reafirmavam os sistemas que as crianças irlandesas encontravam na escola: “as narrativas católica/protestante, o heroísmo violento, o individualismo desafiador e a hegemonia do sacrifício de sangue nacionalista” (Cullen, 2018: 319; apud O’Hagan, 2019: 12). Ironicamente, porém, o heroísmo era outorgado aos cowboys, não aos nativos. Esse fascínio deu a Lynott a compreensão do conceito gaélico de Tír na nÓg (Terra da juventude), uma terra misteriosa e mística, livre de perigos; mais ainda, a visão idealizada do cowboy como alguém descolado da unidade social, lhe passava a possiblidade de se proteger da identidade órfã e de uma espécie de fatalismo trágico. Isso tudo lhe dissociava de uma identidade pautada num coletivo bem definido, como o nacional irlandês, e reforçava sua figura cheia de bravata, como o rocker que era. Para O ‘Hagan, assim como para Thomson, as figuras do órfão e do cowboy eram ambas fontes que protegiam Lynott de sua própria fragilidade, o que pode explicar sua conduta em se jogar completamente no estilo de vida rocker.


Se as interpretações até aqui parecem um tanto psicologizantes, é preciso dizer que isso se dá por ser difícil dissociar as letras de Lynott de sua própria trajetória, uma vez que refletem uma visão que ele mesmo tinha de si, ou que pretendia construir para os outros. Ademais, é difícil uma análise sociológica profundamente materialista para um texto como o que aqui se pretende. Entretanto, uma declaração de Lynott em entrevista a Tim Clayton-Lea em 1983 deixa claro não só como ele era ciente das condições concretas de sua vida, quanto nos evoca tais condições, que não são distantes da realidade que vivemos hoje “Sou preto, sou irlandês e sou um bastardo. Se eu não der certo como cantor, não darei certo em nada” (citado em O’Hagan, 2019: 13).


[continua]

 

Referências

CLAYTON-LEA, T. “The Philip Lynott Interview (1983).” Hot Press Magazine. 28 de fevereiro de 2011. Diponível em: https://www.hotpress.com/music/the-philip-lynott-interview-431546 - acessado em 16 de agosto de 2021.

CULLEN, M. 2012. Vagabonds of the Western World(s): Continuities, Tensions and the Development of Irish Rock Music, 1968-1978. Tese de Doutorado, Universidade de Limerick, Irlanda. Disponível em: https://dspace.mic.ul.ie/handle/10395/1530 - acessado em 16 de agosto de 2021.

O’HAGAN, J. 2019. “The Irish Rover: Phil Lynott and the Search for Identity.” Popular Music and Society, pp. 1-23.

THOMSON, G. 2016. Cowboy Song: The Authorised Biography of Philip Lynott. Londres: Constable.


Discografia

Phil Lynott. Solo in Soho. Vertigo, 1980. LP. ________. The Philip Lynott Album. Vertigo, 1982. LP.

Thin Lizzy. Thin Lizzy. Decca, 1971. LP.

________. Vagabonds of the Western World. Decca, 1973. LP.

________. Nightlife. Vertigo, 1974. LP.

________. Fighting. Vertigo, 1975. LP.

________. Johnny the Fox. Vertigo, 1976. LP.

________. Black Rose: A Rock Legend. Vertigo, 1979. LP.

________. Vagabonds Kings Warriors Angels. Universal, 2011. CD.

 

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