top of page
Foto do escritorsobinfluencia

por que ler neel doff

Atualizado: 14 de jul. de 2021


Colagem por Rodrigo Corrêa
 

A este ponto, os seguidores da sobinfluencia já devem estar cientes de nossa próxima publicação, “Dias de Fome e Desamparo”, da escritora holandesa Neel Doff. Publicado em 1911, “Dias de Fome e Desamparo”, primeiro volume da trilogia que ficou conhecida como a “sinfonia da fome”, relata, de forma semi-autobiográfica, a vida de Keetje, uma menina holandesa, terceira de 9 filhos, que cedo experiencia as consequências da exploração capitalista sobre o subproletariado dos Países Baixos. Filha de um frísio e de uma belga de origem valã, resumindo, de certo modo, os antagonismos e identidades da região, Keetje, descobrindo cedo a paixão pela leitura, lê o mundo, tanto quanto possível, à luz dos contos de fadas em franco embate com a fome, tanto de corpo, quanto de alma. É neste embate que os canais de Amsterdã se tornam rios encantados à espera da embarcação de um príncipe, tanto quanto os obstáculos intransponíveis ao carrinho de mão que carrega as louças que uma pequena Keetje deve vender, perambulando pela capital. É assim, também, que os vestidos doados por uma tia, puídos pelo uso das prostituas de um prostíbulo de luxo, se tornam roupas de gala às crianças da família Oldema. Tudo e nada; a vida de Keetje é miserável, mas nunca deixa de ser mágica. É dolorosa, humilhante, sem deixar de ser potente e, por falta de palavra melhor, viva.

Em Por que ler os clássicos, Ítalo Calvino diz que, para entender o que seja um clássico, precisamos levar em conta, entre outras coisas, que toda “primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura” (2002, p.11). Isso parece ser pungente na obra de Neel Doff. Lê-la é, de algum modo, relê-la, uma vez que as vivências perante as quais somos postos nos remetem a uma realidade cotidiana: a miséria, a fome, o abandono. Sem recair no sentimentalismo, o livro de Doff nos põe diante do espelho. Se nele não vemos refletida nossa própria feição, vemos o signo da realidade que nos perfaz. É a exploração, o corpo-vida-mercadoria, a necessidade mais básica do corpo, a do alimento, que é posta em cena, privada de qualquer psicologismo, ainda que a vida psicológica de Keetje dê o tom de toda a novela. Não se trata, na obra de Doff, de retratar aquilo que sentimos, mas de construir um sentido para isto, por meio de uma intersubjetividade que padece e constrói o mundo sensível.

Toda minha obra nasceu de minha miséria” – diz a autora – “... que me amorteceu pelo resto da vida, me tornando sensível a todas as misérias do mundo”. A vida da e na miséria, que não é só econômica, mas da alma, não perfaz uma realidade alheia à cultura, mas algo dela integrante; o aparente contraponto da civilização sem o qual esta mesma não pode existir. Ser miserável é ser cindido, separado, estranhado da beleza do mundo em todas as suas formas. Nisto, outro ponto indicado por Calvino parece ser, também, representativo da obra de Doff: “Chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs” (2002, p.13). E o que são estes talismãs, senão peças imbuídas de magia que nos protegem e nos guiam pela floresta de símbolos, para evocar Baudelaire, de um mundo desencantado?

Keetje, “eu feminino” pseudo-biográfico de Doff, é a personagem predestinada a tornar esta obra em talismã. Por ela não nos é legado qualquer ensinamento, não somos pretensamente expostos a uma experiência, ou levados à empatia, como se pudéssemos nos colocar em seus tamancos (um símbolo importante do livro). Antes, somos transportados e remetidos a um tipo de grande sentimento, sentimento profundo, uma grande piedade relativa a tudo aquilo que é humano e, antes de tudo, àquilo que talvez seja o mais humano: o sofrimento. Atentemos ao termo “piedade”, pois ele não designa, aqui, unicamente aquele amor cristão, de uma mãe pelo Filho, por exemplo, figura abundante de nossa iconografia, mas algo mais, um sentimento de amor respeitosos, de calentura e afiliação equitativa, de onde, por aglutinação e tradução, o termo se tornou cristão. Ao invés da empatia, a simpatia; ao invés da caridade, a solidariedade. É nela, principalmente, que Keetje encontrará os rumos de sua vida, andando ombro-a-ombro com seus irmãos, apiedando-se para garantir-lhes a sobrevivência, e encontrando em seus colegas (seu primeiro marido, Fernand Brouez talvez seja a imagem mais acabada dessa solidariedade), ombros dispostos ao amparo mútuo, a trilharem um caminho compartilhado em direção à libertação.

Doff era leitora assídua de Saint-Simon e Saint-Beuve. Se, por um lado, nisto, talvez, se reflitam as demandas pela satisfação das demandas da classe trabalhadora, atestando o caráter socialista da obra de Doff (algo, também, atestado por suas relações com seus pares), por outro, temos o acolhimento da concepção literária como misto de intencionalismo e biografismo que seria, mais tarde, retomada por Jean-Paul Sartre na concepção da literatura como compromisso. Não porque guiada por uma ideia de tarefa ou missão, a literatura de Doff é, sem dúvida, uma de compromisso, na medida em que assume uma posição perante aquilo que se propõe a abordar. Essa atitude é central na composição do texto doffiano: embora geralmente alocada na tradição naturalista, Doff cinde com os diversos preceitos estilísticos de tal escola, negando-se em construir uma visão pretensamente objetiva da realidade social. Nisto, sua posição como narradora feminina é de fundamental importância, pois, em se assumindo de tal modo, rompe com um discurso corrente então, em que narradores masculinos assumiam subjetividades femininas de modo distanciado. Nisto, insere na tradição literária um “eu narrativo feminino”, algo raro, senão praticamente inexistente então, ao menos aos moldes da narrativa biográfica (ou semi). É ciente desta exclusividade e deste caráter particular que Henry Poulaille verá em Doff um quase arquétipo da literatura proletária da qual ele mesmo foi fundador.

Perguntar-se por que ler Doff hoje é uma pergunta que demanda, antes de tudo, perguntar-se por que lemos. Lemos Doff porque é preciso. E voltaremos a lê-la porque, como os antigos talismãs, ela nos dá algo mágico que nos permite ocupar as encruzilhadas desta grande ruína que á a cultura.


REFERÊNCIAS CALVINO, I. 2002. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia de Bolso. LEFÈVRE, F. 1929. “Une heure avec Neel Doff”. Les Nouvelles Littéraires, 29 de dezembro.

(tradução disponível em duas partes nos thumbnails ao fim da página)

 

Reveja a live entre Gustavo Racy e Fabiana Gibim, editores da sobinfluencia, sobre "Dias de Fome e Desamparo".


55 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page