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o esforço pela coerência de vida + definição mínima de organização revolucionária

Atualizado: 27 de jul. de 2022


Colagem por Fabiana Gibim

Decidimos por publicar os dois textos, “O Esforço pela Coerência de Vida”, de Raoul Vaneigem e “Definição Mínima de Organização Revolucionária” assinado pela Internacional Situacionista juntos por manifestarem uma consonância quase simbiótica - consideramos necessária a concatenação dessas duas leituras para uma compreensão integral do pensamento sustentado nestas linhas. Traduções de Fabiana Gibim.


 
 

O Esforço pela Coerência de Vida

Empenhando-se em apresentar um modelo de coerência teórico-prática às novas forças revolucionárias, a Internacional Situacionista deve estar pronta a qualquer momento para sancionar, por exclusão ou rompimento, as falhas, insuficiências e compromissos dos integrantes que constroem - ou nela reconhecem - o estágio experimental mais avançado de seu projeto de base. Se a geração insurgente que se propõe a fundar uma nova sociedade manifesta um alerta, baseado em princípios fundamentais inalteráveis, clamando pelo esmagamento de qualquer tentativa de cooptação, isso não se dá por puritanismo mas sim por auto-defesa. Em organizações que, em seus fundamentos essenciais, prefiguram o tipo de organização social a ser construída, o requisito mínimo é não tolerar as pessoas que o poder vigente costuma tolerar de muitíssimo bom grado. Em seu aspecto positivo, a prática de “exclusões” e “rompimentos" está relacionada à adesão à Internacional Situacionista e sua aliança com grupos autônomos e outros indivíduos. Em seu texto Minimum Definition of Revolutionary Organizations (Diretrizes Mínimas de Organizações Revolucionárias, tradução nossa), a 7ª Conferência ressaltou, entre outros pontos, a seguinte posição: “Uma organização revolucionária se recusa a reproduzir em sua estrutura interior qualquer condição hierárquica do mundo dominante. A única determinação para a participação nesta democracia (proletária) é que cada membro deve reconhecer e se apropriar da coerência de sua crítica. Essa coerência deve ser alinhada tanto no âmbito da teoria crítica quanto na relação entre teoria e atividade prática. A organização critica radicalmente toda ideologia como um poder independente das ideias ou ideias de poder independente" A coerência da crítica e a crítica à incoerência são um mesmo movimento, condenado a se deteriorar e se enrijecer na forma de ideologia no momento em que são separadas e introduzidas entre diferentes grupos de uma federação, diferentes membros de uma organização ou entre teoria e prática de um membro individual. Na luta total em que estamos engajados, ceder um centímetro à incoerência é permitir que a desarticulação ganhe vantagem completamente. Isto é o que nos impulsiona à maior vigilância: nunca tomar a coerência como garantida, permanecer atentos aos perigos que a ameaçam no princípio fundamental do comportamento individual e coletivo, antecipar e evitar esses perigos. O fato de que uma fissura secreta[1] foi capaz de se formar entre nós, mas também de que foi rapidamente exposta, indica suficientemente nosso rigor e nossa falta de transparência nas relações intersubjetivas. Em outras palavras, isso significa que a influência da Internacional Situacionista deriva essencialmente disso: sua capacidade de oferecer um exemplo, tanto negativo, mostrando suas fraquezas e corrigindo-as, quanto positivo, elaborando novos posicionamentos a partir destas correções. Nós frequentemente reiteramos a importância de não sermos incoerentes em nossas próprias vidas; nós precisamos provar nosso correto julgamento ininterruptamente e, ao mesmo tempo, tornar cada vez mais difícil que se enganem ao nosso respeito. Isso é válido tanto para indivíduos tanto quanto para grupos. Recordemos as palavras de Sócrates a um dos jovens com quem dialogou: “Fale um pouco para que eu possa ver que tipo de pessoa você é”. É possível recusar este tipo de diálogo se o caráter exemplar de nosso movimento se garante pela força radiante de nossa presença contra o espetáculo reinante. Devemos nos contrapor aos mafiosos da cooptação e aos canalhas que inventam rumores sobre nosso suposto "elitismo" com nosso exemplo anti-hierárquico de radicalização permanente. Não devemos dissimular nenhum aspecto de nossas experiências e devemos estabelecer, através da disseminação de nossos métodos, teses críticas e táticas de agitação, além da integral transparência de nosso projeto coletivo em nossas vidas cotidianas. A Internacional Situacionista deve agir como um eixo que, recebendo seu impulso do movimento revolucionário ao redor do mundo, articula-se de forma nuclear à virada radical dos acontecimentos. Ao contrário dos setores retrógrados que lutam pela unidade tática acima de tudo (frentes amplas, nacionais ou populares), a Internacional Situacionista e suas organizações autônomas aliadas se encontram apenas na busca pela unidade orgânica, considerando firmemente que unidade tática só é eficaz onde a unidade orgânica é possível. Em grupo ou individualmente, todos devem viver com a mesma coerência a radicalização dos eventos para que possam, precisamente, se radicalizar. Isto é coerência revolucionária. Nós certamente estamos ainda muito distantes de tal harmonia em nossas posições, mas seguramente estamos nos encaminhando para isso. De seus princípios à sua manifestação, o movimento envolve grupos e indivíduos, e assim, seus possíveis retrocessos. Somente a transparência na participação real livra os pesos que atravancam a coerência: a separação daquilo que retarda o movimento. A hostilidade do velho mundo que habitamos é a raiz de tudo que ainda nos separa da realização definitiva