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dezoito teses sobre o marxismo e a libertação animal

Atualizado: 28 de jul. de 2021

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último crime: A intenção dessa coluna é trazer material crítico, preferencialmente inédito em nossa língua, para contribuir com as discussões que permeiam seres não humanos e humanos em sua luta pelo fim da exploração do trabalho, sua busca por autonomia e a superação do modo de produção em que [sobre]vivemos. Os textos que publicados neste espaço examinam as diferentes relações estabelecidas, na história e no momento atual, entre animais humanos e os animais não-humanos, dentro da perspectiva dialética, materialista histórica e anticapitalista.

 

O presente ensaio, Marxismus und Tierbefreiung, foi originalmente publicado no dia primeiro de janeiro de 2017 e depois traduzido para o inglês para a publicação na revista socialista Monthly Review. A autoria do ensaio é do coletivo alemão Bündnis Marxismus und Tierbefreiung/Alliance for Marxism and Animal Liberation (Aliança pelo marxismo e Libertação Animal, em tradução livre), um grupo ativo tanto no movimento comunista quanto no movimento pela libertação animal.


Tradução de Alex Peguinelli

 

Dezoito Teses Sobre o Marxismo e a Libertação Animal

Bündnis Marxismus und Tierbefreiung


Nem a esquerda marxista defendeu a libertação dos animais até o presente momento, nem o movimento pelos direitos animais ou o movimento de libertação animal assumiu o compromisso com a construção de uma sociedade socialista. Argumentamos que marxistas e aqueles que lutam pelo fim da exploração animal possuem o mesmo inimigo - a burguesia [1]. Nossas dezoito teses justificam por qual razão esse encontro deve ocorrer para o desenvolvimento de um projeto verdadeiramente revolucionário.


O marxismo e a libertação animal são duas questões que, ao primeiro momento, não parecem ter muito em comum. Os marxistas não ficaram conhecidos por seu amor aos animais, nem os que amam os animais ficaram conhecidos por reivindicar a libertação da classe trabalhadora e a construção do socialismo.

Muito pelo contrário: o marxismo clássico tem pouco apelo aos anarquistas autonomistas que predominam na causa animal. Para alguns desses grupos, o marxismo é uma teoria excessivamente simplificada e, enquanto ideologia autoritária, se tornou obsoleta com o enterro do socialismo real. Embora a crítica ao capitalismo e o vocabulário do movimento dos trabalhadores (“camarada”, “classe”) esteja ganhando capilaridade entre a esquerda radical, ainda assim não é possível saber o que pensar em relação aos marxistas tradicionais. Esses marxistas são vistos como pessoas que, notoriamente, odeiam os animais, a quem importa apenas discutir sobre economia e, muitas vezes, indistinguíveis de pequenos burgueses que não querem abrir mão de suas salsichas grelhadas.

Por sua vez, os marxistas não tem os militantes da causa animal em uma estimada consideração: esses são frequentemente vistos como estranhos devotos e burgueses moralistas que se empenham em causas insignificantes ao invés de concentrarem seus esforços em questões fundamentais. Espera-se que esses militantes participem de ações e alianças no âmbito da luta de classes, mas que deixem esse “capricho pelos animais” de fora delas. Camaradas em demasia começam a suar frio ao ponderar viver em uma sociedade na qual tanto humanos, quanto animais, são da mesma forma livres da exploração e da opressão, uma vez que significaria abrir mão de seu consumo de carne e queijo. De qualquer maneira, Friedrich Engels já havia zombado dos Herren Vegetarianer [2] que, segundo ele, subestimavam a importância do consumo da carne na história da civilização humana e eram, na melhor das hipóteses, socialistas utópicos.

Contudo, rejeitamos essa posição e acreditamos que a análise materialista histórica e a crítica da sociedade desenvolvida por Karl Marx e Friedrich Engels, sua política correspondente e o apelo pela libertação animal de seu sofrimento socialmente produzido relacionam-se mutuamente. Por um lado, as demandas pela libertação animal são, de fato, moralistas, se não analisarmos as condições históricas específicas em que a exploração animal está ocorrendo e quais mudanças sociais são necessárias para que ela chegue ao fim. De outro lado, entretanto, toda crítica marxista da sociedade permanece incompleta se deixa de considerar o fato de que, a fim de obter lucro, a classe dominante não explorou apenas as classes oprimidas ao longo da história da luta de classes, mas também - e sempre - os animais (e a natureza).

A exploração dos trabalhadores assalariados, por um lado, e a exploração de animais, por outro, podem ter diferenças qualitativas na maneira que se desenvolveram historicamente e sua relação com os meios de produção permanece diferente até os dias atuais. Apesar de todas essas diferenças, entretanto, a classe trabalhadora e os animais possuem uma história que os aproxima, seu enfrentamento e antagonismo em relação à classe dominante, como seres que sofreram, foram humilhados, oprimidos e abandonados. Os primeiros como sujeitos e os segundos como objetos. Consequentemente, argumentamos: a ideia da libertação animal permanece inconsistente quando repudia uma crítica materialista histórica da sociedade. Ao mesmo tempo, o marxismo permanece igualmente inconsistente quando deixa de reconhecer que a libertação dos animais deve ser parte integrante da teoria e política marxista atual. Em primeiro lugar o momento presente de desenvolvimento das forças produtivas não apenas torna essa libertação possível, mas também necessária. Em segundo lugar, toda pessoa que deseja criar um mundo sem exploração, dominação e sofrimento produzidos socialmente - que são objetivamente evitáveis - deve reconhecer o sofrimento animal e lutar arduamente por sua abolição. Abordagens isoladas para unir o marxismo à libertação animal já ocorreram na história da esquerda e do movimento operário, mas isso não foi ainda amplamente aceito até hoje. As teses a seguir buscam explicar porque os marxistas e os que lutam pela libertação animal não deveriam ser compelidos a um casamento forçado, mas sim unirem-se em um vínculo para a vida.


