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marx e o especismo estranhado - parte I

Atualizado: 29 de jun. de 2021


Collage por Guy Maddin

Último Crime: A intenção dessa coluna - que se pretende semanal - é trazer material crítico, preferencialmente inédito em nossa língua, para contribuir com as discussões que permeiam seres humanos e não humanos e sua luta pelo fim da exploração do trabalho, sua busca por autonomia e a superação do modo de produção em que [sobre]vivemos. Os textos que pretendemos publicar neste espaço examinam as diferentes relações estabelecidas, na história e no momento atual, entre os seres (animais) humanos e os seres (animais) não-humanos, dentro da perspectiva dialética, materialista histórica e anticapitalista.

 
“O termo especismo (...) é definido (...) como: a discriminação ou a exploração praticada por seres humanos à outras espécies animais, com base no pressuposto hegemônico da humanidade.”

 

Marxismo e o Especismo Estranhado

Poucas controvérsias acadêmicas contemporâneas da esquerda política são mais densas do que as envolvendo a visão de Karl Marx sobre o status dos animais na sociedade humana. Numerosos estudiosos que militam pelos direitos animais - incluindo alguns ecossocialistas - alegam que o filósofo alemão era especista em seus primeiros escritos. Argumentam também que, apesar de sua posterior adesão às visões darwinianas tanto Marx, quanto Engels, nunca transcenderam completamente uma visão profundamente fundamentada no especismo; que, por conseguinte, teria se entranhado, como um todo, ao materialismo histórico destes.

Tais críticos concentram suas objeções principalmente nos Manuscritos Econômicos Filosóficos de 1844, alegando que Marx apresenta uma perspectiva, ao mesmo tempo, antropocêntrica e dualista - inaugurando um abismo e não em uma continuidade - entre animais não humanos e animais humanos; o que justificaria, de maneira ontológica, uma abordagem marcada pela exploração e instrumentalização das relações humano-animal, ignorando ou negando o sofrimento destes últimos ao ponto de deixar de notar condições básicas para a existência dessas vidas.

Um ecossocialista pioneiro, Ted Benton, oferece uma crítica a este respeito. Benton argumenta que a abordagem dominante de Marx na relação humano-animal, particularmente em seus primeiros escritos, não era apenas especista, mas - em virtude de seu humanismo antropocêntrico - também "um exemplo fantástico de especismo narcisista". A visão de Marx, acrescenta Benton, tem raiz no dualismo cartesiano que separa radicalmente o ser humano (mente) do animal (máquina); sustenta ainda que Marx via animais não humanos como seres de capacidades e comportamentos permanentemente "fixos". Além disso, ao descrever como o estranhamento em relação ao trabalho reduziu o ser humano a uma condição animal, Benton afirma que Marx deprecia a vida destes últimos [1].

Outros estudiosos críticos da questão animal na obra de Marx têm seguido seu exemplo. Renzo Llorente afirma que "certo especismo [era] constitutivo do pensamento de Marx" e que toda sua teoria de trabalho estranhado tem por base "uma divisão entre animais humanos e não humanos" [2]. John Sanbonmatsu alega que Marx ajudou a promover “o extermínio, no reino do pensamento da existência sensual e das experiências, de bilhões de outros seres sofredores da Terra” [3]. Katherine Perlo insiste que Marx cometeu o que ela chama de "violência ideológica" contra animais não humanos. David Sztybel, por sua vez, afirma que Marx considerava os animais "meramente instrumentos valiosos", assim como qualquer outra máquina [4].

O termo especismo, cunhado por Richard Ryder em 1970, é definido no Oxford English Dictionary de 1985 como: "discriminação ou exploração de espécies animais, com base no pressuposto hegemônico da humanidade" [5]. Ora, enquanto o especismo é formalmente definido como uma diferenciação específica entre humanos e animais, que leva à discriminação e exploração de outras espécies pelos seres humanos, há uma tendência de alguns estudiosos da questão animal a procurar expandir o conceito para aplicá-lo à qualquer diferenciação entre a espécie humana e outras espécies animais, quer seja para justificar uma discriminação e abuso ou não [6].

Benton declara que Marx traça um forte "contraste entre o humano e o animal [que] corta a base ontológica para (...) uma análise crítica das formas de sofrimento compartilhadas tanto pelos animais, quanto pelos humanos" [7]. Aqui a acusação não é de que Marx alguma vez tenha procurado justificar diretamente o sofrimento dos animais, para a qual não há evidências, mas simplesmente que seu humanismo minaria toda a base ontológica necessária para o reconhecimento do sofrimento animal. Para Benton o "humanismo é especismo". Afirmação que se dá em exata oposição à noção marxiana de que: "ao humanismo plenamente desenvolvido podemos chamar naturalismo" [8].

O que é mais notável sobre estas críticas a Marx como pensador especista é que elas, tipicamente, dependem de um punhado de frases soltas, de um ou dois textos retirados de seu contexto, etc. Estes pensadores continuam ignorando a argumentação marxiana mais ampla, além de sua obra como um todo.