do projeto situacionista; a consciência destas separações, entretanto, já contém os meios para resolvê-las. É precisamente na luta contra as cisões que o retrocesso surge em diversos níveis; é ali que a inconsciência do retardo obscurece a consciência das cisões, causando assim espaço para que a incoerência surja. Quando a consciência apodrece, a ideologia escorre para fora de seus buracos. Vimos Kotányi guardar para si os resultados de suas análises, comunicando-os gota a gota com a rígida superioridade de um relógio de água ao longo do tempo; vimos também outros (os mais recentemente excluídos) mantendo para si mesmos suas incoerências em todos os aspectos, pavonearem-se como pavões sem cauda. Aquele “espere para ver” místico pautado no obscurantismo e ecumenismo são farinhas do mesmo saco. Desapareçam, charlatões grotescos de enfermidades incuráveis! A noção de retardamento está relacionada ao léxico do jogo, está conectada com a noção de game leader (líder do jogo, tradução nossa). Assim como o agir dissimuladamente recria a noção de prestígio, tende também a transformar o game leader em um chefe, gerando um comportamento estereotipado (o papel de patrão, com todas as suas sutilezas neuróticas, suas atitudes distorcidas e sua desumanidade). Assim, a transparência nos capacita a habitar o projeto coletivo com a inocência calculada dos jogadores falansterianos de Fourier, dialeticamente rivalizando uns com os outros (paixão "combinada”), variando suas atividades (paixão “borboleta”), e avançando pela radicalidade mais avançada (paixão “cabalista”)[2]. Mas a leveza de coração deve ser baseada em relações profundas, pesadas e conscientes. Ela demanda lucidez em relação às habilidades de todos. Nós não temos interesse algum em habilidades além do uso revolucionário que se pode fazer delas, utilidade esta que adquire sentido na vida cotidiana. O problema não é que alguns camaradas vivem, pensam, transam, atiram ou falam melhor que outros mas sim que nenhum camarada deveria viver, pensar, transar, atirar ou falar de forma tão degradada a ponto de dissimular seus defeitos, se fazer de desentendido e ainda exigir, em nome da mais-valia que concede aos outros consoante suas próprias inadequações, uma democracia de impotência que se pretende o único meio de seu desabrochar. Em outras palavras, todo revolucionário deve no mínimo ter a paixão de defender seu atributo mais precioso: sua paixão pela realização do indivíduo, seu desejo de libertar sua própria vida cotidiana. Se alguém desiste de se engajar (e assim, desenvolver) em todas as suas habilidades na luta pela sua criatividade, seus sonhos, suas paixões, está na realidade desistindo de si mesmo. Ao fazer isso, imediatamente se desobedece ao falar seu próprio nome, e é também infiel ao falar em nome de um grupo que incorpora as chances de realização de todos os seus membros. Uma exclusão ou ruptura apenas se concretiza publicamente - com a lógica de transparência que faltou ao indivíduo incoerente - em sua escolha pelo inautêntico e infiel. Quanto às questões de filiação ou aliança, o exemplo de genuína participação no projeto revolucionário é o fator decisivo. Consciência dos retardamentos, esforço pela união, esforço para atingir plena coerência - é isso que deve constituir a base de uma confiança objetiva entre nós, assim como entre a Internacional Situacionista e os grupos e federações autônomas. Há todos os motivos para esperar que nossos aliados nos rivalizem na radicalização das condições revolucionárias, assim como esperamos que aqueles que se juntarão a nós o façam. Tudo nos permite supor que em um certo ponto do caminho para aprofundar a consciência revolucionária cada grupo terá atingido uma coerência tal que o nível de game-leading (“liderança do jogo”, tradução nossa) de todos os participantes e a negligência dos retardatários permitirá aos indivíduos pesar suas opções e optar pela participação de organizações que estejam mais de acordo com suas afinidades passionais. Mas a predominância momentânea da Internacional Situacionista é um fato que também deve ser reconhecido e levado em conta: uma desgraça gratificante, como o sorriso ambíguo do Gato de Cheshire às revoluções invisíveis. Porque a Internacional Situacionista tem atualmente uma riqueza teórica e prática que se desenvolve na medida em que é compartilhada, apropriada e evoluída por elementos revolucionários (até o ponto em que a Internacional Situacionista e os grupos autônomos por sua vez são totalmente imersos na riqueza revolucionária), ela deve acolher apenas aqueles que queiram participar dela plenamente cientes do que estão fazendo; ou seja, qualquer um que tenha demonstrado que ao falar e agir por si mesmo, fala e age em nome de muitos, seja criando através da poesia de sua práxis (folheto, motim, filme, agitação, livro) um reagrupamento de forças subversivas, seja tornando-se o único que se manteve totalmente coerente no processo de radicalização de um grupo. A oportunidade de sua entrada na Internacional Situacionista torna-se então uma questão tática a ser debatida: ou o grupo é suficientemente forte para abrir mão de um de seus game leaders (“líderes do jogo”); ou seu fracasso é tanto que os líderes de jogo são os únicos detentores do direito de se posicionar sobre o assunto; ou o líder de jogo, devido a circunstâncias objetivas inevitáveis, não conseguiu formar um grupo. Onde quer que o novo proletariado manifeste sua libertação, a autonomia na coerência revolucionária é o primeiro passo para uma autogestão generalizada. A lucidez que nos esforçamos para manter em relação a nós mesmos e ao mundo nos ensina que na prática organizacional não há muita pressa ou alerta. Sobre a questão da liberdade, um erro de detalhe já é a ruína.