Por que o antiespecismo precisa ser marxista

I.

A sociedade capitalista moderna reconhece os animais apenas como portadores materiais de valor e como meios de produção do capital, como meios de trabalho e sujeitos de trabalho fornecidos gratuitamente pela natureza - desde que nenhum trabalho humano seja usado para controlá-los.

Os executivos da indústria pecuária, que é o coração do complexo de exploração animal, lucram bilhões com a matança de seres vivos. Somente na Alemanha são atingidos recordes de faturamento acima de 40 bilhões de Euros por ano com o abate de mais de 60 milhões de porcos, 3,5 milhões de vacas, 700 milhões de galinhas, patos e gansos. Mesmo na Suíça, o volume das vendas com esses produtos chega ao patamar de 10 bilhões de francos suíços. Em circos e zoológicos, animais “exóticos” são mantidos em condições atrozes para realizar espetáculos excruciantes e estupidificantes. Durante caçadas, animais são mortos para o divertimento de caçadores ricos. Nos experimentos, servem de objeto de pesquisa e trabalho, enquanto a indústria pet procria animais em excesso e os vende como se fossem brinquedos. Essas condições são horríveis e brutais e qualquer pessoa que as testemunhe, e que não tenha uma relação completamente alienada com o ambiente em que vive, experimenta ao menos algum tipo de empatia com os seres sencientes ao vê-los nessa condição de sofrimento.

Consequentemente, o compromisso em acabar com a exploração animal frequentemente tem início em decorrência das impressões de horror com a matança de animais em escala massiva e sua consequente degradação ideológica. Ao mesmo tempo, esse compromisso pode ter início com um impulso de solidariedade na busca por uma explicação para a exploração e uma maneira de aboli-la. A empatia com o sofrimento dos animais leva a uma reflexão teórica sobre a relação entre ambos e desencadeia um impulso para a atividade na luta pela libertação animal. No entanto, como esse impulso manifesta-se na prática? Vejamos a teoria e a prática do movimento pela libertação animal atualmente.

II.

Em poucas palavras e falando de maneira simplista, o movimento contemporâneo por direitos animais e por libertação animal na Alemanha é dominado por uma corrente político teórica que o filósofo marxista, Marco Maurizi, descreve como antiespecismo metafísico, composto por três grandes escolas do pensamento:

a) A filosofia moral burguesa na tradição de Peter Singer, Richard Ryder, Tom Regan, Hilal Sezgin, entre outras pessoas.

b) A crítica jurídica liberal, que por muito tempo teve como figura predominante Gary Francione. Recentemente, autores como Will Kymlicka e Sue Donaldson juntaram-se a ele. c) O antiautoritarismo social liberal pós-estruturalista, baseado no pensamento de Carol J. Adams, Donna Haraway, Birgit Mütherich, Jacques Derrida, etc.

A filosofia moral burguesa antiespecista é predominante em número de organizações e iniciativas, um exemplo é a PETA, que levanta demandas políticas em favor dos direitos animais e bem-estar animal apelando aos consumidores, instituições estatais e privadas por meio de petições, lobbying, campanhas, oferecendo consultoria especializada, assim por diante.

A crítica jurídica liberal forma uma ponte teórica e política entre filósofos morais e antiautoritários. Dependendo de sua interpretação e afinidade com qualquer uma das duas teorias políticas, eles podem se inclinar para uma ou para outra escola. O que explica também, até certo ponto, o amplo acordo no movimento de bem-estar animal, direitos animais e libertação animal, pelo qual a concessão específica de direitos aos animais é, de fato, um objetivo a ser alcançado.

O antiautoritarismo social liberal pós-estruturalista antiespecista aparece politicamente na forma organizativa da esquerda não parlamentar, inspirada no autonomismo e no anarquismo respectivamente. O autonomismo antiespecista representa o cerne da vertente abolicionista do movimento pelos direitos animais e pela libertação animal.

III.


A filosofia moral burguesa antiespecista lida com o questionamento de por que o sofrimento animal é considerado diferente do sofrimento dos humanos, mais especificamente: por qual motivo tais diferenças fornecem bases morais para a ação.


Por consequência, veterinários atualmente aceitam justificativas para matar e utilizar animais - tais como a de que os animais não possuem razão e não têm habilidades cognitivas, ou que o sofrimento animal é diferente na maneira que se manifesta e menos grave do que o sofrimento humano, etc. De qualquer maneira, o argumento utilizado para matar e utilizar animais apresenta contradições inerentes, uma vez que não são todos os animais que deixam de apresentar habilidades cognitivas e, de maneira inversa, há seres humanos igualmente incapazes de demonstrar essas habilidades (seja por conta de sua idade, etc). Além disso, mesmo entre o coletivo humano, as formas de sofrimento são tão distintas que seria difícil falar de um sofrimento humano universal em contraposição a um sofrimento animal universal. Consequentemente, por conta de tais inconsistências, defensores da filosofia moral antiespecista sustentam que não há justificativas para fazer distinções moralmente significativas entre o sofrimento animal e humano. Assim, levantam o questionamento das motivações que levam à tais distinções serem feitas na prática. A resposta dessa filosofia aos questionamentos levantados é: por que a sociedade humana é permeada pelo especismo, ou seja, a hipótese ideológica de que a espécie humana é superior à qualquer outra. O argumento é que, assim como o racismo ou o sexismo, o especismo estabelece limites normativos que não podem ser justificados e, portanto, carecem de qualquer fundamento real. De acordo com Singer, especismo é definido como “preconceito ou atitude enviesada em favor dos interesses de membros da própria espécie, contra os interesses de outras espécies”, é a razão da “discriminação” dos humanos contra os animais.