A isto se soma a negligência em relação ao conhecimento das condições históricas, influências intelectuais e debates a partir dos quais Marx tratou a dialética homem-animal - ainda que este seja um tema crucial para qualquer compreensão significativa de seu pensamento. O que deveria incluir: (A) seus estudos sobre Epicuro e Lucrécio; (B) seu conhecimento do debate alemão acerca da agência [autonomia] e psicologia animal, especialmente o trabalho de Hermann Samuel Reimarus; (C) sua crítica de René Descartes sobre animais e máquinas; (D) seu uso da noção de espécie de Ludwig Feuerbach; (E) sua incorporação da teoria evolutiva de Charles Darwin; e (F) seu desenvolvimento do conceito de metabolismo sócio-ecológico baseado em Justus von Liebig [e outros]. Afirmações de que o materialismo histórico clássico era especista também minimizam necessariamente os estudos de Engels quanto a ecologia animal-humana.

É importante reconhecer que as discussões de Marx sobre os animais foram principalmente históricas, materialistas e de orientação natural-científica. Portanto, os exames deste e de Engels sobre a posição dos animais na sociedade não foram dirigidos para questões de filosofia moral, como é o caso da maioria de seus críticos. Da mesma forma, o valor do materialismo histórico clássico, nesta seara, esta em nos orientar - concretamente - em meio as relações estabelecidas entre seres humanos e animais, particularmente no que diz respeito à evolução das condições ecológicas. Incluindo aí o que Marx chama de "degradação" da vida animal sob o capitalismo [9].

Embora obviamente não tenha sido o foco principal de seu trabalho - que foi dedicado a desenvolver uma crítica ao modo de produção capitalista -, a preocupação e afinidade para com os animais não está ausente da análise de marxiana [10]. Em geral, sua consideração da dialética homem-animal foi afetada por uma concepção da especificidade histórica das relações homem-animal, associada a diferentes modos produtivos. Isto deu origem, posteriormente, ao conceito de "especismo estranhado" [alienated speciesism] pelo cientista político Bradley J. Macdonald a partir de sua crítica marxista, decorrente da alienação capitalista da natureza [11].

[continua]

 

Notas: [1] Ted Benton, “Humanism = Speciesism: Marx on Humans and Animals,” Radical Philosophy 50 (1988): 4, 6, 8, 11–12; Ted Benton, Natural Relations: Ecology, Animal Rights and Social Justice (London/New York: Verso, 1993), 32–35. [2] Renzo Llorente, “Reflections on the Prospects for a Non-Speciesist Marxism,” in Critical Theory and Animal Liberation, ed. John Sanbonmatsu (Lanham, Maryland: Rowman and Littlefield, 2011), 126–27. Llorente, embora argumentando que o próprio Marx era especista, nega que o especismo é inerente ao marxismo. [3] John Sanbonmatsu, The Postmodern Prince (New York: Monthly Review Press, 2004), 215–18; Sanbonmatsu, introduction to Critical Theory and Animal Liberation, 17–19. [4] Katherine Perlo, “Marxism and the Underdog,” Society and Animals 10, no. 3 (2002): 304; David Sztybel, “Marxism and Animal Rights,” Environmental Ethics 2, no. 2 (1997): 170–71. [5] Richard D. Ryder, “Speciesism,” in Encyclopedia of Animal Rights and Animal Welfare, ed. Marc Bekoff (Westport, Connecticut: Greenwood Press, 1998), 320. [6] Para uma crítica, veja Bradley J. Macdonald, “Marx and the Human/Animal Dialectic,” in Political Theory and the Animal/Human Relationship, eds. Judith Grant and Vincent G. Jungkuz (New York: State University of New York Press, 2011), 36. [7] Benton, Natural Relations, 42. [8] Benton, “Humanism = Speciesism,” 1; Karl Marx, Early Writings (London: Penguin, 1970), 348. [9] Marx, Early Writings, 239. [10] Alguns críticos destacam, fora do contexto, as críticas de Marx e Engels à Sociedade para a Preservação dos Animais como prova de sua falta de simpatia pelos animais. Para uma poderosa réplica, veja Ryan Gunderson, “Marx’s Comments on Animal Welfare,” Rethinking Marxism 23, no. 4 (2011): 543–48. [11] Macdonald, "Marx and the Human/Animal Dialectic", 41-42. Macdonald distingue entre o que ele chama de "dualismo dialético" - processos reflexivos de "objetivação" ou "externalização" - inerente à relação humana com a natureza, e o "especismo estranhado" característico do capitalismo. O especismo estranhado, nestes termos, é apenas o outro lado do ser alienado das espécies. Sobre os conceitos de objetivação e externalização (e a distinção entre estes e a alienação de Marx), veja Georg Lukács, History and Class Consciousness (London: Merlin Press, 1971), xxxvi, and The Young Hegel (Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1975), 537–67.

 

John Bellamy Foster (1953-) é professor de sociologia da Universidade de Oregon e editor da Monthly Review. Sua pesquisa, de início, centrou-se no estudo de economias políticas marxistas e teorias do desenvolvimento capitalista, com foco em Paul Sweezy e a theory of monopoly de Paul Baran.

Brett Clark é professor de Sociologia e estudos ambientais na Universidade de Utah. Sua pesquisa se concentra na economia política da mudança climática global e na filosofia, história e sociologia da ciência. Além disso, leciona cursos no Departamento de Sociologia, no Programa de Pós-Graduação em Humanidades Ambientais e no Programa de Estudos Ambientais.

 

Tradução de Alex Peguinelli. Para comentários/críticas/sugestões: antiespecismocritico@gmail.com

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