Raoul Vaneigem, 1967 Notas: [1] Os "Garnautins". Quatro parágrafos depois são referidos como "os mais recentemente excluídos". Veja Nossos Objetivos e Métodos no Escândalo de Estrasburgo. [2] combinada, borboleta, cabalista: As três "paixões distributivas" de Fourier. Ver The Utopian Vision of Charles Fourier (Beacon, 1971; ed. Beecher & Bienvenu), pp. 216-220. "Avoir pour but la vérité pratique" foi publicado originalmente em Internationale Situationniste #11 (Paris, outubro de 1967).


Definição Mínima de Organização Revolucionária

Posto que o único objetivo de uma organização revolucionária é a abolição de todas as classes existentes de forma que não se eleve uma nova divisão da sociedade, consideramos que, para que uma organização seja revolucionária, é preciso que trabalhe de forma consistente e efetiva para a materialização internacional do poder absoluto dos conselhos de trabalhadores, como prefigurado pelas experiências das revoluções proletárias deste século. Tal organização ou produz uma crítica integral do mundo ou não significa nada. Por crítica integral entendemos uma crítica que aporte todas as áreas geográficas onde existem várias formas de poderes socioeconômicos distintos, bem como uma crítica abrangente de todos os aspectos da vida. Tal organização vê o início e o fim de seu programa na completa descolonização da vida cotidiana. Desta forma, ela não visa a autogestão das massas no mundo existente, mas sua transformação ininterrupta. Ela concretiza a crítica radical da economia política, a abolição do sistema de commodity e do trabalho assalariado. Tal organização se recusa a reproduzir em sua estrutura interior qualquer condição hierárquica do mundo dominante. A única determinação para a participação nesta democracia (proletária) é que cada membro deve reconhecer e se apropriar da coerência de sua crítica. Essa coerência deve ser alinhada tanto no âmbito da teoria crítica quanto na relação entre teoria e atividade prática. A organização critica radicalmente toda ideologia como um poder independente das ideias ou ideias de poder independente. É, portanto, concomitantemente a negação de qualquer religião remanescente e do espetáculo social predominante que, dos meios de comunicação à cultura de massa, monopoliza a comunicação entre as pessoas em torno de sua recepção superficial das imagens de suas atividades alienadas. A organização dissolve qualquer “ideologia revolucionária”, a desmascarando e a expondo como um sinal do fracasso do projeto verdadeiramente revolucionário, como propriedade privada dos “novos especialistas do poder” e como mais uma representação fraudulenta que se promove acima da real vida proletarizada. Como o critério final da organização revolucionária moderna é sua integralidade, tal organização é, em última analise, uma crítica à política. Ela deve ter explicitamente o objetivo de se dissolver como organização em seu momento de vitória.

INTERNACIONAL SITUACIONISTA, Julho de 1966 "Définition minimum des organisations révolutionnaires" foi adotada pela 7ª Conferência da Internacional Situacionista (julho de 1966) e reproduzida na Internationale Situationniste #11 (Paris, outubro de 1967).

 

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