O principal mérito dessa filosofia moral é o de colocar a ideologia especista em confronto com suas próprias reivindicações insustentáveis. No entanto, a filosofia moral burguesa antiespecista tem inúmeros problemas em si mesma: estritamente falando, não explica por qual motivo os animais são explorados, ou por que estão sendo feitos de objetos para serem utilizados economicamente. Em vez disso, explica apenas como o diferente tratamento entre seres humanos e animais é legitimado e protegido dentro das circunstâncias sociais. Essa é uma importante distinção. A filosofia moral burguesa, portanto, pode nos dizer de que forma de pensamento justifica que humanos não sejam mortos em abatedouros, diferentemente dos animais. No entanto, não pode contribuir em nada de substancial acerca da origem e função da exploração animal ou, de maneira mais específica, é incapaz de justificar a existência do abatedouro como uma indústria e para qual propósito animais são mortos nele. Em vez disso, reduz todas essas questões ao abstracionismo, atos individuais, visões e práticas tratadas de maneira totalmente isoladas do funcionamento da sociedade capitalista. Além disso, essa filosofia moral é a-histórica: seu objeto de interesse é a ideologia especista da sociedade burguesa nos limites do aqui e agora. Essa filosofia está interessada na história da relação entre humanos e animais apenas em termos da história da ideologia, se é que chega a tanto, não podendo nos dizer nada acerca da origem social e da gênese da ideologia especista.


IV.


A teoria liberal dos direitos animais tenta, primeiramente, explicar por qual motivo os animais, em contraste com os seres humanos, não possuem liberdades civis e por que são tratados como objetos e não como sujeitos de direito. Sua resposta é essencialmente tautológica: porque os animais são definidos por lei como propriedade. Seguindo essa linha argumentativa, uma vez que os animais são normalmente determinados como propriedade humana, todo conflito de interesses sério que ocorrer entre as espécies leva à derrota dos não-humanos. O status dos animais como propriedade prepara o terreno para a exploração institucionalizada dos animais. Dependendo da respectiva leitura político-científica, a questão que se coloca é a ausência de direitos básicos, tanto positivos, quanto negativos, análogos aos direitos concedidos aos humanos. Defensores dessa corrente teórica concluem que a lei atual é baseada em um preconceito moral que privilegia os seres humanos sobre os animais, de forma semelhante os brancos instituíram leis favorecendo a si mesmos em detrimento de pessoas negras escravizadas. A teoria jurídica exclui animais de serem sujeitos de direito pela própria definição.


A crítica ao fato judicial de que animais são legalmente considerados objetos e propriedade de pessoas físicas ou jurídicas não perdeu sua validade. No entanto, as normas jurídicas não se evidenciam por si mesmas e a teoria do direito não estabeleceu a exploração de animais. Os animais não são propriedade privada apenas porque a lei diz ou porque os juristas presumem que sejam. A propriedade privada (dos meios de produção) é constitucional uma vez que a lei representa a expressão das relações da burguesia de produção e troca. No decorrer da luta de classes, a classe dominante degradou a natureza, em sentido amplo, e os animais, de maneira específica, e os transformou meramente em um meio de produção à sua disposição, garantindo essa hierarquia juridicamente e a estipulando como universalmente aplicável. Por este motivo, é lícito ao ser humano tratar animais como objetos. As normas legais permitem a exploração de animais uma vez que são normas instituídas pela burguesia [proprietários dos meios de produção], não apenas por serem especistas.


Há casos, no entanto, em que os teóricos dos direitos animais também contribuíram para enfocar a perspectiva analítica, apesar de suas mistificações legalistas e antiespecistas, imanentes à seu posicionamento. Em particular, uma das conquistas irrevogáveis da corrente da crítica jurídica antiespecista é que ela destaca como o status quo jurídico permite, ao mesmo tempo, uma exploração mais eficiente dos animais e promove a conformidade política necessária da sociedade civil - em outros termos, a lei de bem-estar animal existente, portanto, garante, ao invés de impedir, a exploração e opressão dos animais.


Ainda assim, pesa mais contra a teoria dos direitos animais, sua subserviência às ilusões burguesas acerca do Estado e da lei. Os teóricos dos direitos animais cortam a conexão entre a economia capitalista, de um lado, e a forma burguesa de Estado e sua forma legal, de outro, e até mesmo propagam essa forma como um quadro referencial positivo para a política progressista. Certamente, é legítimo, na medida do possível, fazer com que as legislações e instituições sejam instrumentos de combate à indústria animal. No entanto, a exigência de transformar os animais em cidadãos, ou sujeitos de direito é meramente ideológica. Essa afirmação é especialmente verdadeira no contexto de que, mesmo entre os seres humanos, nem o Estado, nem a lei garantem, pelo contrário, Estado e lei minam a liberdade, a igualdade e a fraternidade.


V.


A crítica antiespecista pós-estruturalista do poder procede quase da mesma maneira que a filosofia moral burguesa, mas radicaliza a consideração ética das relações entre humanos e animais. Essa corrente questiona, primeiramente, a maneira pela qual o animal foi apresentado ao mundo como uma construção social, sustentando que essa construção é continuamente reproduzida por meio de, por exemplo, textos religiosos, literários ou jornalísticos, passando pela ciência natural às ciências sociais - da Bíblia até Descartes e Kant. O especismo, afirma em uníssono, é o resultado de uma construção dualista da sociedade e da natureza, “o grande discurso ocidental” (Coetzee) do humano e do animal. Além disso, defensores dessa corrente destacam que, enquanto todas as características que de alguma maneira beneficiam o progresso da civilização humana - razão, ciência, vontade, racionalidade, assim por diante - são atribuídas à sociedade, a natureza é identificada como tudo aquilo que foi substituído e deixado para trás nesse processo de civilização - espiritualidade, impulso, afetividade, magia e assim por diante. De acordo com essa interpretação, uma relação dualista como essa permanece entre a relação humana e animal: seres humanos são construídos como razoáveis, racionais e analíticos, elevados em relação aos animais que são construídos como criaturas irracionais da natureza, controlados por seus impulsos e afetos. Por meio desse dualismo, funda-se a crítica antiespecista pós-estruturalista, para explicar a dominância política dos seres humanos sobre os animais, o controle dos primeiros sobre os últimos, bem como a exclusão do animais do seio democrático.


