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direito ao erro

Atualizado: 31 de jan. de 2022


Caboblo (Índio Civilizado) - [Caboble (Indian Civilisé)]. Litografia por Jean-Baptiste Debré, 1834. Acervo da Biblioteca Digital Luso-Brasileira.

 


A Fresta é uma coluna — uma colina — de periodicidade semanal dedicada a publicação de textos realizados no seio do movimento surrealista e arredores, de curadoria de Natan Schäfer.


 

Jehan Mayoux

No ano de 1969 uma série de conflitos internos ao grupo surrealista de Paris encontrou seu momento de maior tensão, conduzindo a autodissolução do grupo naquele mesmo ano. Em meio às polêmicas deste período, Vincent Bounoure[1] conduziu a enquete Nada ou o quê? [Rien ou quoi?]. Com ela, ele buscou enunciar questões fundamentais para o esclarecimento dos impasses do movimento surrealista e abrir caminhos capazes de desatar os vários nós que desde o início dos anos 1960 vinham se formando no grupo de Paris, e que se precipitaram sobretudo após a morte de André Breton, em 1966.

Embora seu argumento tenha sido publicado em Momentos do surrealismo [Moments du surréalisme] (Harmattan, 1999), o resultado dessa enquete interna conduzida por Bounoure é inédito e foi divulgado somente junto aos diretamente interessados e envolvidos. Contudo, individualmente e em seu conjunto, as respostas a ela são muito elucidativas, não somente no que diz respeito àquele — e por que não a este? — momento do surrealismo, mas também a questões de fundo relacionadas ao movimento.

Este é o caso do breve trecho da resposta de Jehan Mayoux (Vienne, 1904 - Ussel, 1975), de quem já publicamos nest’A Fresta o Princípio de equivalência e sua média elevada[2]. Se naquele texto Mayoux demonstrava seu raciocínio lógico agudo, neste breve excerto, que intitulamos aqui “Direito ao erro” e que se impôs após uma conversa entre Flávia Chornobai, Marina Fanchin e eu, é com o mesmo rigor e humor que ele reivindica o direito ao erro enquanto, como ele mesmo diz, um “outro nome para liberdade de pensamento e expressão”, o que portanto é fundamental para a compreensão e vivência do surrealismo. Esta apresentação que você está lendo e que antecede o texto de Mayoux reúne algumas reflexões iniciais precipitadas pela conversa e pelo texto, ou seja, são uns poucos passos e tateamentos de uma longa busca.

Sobre este tema, a última edição d’A Fresta impressa refletia sobre uma possível superação — no sentido da Aufhebung hegeliana — da “contribuição milionária de todos os erros”[3], de modo a ultrapassar essa proposição econômica de Oswald de Andrade e a própria noção moral judaico-cristã sobre o erro, vigente em nossa sociedade ocidental — portanto em nós e ao nosso redor[4]. Assim apontava na direção da liberdade como definida por Georges Bataille a qual, segundo citávamos na apresentação de outra A Fresta impressa, a de n.7,


a liberdade não é mais a liberdade de escolher, mas a escolha que torna possível uma liberdade, uma atividade livre (...) Assim, a decisão surrealista é a decisão de não mais decidir [Gérad Legrand anota no rodapé da citação de Bataille: “Poderíamos comparar com Villiers de L’Isle-Adam: ‘Só é livre aquele que, tendo para sempre optado, isto é, não podendo mais falhar, não é mais obrigado a hesitar”][5].


Aqui ilustro e amplio esta afirmação de Bataille com um gesto surrealista de Jean-Claude Silbermann[6]: ele pede aos seus alunos que lancem uma pedra ao longe. Após isso, dirigem-se ao lugar onde a pedra caiu e ao redor dela traçam os círculos de um alvo. A pedra então está lá, exatamente no centro do alvo. Na mosca[7].

Para além das relações entre tempo e inconsciente, elegantemente indicadas através desse gesto de Silbermann, o lançamento, a pedra e o alvo conduzem-me ao famoso Dicionário de Filosofia, de José Ferrater Mora, onde ele afirma que para os escolásticos “o erro opõe-se à verdade". A meu ver esta oposição é um dos fatores que leva à repressão e à condenação do erro, tornando-o causa de repreensão e suplício — o que é grave e inconveniente. Outra perspectiva seria a do re-conhecimento daquilo que hoje e aqui denominamos “erro” e sua inclusão no percurso, sem renunciar ao seu aspecto por vezes trágico[8] e de modo a partir dele enquanto uma abertura, e não somente como um fechamento, fazendo com que o que era errado em oposição ao certo torne-se errático e conduza ao horizonte. Este re-conhecimento passa longe do laxismo ou de um culto do desleixo em detrimento da busca pela Verdade. A propósito, é importante recordar que certa vez após um show, Thelonius Monk lamentou: Cometi os equívocos errados [I made the wrong mistakes][9]. A partir da declaração de Monk, poderíamos supor que o erro “correto” é aquele do percurso do desejo. Em síntese paronomásica: certerrar para ter cerreteza.

