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escuto o andar das pulgas - j'entends les puces marcher

Atualizado: 26 de jan. de 2022


Colagem por Fabiana Gibim

Neste post, reproduzimos na íntegra um dos capítulos de nosso lançamento, Dias de Fome e Desamparo, de Neel Doff. Neste capítulo, vemos a pequena Keetje se deparar com o perigo permanente do abuso infantil, ao se lançar insone pelo amanhecer de Amsterdã, marcada pelas mordidas de pulgas que infestam seu cortiço. Leia abaixo em português e no original francês.

Adquira Dias de Fome e Desamparo, de Neel Doff.

 

Escuto o andar das pulgas


Habitávamos um cômodo único em um beco imundo de Amsterdã em que o sol nunca penetrava. Se, no inverno, o frio e a umidade eram glaciais, no verão o calor húmido nos aniquilava. Havia apenas uma alcova no andar, como nos barcos pesqueiros, mas era separada: vivíamos como num armário. Meus pais dormiam num compartimento abaixo, algumas das crianças num compartimento alto e, os outros, sobre palha espalhada pelo chão. Em um canto, um pequeno tonel servia como cadeira para toda a família. Em outros cantos, trapos sujos de criança e, atrás disso, os dejetos de toda uma casa miserável. O odor do cachimbo de meu pai e as emanações de dez pobres tornavam a atmosfera irrespirável. Numa noite de calor insuportável, eu estava estendida com três de nossas crianças em um beliche alto. As crianças dormiam, mas eu permanecia desperta: virava e me revirava, agitada. Estávamos deitados sobre sacos de tela grossa, cheios de aveia que, reduzida a pó e embebida em urina de criança, formava uma matéria imunda e corrosiva. A tela me irritava e queimava a pele, as pulgas me assediavam terrivelmente; eu sufocava, tinha machucados nas orelhas que me causavam alucinações. Chamei minha mãe silenciosamente, dizendo que não podia dormir porque escutava as pulgas andarem. - Você escuta as pulgas andarem? Ah! Criatura infantil! E você me acorda por isso? Você vai ficar quieta, não vai? Estou exausta e quero dormir. Eu me calei, mas continuei a me agitar. Não aguentando mais o desconforto, escorreguei até o chão, auxiliada por uma corda, me vesti e saí. Talvez fossem quatro horas da manhã. Na rua, somente alguns despertadores (eram as pessoas que, por cinco “cêntimos” por semana, despertavam os operários, fazendo um barulho que incomodava toda a vizinhança). Além deles, ninguém. Todas as lojas de Nieuwendyk estavam fechadas, a calma imperava por todos os lados. Ah! Como amava aquilo! Fui em direção ao Dique Alto que avançava pelo Y [1]. O Dique Alto era meu passeio favorito. Ali eu frequentemente matava aula com minha irmã Naatje. De ambos os lados, o Y estalava contra as margens, onde podia-se encontrar moluscos. Pouco mais longe ficava um oásis de árvores e ervas floridas. Quando cheguei ao dique, o ar fresco do largo e a brisa matinal causaram um tal alívio que eu abocanhei o ar e levantei os braços esticando os dedos, para sentir melhor o vento sobre minha pele irritada. Fiquei assim por muito tempo, embriagada, e continuei meu passeio buscando flores. Chegando junto às árvores me surpreendi ao encontrar, em meio às ervas, dentes-de-leão e margaridas fechadas. Nunca tinha visto flores noturnas e não conhecia esse fenômeno. Fiquei tão maravilhada que colhi algumas, como prova, e fui me sentar em um banco, próximo a um canteiro de obras. Um dos trabalhadores se aproximou e se sentou ao meu lado, dizendo: - Ah, menina! Já está acordada! E onde você vai? Eu lhe respondi dizendo que não conseguia dormir e por isso saí, mas eu não falei sobre as pulgas. Depois eu lhe perguntei por que é que os dentes-de-leão e as margaridas estavam fechadas. - Ah, meu Deus, que anjo! Elas dormem, minha querida, elas dormem. Dizendo isso, ele me levantou e me pôs em seu colo. Mal eu havia me sentido em seu colo, fui agarrada e jogada sobre as ervas, enquanto um homem saltava à garganta do indivíduo, gritando em sua cara: - Sodomita [2] imbecil! Você esteve na prisão por abusar de crianças, acaba de sair e olha só, já recomeça! E você, o que faz fora de casa a essa hora? Vá embora! Eu não esperei que ele repetisse. Corri e cheguei sem fôlego em casa, entrando de uma só vez. Minha mãe despertou de sobressalto: - O que aconteceu? O que aconteceu? – gritava. Mesmo com muito medo, não me dei conta do perigo do qual acabara de escapar. Assim, ao invés de contar o que havia acontecido, respondi: - Mãe, você sabe por que os dentes-de-leão e as margaridas se fecham à noite? Bem, é porque elas dormem! Como nós! - O quê? Do que está falando? Você saiu? - Sim, eu fui até o Dique Alto para me refrescar e buscar flores, mas elas estão dormindo. - Ah! Criatura infantil! Uma hora ela escuta as pulgas andarem e agora os dentes-de-leão dormem! E com tudo isso, você me acorda a todo instante. Eu estou exausta, exausta. Vá para seu catre e durma. Dormi, mas não sonhei. E quando minha pobre mãe voltou a acordar, eu saí delicadamente do beco, onde joguei bugalha [3] sobre a pedra de uma cisterna da rua.