Em seu procedimento, a abordagem antiespecista pós-estruturalista difere um pouco daquela de feministas antiautoritárias e antirracistas, que examinam formas de práticas sexistas e racistas de uma maneira semelhante. Para essa perspectiva, o sexismo existe porque a mulher é construída [socialmente] como um ser emocional, impulsionado por afetos, requerendo sempre proteção enquanto o homem é construído como um ser racional, inemotivo, obstinado e capaz de autoafirmação. A raiz do racismo, por sua vez, é a construção do outro, por exemplo, de povos e religiões, como degradados e primitivos em contraste à suposta superioridade de nações ocidentais.


A radicalidade da crítica antiespecista do poder equivale a demonstrar a dualidade existente em meio a ideologia especista, chamando atenção para o fato dessa dualidade ser um instrumento de dominação política, além da rejeição de fazer a luta contra uma ideologia específica mais importante do que a luta contra outras ideologias. Por esse motivo, autonomistas antiespecistas se opõe a exploração animal do mesmo modo que se opõem ao sexismo, racismo, homofobia e outros mecanismos sociais de exclusão que desmentem qualquer promessa burguesa de emancipação. É por esse motivo também que a abordagem que abarca a unidade contra a opressão - conhecida, atualmente, como interseccionalidade ou libertação total - é tão popular entre essa corrente de pensamento.


Em termos puramente analíticos, muitas observações do antiespecismo antiautoritário estão corretas. O problema é que essa corrente fornece uma mera descrição do discurso dominante acerca das relações entre humanos e animais e outras formas de opressão, mas nenhuma explicação do por que as relações humano-animal serem dessa maneira, nem do por que o discurso criticado ser tão predominante. Um antiespecismo pós-estruturalista antiautoritário pode elucidar o caráter do dualismo humano e animal presente na ideologia burguesa, isto é, como esse dualismo se apresenta sob a forma ideológica de pensamento nos discursos evocados. No entanto, essa corrente não é capaz de determinar a origem ou a função dessa ideologia [especista]. Além disso, não oferece nenhuma explicação para o que criou o dualismo ideológico entre humanos e animais e o que faz sua mediação. Sempre que antiespecistas antiautoritários fazem alusão a esse ponto, sua análise torna-se confusa. Por esse motivo, essa corrente permanece fenomenológica, afinal, puramente formal e, sobretudo, idealista, uma vez que considera o mero (errado) pensamento como motor da história. Além do mais, a abordagem de unidade da opressão confunde a questão da interrelação qualitativa entre os diferentes tipos de opressão e sua gênese com sua valoração político-normativa. Em última análise, a corrente apresentada é meramente capaz de padrões tautológicos de explicação: o especismo, portanto, surge do discurso especista. As teorias materialistas da História representam apenas um tabu. A correlação interna e funcional entre as relações burguesas de produção e a ideologia racista, por exemplo, é confundida com a questão de ser o capitalismo, como modo de opressão, normativamente pior do que o racismo, ou um assunto mais importante - ou vice versa. Dessa maneira, a tentativa de análise é rejeitada.


VI.


Podemos, então, estabelecer que: tanto a filosofia moral antiespecista, quanto sua versão mais radical, o antiespecismo antiautoritário, bem como a crítica jurídica liberal, não oferecem explicações úteis para a exploração de animais e sua cobertura ideológica. Essas correntes podem descrever a ideologia especista e as normas legais em detalhes, determinar seus paralelos e semelhanças para com outras ideologias e normas estruturadas de maneira semelhante, bem como destacar as contradições internas dessas ideologias e leis. No entanto, não são capazes de nos dizer como o pensamento ideológico sobre os animais ou mesmo seu status como propriedade vieram ao mundo e por que na sociedade burguesa capitalista a exploração animal assumiu precisamente a forma altamente tecnológica e industrializada que possui atualmente. Em resumo: as três correntes de pensamento não ajudam a entender o por que, para o interesse de quem e como os animais são exatamente explorados dentro da sociedade capitalista.


Essas deficiências teóricas produzem consequências imediatas para a práxis política: as três abordagens lidam apenas com a funcionalidade interna do raciocínio especista. Consequentemente, toda forma de exploração animal aparece como resultado da consciência especista - para essas correntes, a prática política dirigida à libertação animal é primordialmente uma questão de adequação de pensamento, comportamento moral e normas legais. O círculo de amigos, o açougueiro, o produtor de carne, o laboratório que testa em animais e seus lobistas - de acordo com essas correntes de pensamento, todos esses indivíduos deveriam abandonar seu pensamento especista para que os animais sejam libertados. A prática social é aqui, acima de tudo, uma questão de consciência social, que é a soma das consciências de todos os seus indivíduos separadamente. A exploração e a libertação animal são reduzidas a um problema filosófico, epistemológico ou, na melhor das hipóteses, um problema judicial teórico. Filósofos morais, teóricos do direito e antiautoritários antiespecistas não explicam realmente por que aqueles que lucram com a exploração animal possuem um intenso interesse em perpetuar as formas atuais de abuso, nem explicam o motivo desse interesse.


VII.