O errar sem rédeas, como a errância do cavaleiro medieval, é benéfico e creativo[10] e quiçá incontornável no caminho que conduz à Verdade[11]— vide os acasos objetivos, amplamente vividos, descritos e estudados pelos surrealistas, e os atos falhos ou lapsus linguae que, além de terem obtido grande atenção dos surrealistas, como Robert Desnos, Marcel Duchamp e Michel Leiris, foram minuciosamente vividos, estudados e teorizados por psicanalistas como Sigmund Freud e Jacques Lacan[12]. É assim que, eventualmente, pode abrir-se a passagem dos erros ao Eros.

São estas aberturas, associadas à valentia e insubmissão ao longo de toda uma vida, que abrem o caminho de Jehan Mayoux até nós, cuja obra, como disse anteriormente, evidencia um pensamento rigoroso que, associado a um humor agudo, conduz sua sensibilidade ao inaudito, ao insólito e ao novo. Parece-me que justamente esta espécie de “razão automática” e sem medo de seguir ad absurdum de Mayoux permite com que ele pense de maneira verdadeiramente livre e alegre, o que é raro, sobretudo deste lado do oceano — por mais estranho e contraditório que isso possa soar face ao tão difundido lugar comum, que nada mais é que uma vala.

Tenho a sensação de que no Brasil com frequência o pensamento dá mostras de um compromisso moral com a tristeza, a melancolia e o sentido descendente. Contudo, por ora não cabe aqui a investigação do porquê.

Aqui Mayoux nos ensina em si que, mesmo deitando-se, o arco e a flecha podem apontar para cima.


*


[...]


Se traduzo em termos abstratos o que era e continua sendo meu pensamento, diria que o “acordo indispensável” sobre o qual você me interroga deve incluir o direito ao erro e à discussão cooperativa.


Direito ao erro? No plano da sociedade trata-se somente de um outro nome para a liberdade de pensamento e de expressão. O que ele pode ser no seio de uma coletividade fundada sobre uma “conivência ideológica”? Simplesmente a possibilidade para cada um de dizer o que pensou, o que entreviu, o que imagina possível, etc… sem ser paralisado ou constrangido pelo medo de desqualificar-se a si mesmo se aquilo que avança revela-se, num exame mais amplo, tolice ou contrassenso. Tatear, buscar, hesitar, considerar hipóteses arriscadas (ou mesmo estúpidas) não são crimes contra o espírito[13].


[...]


 

[1] De quem publicamos nest’A Fresta seu Surrealismo e o coração selvagem, disponível em: < https://www.sobinfluencia.com/post/o-surrealismo-e-o-cora%C3%A7%C3%A3o-selvagem >; acesso em 11 de janeiro de 2021. [2] Disponível em: < https://www.sobinfluencia.com/post/principio-de-equivalencia >; acesso em 11 de janeiro de 2021. [3] Alguém seria capaz de encontrar um erro no maravilhamento diante da beleza, no gosto de uma romã ou numa lágrima de saudade? [4] Dentre as três soluções para o problema do erro listadas por Ferrater Mora a partir de Brochard, gostaríamos de salientar a de Parmênides e Spinoza, que “elimina o erro ao eliminar o não-ser”, confirmando o verso de Paul Éluard em L'amour la Poésie (Gallimard, 1929): "Jamais um erro as palavras não mentem". Além das palavras, por este caminho podemos adentrar o reino da imagem, que só existe em sua presença. [5] Apud André Breton et son temps, de Gérard Legrand (Soleil Noir, 1976). [6] Sobre Jean-Claude Silbermann, publicamos n’A Fresta o texto de André Breton Esse é o preço, disponível em: < https://www.sobinfluencia.com/post/esse-e-o-preco >; acesso em: 11 de janeiro de 2021. [7] Silbermann relata o episódio em entrevista a Ingrid Blanchard, no podcast Fragîle. [8] Esta renúncia nos conduziria obrigatoriamente ao happy end, no sentido de covardia, morte, anodização e neutralização do acontecimento. [9] Relaciona-se a isso a noção de “erros promissores” apresentada por Charles Pépin em As virtudes do fracasso [Les Vertus de l’échec, (Allary Éditions, 2016)]. [10] Creação é um conceito desenvolvido por Sergio Lima a partir do filósofo Huberto Rohden e do português arcaico. Em O rasgo absoluto (Debout sur l’oeuf, 2016), Sergio afirma que “a expressão ‘creação’ difere da ‘criação’, já que esta última se refere a uma produção em série ou mecanizada, sendo pois quantitativa. Enquanto que ‘creação’ implica em qualificação do único (...)”. [11] Pépin lembra-nos que uma aranha jamais erra ao tecer sua teia, o que parece indicar que a civilização pressupõe o erro. [12] Apenas a título de exemplo, lembramos que Jacques Lacan elabora seu conceito de lalíngua [lalangue] a partir de um lapso: em dado momento do seu seminário O saber do psicanalista, quando Lacan referia-se ao Vocabulário da psicanálise de Jean Laplanche e Jean-Bertrand Pontalis, disse Vocabulário da filosofia, confundindo-o com o Vocabulário técnico e crítico da filosofia, de André Lalande. É a partir deste sobrenome que Lacan chega à lalíngua. [13] N. do t.: No Vocabulário Bordas da filosofia [Vocabulaire Borda de philosophie], Gérard Legrand afirma “quanto ao fato de saber ‘porque’ o homem é (psicologicamente) suscetível de erro, tanto valeria perguntar porque ele é capaz de verdade”.






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