 

j'entends les puces marcher


Nous habitions une chambre unique, dans une impasse gluante d’Amsterdam. Le soleil n’y pénétrait jamais et si, en hiver, le froid humide y était glacial, en été la chaleur moite nous anéantissait. Il n’y avait qu’une alcôve à l’étage, ainsi que dans les barques de pêcheurs, mais cloisonnée : on y était comme dans un placard. Les parents dormaient dans le compartiment du bas ; quelques-uns des enfants dans celui du haut, les autres à terre, sur une paillasse. Dans un coin, un petit tonneau servant de chaise percée à la famille ; dans d’autres, des langes d’enfant souillés, puis les détritus de tout un ménage miséreux. L’odeur de la pipe de mon père et les émanations de dix pauvres rendaient l’atmosphère irrespirable. Par une nuit d’effroyable chaleur, j’étais étendue avec trois de nos enfants dans la couchette du haut. Ils dormaient ; moi, je ne pouvais pas : je me tournais et retournais en m’agitant. Nous étions couchés sur des sacs en grosse toile, remplis de balle d’avoine qui, réduite en poudre et imbibée d’urine d’enfant, formait une matière immonde et corrosive. La toile m’agaçait et me brûlait la peau ; les puces me harcelaient affreusement ; j’étouffais ; j’avais des bruissements d’oreille qui me donnaient des hallucinations. J’appelai doucement ma mère et lui dis que je ne pouvais pas dormir parce que j’entendais les puces marcher. – Tu entends les puces marcher ? Ah ! cette créature enfantine ! Et tu me réveilles pour cela ? Tu vas te taire, n’est-ce pas ? Je suis éreintée et veux dormir. Je me tus, mais continuais à m’agiter. N’y tenant plus, je me laissai glisser à terre, en m’aidant de la corde, m’habillai et sortis. Il pouvait être quatre heures du matin. Il n’y avait dans la rue que les éveilleurs (c’étaient des gens qui, pour cinq « cents » par semaine, éveillaient les ouvriers, en faisant un vacarme qui troublait tout le voisinage). En dehors d’eux, personne ; tous les magasins du Nieuwendyk fermés ; le calme partout ; ah ! que j’aimais cela ! J’allai vers la Haute Digue qui avançait dans l’Y. La Haute Digue était ma promenade favorite ; j’y faisais souvent l’école buissonnière avec ma petite sœur Naatje. Des deux côtés, l’Y clapotait contre les berges ; on y trouvait des coquillages ; plus loin était une oasis d’arbres et d’herbe fleurie. Quand j’arrivai à la digue, l’air frais du large et la brise matinale me causèrent un tel soulagement qu’en jubilant je happais l’air : je levais les bras, en écartant les doigts, pour mieux sentir jouer le vent sur ma peau irritée. Je restai ainsi longtemps à me griser puis continuai ma promenade pour chercher des fleurs. Arrivée sous les arbres, je fus surprise de voir dans l’herbe les pissenlits et les pâquerettes fermés. Je n’avais jamais vu de fleurs la nuit et ne connaissais pas ce phénomène ; je fus si étonnée que je n’en cueillis aucune, comme prise de méfiance, et j’allai m’asseoir sur un banc. Il y avait à cet endroit un chantier où des hommes travaillaient ; un d’eux vint se mettre à côté de moi et dit : – Ah ! la grande fille qui est déjà dehors ! Et où vas-tu ? Je lui répondis que, ne pouvant dormir, j’étais sortie, mais je n’eus garde de parler des puces. Puis je lui demandai pourquoi les pissenlits et les pâquerettes étaient fermés. – Ah ! mon Dieu, quel ange ! Mais elles dorment, ma chérie, elles dorment. Ce disant, il me souleva et me mit à cheval sur ses genoux. J’y étais à peine que je me sentis empoignée, flanquée dans l’herbe, et qu’un homme sauta à la gorge de l’individu, lui hurlant à la face : – Ignoble sodomite! Tu as été en prison pour avoir abusé des petites filles et, à peine sorti, voilà que tu recommences ! Et toi, que fais-tu dehors à cette heure ? Décampe ! Je ne me le fis pas répéter. Je m’encourus et arrivai hors d’haleine chez nous, où j’entrai en coup de vent. Ma mère se réveilla en sursaut. – Qu’y a-t-il ? Qu’y a-t-il ? s’écria-t-elle. J’avais eu grand peur, mais ne me rendais pas compte du danger auquel je venais d’échapper : aussi, au lieu de raconter ce qui m’était arrivé, je lui dis : – Mère, sais-tu pourquoi les pissenlits et les pâquerettes sont fermés la nuit ? Eh bien ! elles dorment comme nous. – Quoi ? Que racontes-tu ? Tu es sortie ? – Oui, je suis allée à la Haute Digue pour me rafraîchir et chercher des fleurs, mais elles dorment. – Ah ! cette créature enfantine ! Tantôt elle entendait les puces marcher, maintenant les pissenlits dorment ! Mais avec tout cela, tu me réveilles à chaque instant, et je suis éreintée, éreintée. Allons, va dans ton lit et dors. Je n’y songeais pas, et quand ma pauvre mère s’assoupit à nouveau, je sortis doucement dans l’impasse, où je me mis à jouer aux osselets sur la pierre de la citerne.

 

Notas: [1] N.d.T.: O Rio Y (hoje grafado Ij) é um lago, antigamente uma baía, conhecido por ser a costa de Amsterdã [2] O termo “sodomita”, na Holanda, é correntemente usado como termo pejorativo. [3] N.d.E.: Bugalha é um jogo tradicional em muitos países, constituído por cinco peças, normalmente pedras polidas ou saquinhos costurados, com certo peso específico. Os jogadores lançam as peças do jogo no ar e tentam pegar o maior número possível, quem pegar o maior número de pedras é o vencedor.

 

Confira a live sobre Neel Doff, com Gustavo Racy e Fabiana Gibim, tradutor e editores da sobinfluencia.


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