É aqui, precisamente, que o marxismo entra em jogo. Os primeiros escritos de Marx e Engels discutem a relação entre ser e consciência, natureza e sociedade e também entre humanos e animais. Marx e Engels perguntam-se de que maneira as formas historicamente específicas de cognição e consciência relacionam-se com o modo pelo qual a sociedade é organizada - em outras palavras, colocam a questão da mediação entre o ser e a consciência. Sua resposta, simplificada de maneira grosseira, é a de que por meio do trabalho social realizado nas respectivas relações de produção historicamente especificadas, os humanos produzem, por meio de sua existência material, sua própria consciência, bem como as condições pelas quais essa consciência pode e deve mudar. É o trabalho social - a alteração ativa das condições pré existentes - que molda a natureza e a funcionalidade da sociedade, ao mesmo tempo em que cria a base para a compreensão de ambas. Por esse motivo, Marx e Engels dizem que devemos olhar para aquilo que produz o suposto dualismo entre ser e consciência, entre sociedade e natureza, o que o medeia e o influencia, o que constitui a relação inerente entre humanos, sociedade e natureza - esse algo é o trabalho social em sua forma historicamente particular. Portanto, a contradição entre a sociedade, de um lado, os animais e a natureza, por outro, não se desenvolve meramente na mente das pessoas: o capitalismo, como uma forma historicamente própria de organizar o trabalho social, produz essa contradição constantemente - dentro do processo capitalista de produção, animais e natureza tornam-se, literalmente, um mero recurso a ser explorado.


Esta forma de compreender a relação entre humanos, sociedade e natureza se dá por meio do materialismo histórico. É uma perspectiva materialista porque assume que a existência social constrói a base para a consciência; e seu materialismo é histórico porque não considera a existência como fixa e invariável, mas a entende como produzida socialmente pelos próprios seres humanos. Também existe um materialismo a-histórico, do qual Marx e Engels se distanciaram com bastante força. A relação entre ser e consciência não é determinista no sentido de um mero esquematismo, como enfatiza Engels: “A situação econômica é a base, mas os vários fatores da superestrutura - formas políticas da luta de classes e suas consequências, nomeadamente constituições criadas pela classe dominante após uma batalha vitoriosa, etc., formas de direito e reflexos de todas essas lutas reais nas mentes dos participantes, i. e., teorias políticas, filosóficas e jurídicas, visões religiosas e sua expansão em sistemas dogmáticos - todos esses fatores também influenciam o curso das lutas históricas das quais, em muitos casos determinam amplamente a forma. É na interação de todos esses fatores e em meio a uma infinidade de fortuidades (...) que a tendência econômica acaba se afirmando como algo inevitável.”


VIII.


Se quisermos explicar, criticar e abolir a exploração de animais, ao invés de lidar exclusivamente com padrões de sua legitimação, devemos contar com as ferramentas do materialismo histórico.


Em um dos seus textos mais importantes para essa empreitada, “A Ideologia Alemã”, Marx e Engels demonstram como os seres humanos trabalharam passo-a-passo para distanciarem-se da natureza, reprimindo-a, interna e externamente. Demonstram como os humanos aprenderam a usar e subjugar a natureza e como, dessa forma, produziram uma diferença entre a natureza e a própria sociedade. De acordo com essa análise, os humanos produziram e domesticaram a si mesmos aprendendo a dominar a natureza externa e interna por meio do trabalho. Marx e Engels destacam que os humanos eram originalmente tidos como animais e que permanecem assim. No entanto, por meio de seu trabalho socialmente objetivado, o desenvolvimento social da produção e distribuição e de sua evolução sócio-histórica, os seres humanos atingiram uma diferença gradual em relação aos outros animais. Nas palavras de Marx e Engels: “Os humanos podem ser distinguidos dos animais pela consciência, pela religião ou qualquer outra coisa que você goste. Eles próprios começam a se distinguir dos animais assim que começam a produzir seus meios de subsistência, uma etapa que é condicionada por sua organização física. Ao produzir seus meios de subsistência, os seres humanos estão indiretamente produzindo sua vida material.” Ao mesmo tempo, não ocorreria a Marx e Engels “contestar a capacidade dos animais de agir de forma planejada e pré-mediada”, como Engels escreve em “Dialética da Natureza”, “[uma vez que] toda a ação planejada de todos os animais nunca teve sucesso em imprimir a marca de sua vontade na terra.” Os seres humanos, criaturas da natureza que precisam satisfazer necessidades naturais como comida, bebida e assim por diante, consequentemente, não diferem categoricamente, mas gradualmente dos outros animais, e essa diferença gradual é o resultado de sua própria práxis social político-econômica.


IX.


Dessa maneira, o materialismo histórico fornece uma abordagem rica para explicar a história e o desenvolvimento das relações entre humanos e animais: essas relações são o resultado de um processo de civilização no qual os seres humanos se distanciaram da natureza por meio de seu trabalho socialmente desenvolvido e assim produziram uma diferença entre si próprios e outros animais. Ao contrário do antiespecismo pós-estruturalista, por exemplo, o materialismo histórico pode não apenas descrever o dualismo entre humanos e animais, mas também explicá-lo. Além disso, podemos identificar o trabalho social como o elemento por meio do qual esse dualismo é constantemente reproduzido na prática. Segue-se que as percepções ideológicas que temos dos animais não são meras invenções da imaginação, mas são verdadeiras na medida que temos um fundamento da matéria real. O pensamento especista sobre animais, portanto, não é a base da exploração animal, mas o reflexo ideológico desta. Marco Maurizi foi ao cerne da questão: “Não exploramos animais porque os consideramos inferiores, pelo contrário, consideramos os animais inferiores porque os exploramos”. Daí segue que devemos determinar as formas historicamente específicas em que essa relação está organizada. Afinal, não existe trabalho social universal que impulsiona o processo da civilização, mas sempre e apenas trabalho social objetivado em formas de organização particulares historicamente.


X.


Não são apenas as relações político-econômicas da sociedade capitalista atual que produzem classes que se confrontam de maneira antagônica, mas também as relações que a precederam. O conflito entre classes, resultante de seus interesses opostos, permanece sendo o motor da história até os dias de hoje. Por este motivo, o “Manifesto do Partido Comunista” afirma: “A história de todas as sociedades até agora existentes é a história da luta de classes”. Na sociedade capitalista contemporânea, a organização do trabalho toma assento em duas relações sociais: a organização do trabalho por meio do mercado - o trabalho é uma mercadoria - e as relações de classe: trabalhadores e capitalistas confrontam-se no processo de produção. Capitalistas possuem os meios de produção (ou o capital necessário para que estes sejam adquiridos) e compram instrumentos de trabalho, matéria prima e a força de trabalho (esta oferecida pelos trabalhadores assalariados que não possuem mais nada para vender), empregando esses elementos todos no processo de produção. O produto toma a forma mercadoria, vendida para obter lucro. No entanto, esse lucro, cuja acumulação é a razão e a finalidade da produção capitalista, não cai simplesmente do céu. O lucro só pode ser obtido com a exploração dos trabalhadores: que trabalham além do ponto em que produziram um valor equivalente ao seu salário, produzindo um excedente que não está à sua própria disposição, mas dos capitalistas. Os capitalistas, escreve Marx no terceiro volume de O Capital, constroem “uma verdadeira sociedade maçônica vis-à-vis toda a classe trabalhadora”.


Portanto, dado que existem exploradores e explorados na sociedade capitalista, não é toda a espécie humana que explora os animais. Ao invés disso, a exploração tanto de animais quanto de trabalhadores assalariados ocorre, antes de mais nada, seguindo interesses e sob a direção da classe dominante. É claro, a exploração de animais e a exploração de trabalhadores assalariados diferem qualitativamente, e os últimos não atuam necessariamente em solidariedade com os animais tão somente porque também estão sendo oprimidos e explorados. Trabalhadores em abatedouros inclusive matam animais. Ocorre que as relações capitalistas de produção não se baseiam no antagonismo entre os capitalistas e a classe trabalhadora, mas também entre a classe dominante e a natureza, bem como os animais. A classe dominante conduz a exploração industrial organizada de animais e lucra substancialmente com isso. Consequentemente, como escreve Marx: “A visão da natureza alcançada sob o domínio da propriedade privada e do dinheiro é um verdadeiro desprezo e uma degradação prática da natureza”. Esse pensamento, é claro, inclui animais. Para responder à pergunta de por qual motivo não apenas os trabalhadores assalariados são explorados sob o capitalismo, mas também os animais - dando-se de uma forma qualitativamente diversa -, deve-se examinar a posição e a função que os animais herdam nessa forma de organização do trabalho social e, portanto, deve-se analisar a forma capitalista característica da exploração animal.


XI.


Animais não participam imediatamente das relações sociais características do capitalismo como indivíduos ativos - eles não compram nem vendem nada no mercado, nem mesmo seu trabalho: quando despendem trabalho no processo produtivo, não recebem salário em troca. Consequentemente, animais não produzem mais-valor e não fazem parte da classe trabalhadora. Sua exploração corresponde ao que Marx descreve como exploração da natureza: em virtude dos direitos burgueses relativos à propriedade privada e o poder econômico, ambos à sua disposição, os capitalistas lucram com o trato ruinoso com os animais e a natureza. Isso não é exploração no sentido da teoria do valor-trabalho. No entanto, Marx também não delimita a noção de exploração à produção de mais-valor. E ele, certamente, não conclui dessa observação que pessoas escravizadas não deixavam de ser exploradas apesar de não produzirem mais-valor.


Uma vez que não resistem de maneira organizada, os animais são apropriados, assim como outros materiais naturais, enquanto meios de produção livremente disponíveis, ou seja, como instrumentos de trabalho (como fossem máquinas para a produção de ovos, leite, carne e assim por diante) e matéria prima (couro, carne para posterior processamento e assim por diante). Os trabalhadores realizam uma apropriação, muitas vezes violenta na prática. Eles executam, sob o comando do capital, a produção do mais-valor, que na indústria animal envolve matar e ordenhar, bem como realizar vivissecções e questões semelhantes. Os produtos, que são produzidos por animais ou aqueles nos quais eles próprios se tornam a matéria-prima, são posteriormente processados por trabalhadores assalariados e são finalmente vendidos como mercadorias. A produção do lucro, portanto, não depende apenas da exploração de trabalhadores assalariados, mas também de animais e da natureza de uma maneira geral. Com o propósito de maximização do lucro, obtido por meio da exploração dos animais, os capitalistas estão empenhando-se em incluir animais ao processo de produção da maneira mais eficiente possível. Eficiência, nesse caso, também significa: abstrair as qualidades desses animais, dentre as quais, sua capacidade de sofrer.


XII.


Disso tudo, segue-se que, para nós, apenas um antiespecismo materialista histórico se prova capaz de explicar e analisar as relações entre animais e humanos de maneira abrangente; se examinada de perto revelam-se hoje como relações de exploração e dominação entre o capital, por um lado, e o proletariado, os animais e a natureza do outro. Um antiespecismo materialista histórico abre novas perspectivas para a análise e crítica da sociedade de classes burguesa e identifica áreas nas quais a ordem capitalista se mostra vulnerável, áreas que precisam ser atacadas a fim de libertar animais da exploração.


Na verdade, não se pode concluir, da crítica da economia política, que os animais seriam automaticamente libertados em uma sociedade socialista ou comunista. No entanto, a luta contra o domínio do capital e sua expropriação são pré-requisitos necessários para permitir que as pessoas tomem coletivamente a decisão: nós vamos libertar os animais!


Enquanto persistir a relação do capital e com ela o controle da classe dominante sobre o que se produz, bem como sobre o modo que se produz e os meios necessários para sua produção, o capital se apropriará da natureza e incorporará, em seu processo de valorização, tudo o que não puder se salvar ou que não puder tomar um posicionamento contrário.


Porque o Marxismo Precisa Ser Antiespecista


XIII.


Para os marxistas, muito do que foi dito até o momento não representa novidade. O materialismo histórico e a crítica marxiana da economia política são, afinal, a bússola de suas análises econômicas e políticas. Eles poderiam dar de ombros e dizer aos que promovem a libertação animal: bem notado, agora parem com a moralização e comecem, conosco, a lutar contra o capitalismo. Teriam boas razões para tanto!


Todavia, pensamos: se alguém leva a sério o materialismo histórico, então deve reconhecer que humanos e animais não possuem apenas uma história compartilhada. Acima de tudo, as classes e animais oprimidos e explorados possuem um inimigo comum, que lucra enquanto é responsável pela exploração, ao mesmo tempo que organiza - de diferentes formas - a opressão, ou seja, a classe dominante. Além disso, marxistas precisam reconhecer que, em decorrência de seus prejudiciais efeitos sociais e ecológicos, a extensão atual da produção animal é objetivamente irracional e obstrui o progresso social.


XIV.


O atual nível de desenvolvimento das forças produtivas não permite apenas pensar em resolver o sofrimento socialmente produzido aos animais e colocar a questão de inclusão destes seres na luta pela libertação. Um olhar para a pegada de carbono da indústria pecuária ou seu consumo irracional de recursos naturais também destaca a necessidade urgente de uma posição marxista no trato social para com os animais. A contradição entre o capitalismo e a natureza atingiu uma escala que ameaça a sobrevivência da espécie humana - contradição essa para qual a produção animal industrializada dá uma contribuição significativa.


Hoje, a exploração de animais não é apenas objetivamente desnecessária, mas irracional e contra-progressiva. Além de provocar o consumo excessivo e crescente de recursos como água e soja, que não são usados para propósitos significativos, mas empregados na produção da carne, leite e ovos, não sendo, de maneira alguma, racionalmente distribuídos. Os danos ecológicos causados pelo desmatamento das florestas tropicais, pelo cultivo de monoculturas ou pela poluição das águas já podem ser considerados parcialmente irreversíveis. Assim, acreditar que se pode ignorar a produção de carne ou mesmo transpor essa produção para uma operação socialista é deixar-se enganar pela imagem ingênua e romantizada da produção pecuária que grupos de lobistas do capital promovem. A conversão da indústria pecuária em uma produção ecologicamente sustentável, vegana e socialmente planejada, em contraste, seria uma demanda socialista oportuna.


É sabido que a utilização e o consumo de animais desempenham um importante papel na história da civilização humana. No entanto, nada garante sua continuação até os dias de hoje: as forças produtivas atualmente não só permitem o desenvolvimento de uma simpatia pelo sofrimento animal, mas, consequentemente, tornam possível e necessária a reestruturação das relações de produção. E, como as presentes teses deste ensaio devem provar, marxistas não possuem um motivo razoável para não considerar o antiespecismo.


O fato de que o potencial tecnológico do capitalismo em desenvolvimento possibilita o progresso histórico não deve ocultar outro fato, ou seja, de que esse mesmo potencial permite uma destruição ampla: uma vez que contém a possibilidade de libertação ao mesmo tempo que possui a possibilidade de reificação, desconsideração e aniquilação total da vida. Se as forças produtivas modernas não deverão ser destrutivas, mas sim meios para o desenvolvimento do progresso e bem-estar, os que possuem tal interesse mútuo precisam unir forças. É preciso mudar as relações sociais, de modo que as forças de produção não sejam utilizadas para o lucro de poucas pessoas, mas desenvolvidas e aplicadas em benefício de todo o povo. É por isso que dizemos: marxistas e aqueles que lutam pela libertação animal devem unir forças em sua luta por um projeto revolucionário e verdadeiramente civilizador - a libertação humana, animal e da natureza.


XV.


Em contraste com as concepções idealistas da história, materialistas históricos assumem que não são as ideias, mas a luta de classes, o motor da história humana. Esta luta é baseada no fato de que dentro das sociedades classistas, os interesses de classe que se opõem de maneira antagônica nunca poderão ser conciliados - tal antagonismo pode ser meramente disfarçado ou, melhor, suprimido por meio de mecanismos ideológicos, da religião, da política, de leis e assim por diante. A classe dominante garante essa supressão impondo suas ideias como ideias prevalecentes.


Assim como existem diferenças qualitativas nas funções que animais e trabalhadores assalariados desempenham no processo de produção e no processo de sua exploração, o papel que animais herdam na luta contra a classe dominante também é diferente do papel exercido por trabalhadores assalariados. Esses podem se organizar na defesa de seus interesses, planejar greves e manifestações ou pensar em uma sociedade liberta. Acima de tudo e, no entanto, ao contrário dos animais, trabalhadores assalariados podem analisar as condições sociais sob as quais estão submetidos e, consequentemente, deliberar medidas concretas para organizar sua própria libertação. Por este motivo, a classe operária é capaz de ser o sujeito de sua própria liberdade. Os animais, por sua vez, apenas podem ser objetos de libertação.


Quando se trata da libertação animal, marxistas tradicionais frequentemente mencionam essa diferença entre trabalhadores assalariados e animais. O argumento que trazem é o de que nenhuma necessidade histórica para a libertação dos animais pode ser deduzida de uma análise social sistematicamente refletida. Isso é correto: quando se trata de sua implementação, a libertação animal é essencialmente uma questão político-econômica - sua necessidade não pode derivar imediatamente de uma análise do capital. No entanto, a situação em relação à abolição do trabalho assalariado não é significantemente diferente. Enquanto uma necessidade histórica, a luta de classes organizada a partir dos debaixo não pode ser deduzida da análise das relações do capital e a compreensão de que a luta de classes é a força motriz da história. Além disso, essa necessidade apenas existe se e quando os trabalhadores assalariados decidem, politicamente, tomá-la para si.


Marxistas revolucionários não analisam apenas o modo de produção moderno, mas também tomam a decisão política de lutar contra a subjugação ao capital com base em suas experiências, seu sofrimento, sua consciência em relação à exploração capitalista e seu conhecimento acerca das “condições materiais, únicas capazes de formar a base real de uma forma superior de sociedade, uma sociedade em que o desenvolvimento pleno e livre de cada indivíduo constitui o princípio dominante”, escreve Marx.


Quem quer que tenha aceitado que a libertação é necessária (em absoluto) para dar fim ao sofrimento e exploração socialmente produzidos não tem razão - a não ser que seja ideológica - para excluir animais desse esforço. A análise das relações do capital como centrais na exploração e dominação da sociedade atual demonstra que a produção de lucros do capital não se baseia apenas na exploração de trabalhadores assalariados, mas também na exploração de animais (e da natureza de maneira geral). A produção capitalista, na qual a interação entre sociedade e natureza é organizada de maneira a maximizar os lucros, simultaneamente esgota as fontes originárias de toda a riqueza: “o solo e o trabalhador” (Marx). Uma luta intransigente pela abolição dessa relação deve, portanto, incluir a luta pela libertação animal e da natureza.


XVI.


Assim, uma vez que se decida lutar pela libertação, não há razão para que se faça de tudo para acabar com o sofrimento socialmente produzido, enquanto, ao mesmo tempo, exclui-se os animais desse objetivo (o que estaria de acordo para alguns marxistas, até mesmo no caso da construção do comunismo). Com efeito, apesar de todas diferenças qualitativas entre a exploração dos trabalhadores assalariados e dos animais, tanto os primeiros quanto os segundos possuem capacidade de sofrer - embora essa capacidade assuma constantemente formas distintas. Seria inconsistente e produto de uma falsa consciência estabelecer uma distinção clara e absoluta entre humanos e animais no que diz respeito a essa capacidade que se desenvolve de maneira semelhante, apesar das diferenças graduais criadas sócio-historicamente.


Esse ponto é negado por muitos camaradas marxistas que dizem ser moralismo todo o pensamento acerca do sofrimento; e que a moral não pode fornecer a base para uma política anticapitalista com consciência de classe. Afinal, não se luta contra a burguesia com empatia ou apelos à simpatia, mas sim com organização e uma linha política desenvolvida a partir da análise concreta da realidade material. Isso está correto, no entanto, esses marxistas cometem dois erros: julgam mal o significado materialista histórico do sofrimento e confundem a genuína existência da moralidade com o moralismo burguês.


O sofrimento sobre o qual estamos escrevendo não é idealista, mas sim uma categoria materialista histórica. Não é um sofrimento causado por uma nostalgia ou por uma dor de dente, mas um que se baseia, necessariamente, na organização da sociedade, nas relações de produção e, portanto, pode e deve ser aliviado e, potencialmente, abolido. A vontade de fazer exatamente isso, ou seja, diminuir esse sofrimento, é um impulsor essencial da luta de classes e da solidariedade - é uma parcela integrante da centelha que acende o materialismo histórico. Negar esse sofrimento na teoria marxista significa, portanto, negar um elemento importante de sua fundação.


Mesmo a política, no melhor sentido marxiano, é inicialmente motivada pela moral, uma vez que, como demonstrado, o sofrimento sob a escravidão assalariada e a exploração são catalisadores da busca por possibilidades de se abolir o capitalismo. A constatação de que a produção de exploração, opressão, imperialismo e afins são inerentes ao capitalismo ou, em outros termos, que geram as condições para nosso sofrimento, fazem com que os marxistas analisem e critiquem a sociedade para, a partir daí, realizar políticas revolucionárias.


Pode-se então estabelecer que os marxistas também são movidos por um impulso moral que é essencial para a decisão de se tornar politicamente ativo e também para promover mensagens políticas. No entanto, não param nesse limite. Em vez disso, percebem as limitações políticas e econômicas da empatia e fazem da experiência do sofrimento o ponto de partida de uma análise materialista histórica da sociedade. Assim, derivam a necessidade política de organizarem-se não exclusivamente da experiência coletiva de sofrimento dos explorados, mas da compreensão da posição objetiva que os trabalhadores assalariados ocupam no tecido social - e quais possibilidades de uma luta de classes a partir de baixo emergir desse ambiente.


Esta é a diferença entre moralidade e moralismo: a moral revolucionária compreende que "[uma] moralidade realmente humana que está acima dos antagonismos de classe e acima de qualquer lembrança destes, só se torna possível em uma etapa da sociedade que não só superou os antagonismos de classe, mas que os esqueceu na vida prática" (Engels).


XVII.


Enquanto o antagonismo de classe não for superado, a alienação dos trabalhadores de seu produto de trabalho, de si mesmos, do processo social de produção e da natureza também irá persistir. Na indústria animal, essa alienação precisa ser extrema, ao ponto que trabalhadores assalariados possam, no processo produtivo, ferir criaturas capazes de sofrer para processá-las industrialmente, ou seja, para matá-las. Dentro da exploração capitalista dos animais, perdemos a consciência de que temos com eles muito em comum: nós também possuímos um corpo tormentoso; além disso, ser humano, em última instância, significa também ser animal. A supressão do que nos liga à natureza interna no ser humano é, ao mesmo tempo, tanto uma condição, quanto uma consequência do modo capitalista de organizar o trabalho social.


XVIII.


Levando tudo em consideração, devemos concluir que: a mesma indignação que experienciamos diante da brutalidade do capitalismo, que nos leva a uma crítica marxista da sociedade e uma resistência contra a mesma, ocorre também em antiespecistas face ao sofrimento dos animais. O inimigo dos animais - o capital - é também o inimigo dos seres humanos. Como marxista, como anticapitalista, é preciso transformar este impulso de solidariedade em combustível para a própria vida, compreender e reconhecer a posição objetiva dos animais no processo de produção, ou seja, que pertencem àquelas criaturas oprimidas a cujas custas a classe dominante acumula sua riqueza.


A luta de classes pela libertação animal é a luta pela libertação do proletariado.

 

Notas do tradutor: [1] aqui, apenas para que não reste dúvidas, o texto refere-se à burguesia na acepção marxiana do termo. [2] senhores vegetarianos.

 

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