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marx e o especismo estranhado - parte II

Atualizado: 29 de jun. de 2021


Répétitions, Max Ernst, 1922

Último Crime: A intenção dessa coluna - que se pretende semanal - é trazer material crítico, preferencialmente inédito em nossa língua, para contribuir com as discussões que permeiam seres humanos e não humanos e sua luta pelo fim da exploração do trabalho, sua busca por autonomia e a superação do modo de produção em que [sobre]vivemos. Os textos que pretendemos publicar neste espaço examinam as diferentes relações estabelecidas, na história e no momento atual, entre os seres (animais) humanos e os seres (animais) não-humanos, dentro da perspectiva dialética, materialista histórica e anticapitalista.

 
“Longe de promover uma abordagem instrumentalista dos animais, o que Marx enfatiza é a relação material que rege a existência entre seres humanos e todas outras espécies.”
 

[...]

Epicuro e a dialética humano-animal

O pensamento materialista histórico de Marx fora profundamente afetado por seus estudos sobre Epicuro - tema de sua tese doutoral [12]. Central para o epicurismo é a perspectiva protoevolucionária e a ênfase na estreita relação material entre seres humanos e outros animais, vez que toda vida emerge da terra. Tal qual os humanos, animais são vistos como seres sencientes, ou seja, capazes de experimentar dor e prazer [13]. Epicuro também aborda a destruição ambiental, incluindo a morte de espécies [14]. Como disse Marx, para o filósofo clássico, "o mundo é meu amigo" [15].

Ironicamente, dada a ênfase do materialismo de Epicuro em uma forte relação homem-animal e a influência dessas questões sobre Marx, tanto Benton como Sztybel - em suas críticas - optaram por citar, sem aludir ao contexto em que foi escrita, uma declaração dos cadernos de anotações sobre Epicuro de Marx, em que este declara: "Se um filósofo não achar ultrajante considerar o ser humano como um animal, não pode ser levado ao entendimento de nada" [16]. Para Benton, esta é uma evidência clara e convincente de um "dualismo humano/animal extremo e inequívoco" por parte de Marx [17]. Similarmente, para Sztybel, a afirmação é uma indicação de que Marx, nesta fase inicial, carece de uma perspectiva naturalista e adota uma abordagem geral instrumentalista em relação aos animais [18].

Nenhuma das críticas, entretanto, examina a concretude real na qual esta frase apareceu - isto é, a crítica marxiana ao ataque de Plutarco ao materialismo epicurista por rejeitar uma religião baseada no medo. Assim, na frase imediatamente anterior, que nem Benton nem Sztybel citam, Marx comunica o que considera ser o ponto de vista de Plutarco: "Pois no medo, e de fato um medo interior, inextinguível, o ser humano passa a ser determinado como animal [desprovido de razão e liberdade], e é absolutamente indiferente ao animal como ele é mantido sob controle" [19]. Marx se opõe, portanto, à polêmica contra Epicuro estabelecida por Plutarco em “Moralia” (coleção de ensaios e discursos transcritos), mais especificamente em “That Epicurus Actually Makes a Pleasant Life Impossible” e “Against Colotes” (Colotes de Lampsacus foi um dos principais discípulos de Epicuro, N.d.T.) [20]. Nesses trabalhos, e particularmente no primeiro deles, Plutarco, seguindo Platão, afirma que a religião das massas deveria ter como base o medo, incluindo o medo da vida após a morte (“The Hell of the Populace”) [21].

O intenso conflito de Marx com as ideias de Plutarco, no contexto do ataque deste último à crítica epicurista da religião e da imortalidade, é a base de um apêndice de sua dissertação (intitulado “Critique of Plutarch’s Polemic Against the Theology of Epicurus” [“Crítica da Polêmica de Plutarco contra a Teologia de Epicuro”, em tradução livre] - apenas um fragmento do qual sobrevive até hoje), em que são apresentadas as mesmas observações críticas. O argumento de Marx é que a razão permite ao ser humano transcender o que Plutarco vê como o "medo interior, presente nos animais, e que não pode ser extinto" [22]. Aqui, Marx, seguindo Epicuro, reconhece o liame entre o sofrimento animal e o sofrimento humano. Também destaca, em oposição a Plutarco, a base "corpórea" [“corporeal”] dos humanos, unindo-os a outros animais - uma vez que os seres humanos, assim como outros animais, não têm almas imortais - enquanto coloca em evidência o potencial da humanidade para se elevar pela razão prática, i.e., pela existência material autoconsciente [23].

A falta de conhecimento do materialismo de Epicuro por críticos dos direitos animais afeta os comentários de Marx também de outras maneiras. Numa tentativa de demonstrar que Marx vê os animais de forma puramente instrumental, Sztybel cita a afirmação de Marx nos Manuscritos Econômicos Filosóficos de que "a natureza também, tomada abstratamente, para si mesma e rigidamente separada do homem, não é nada para o ser humano". Não sabendo que isto é uma alusão a uma das principais doutrinas de Epicuro, Sztybel conclui que Marx diz que a natureza, incluindo a vida animal, é "na melhor das hipóteses, apenas de valor instrumental" [24].

No entanto, nenhum indivíduo conhecedor da filosofia clássica na época de Marx deixou de reconhecer na afirmação marxiana a famosa declaração de Epicuro (que o filósofo alemão citou por toda sua vida): "A morte não é nada para nós. Pois o que foi dissolvido não tem sentido-experiência, e o que não tem sentido-experiência não é nada para nós" [25].

Assim, ao escrever que a natureza separada da humanidade, ou seja, fora da interação sensual e material, não era nada para a humanidade, Marx estava destacando o fato de que os seres humanos eram seres objetivos, corpóreos, sensuais - o próprio ponto de sua crítica a Hegel. Removido das conexões sensuais com a terra, que definem os seres humanos e todos os seres corpóreos como seres vivos, capazes de sofrer, era óbvio que a natureza, nos termos de Marx (assim como em Epicuro), não seria "nada para o ser humano". Apartados da natureza, os humanos, assim como todos outros animais, não têm existência alguma.

Longe de promover uma abordagem instrumentalista dos animais, o que Marx enfatiza é a relação material que rege a existência entre seres humanos e todas outras espécies. Ao invés de representar uma separação entre humanos e outros animais ou uma justificação moral para o uso utilitário destes últimos, a afirmação discutida foi uma expressão da existência compartilhada enquanto seres físicos. Como Joseph Fracchia argumenta, para Marx, foi a organização corpórea humana que, ao mesmo tempo, identifica e distingue os seres humanos de todos os outros animais [26].

De fato, ao invés de negar o vínculo entre seres humanos e outros animais, Marx escreveu em Sobre a Questão Judaica (1843), antes de seus Manuscritos Econômicos Filosóficos, que "a visão da natureza que cresceu sob o regime da propriedade privada e do dinheiro um verdadeiro desprezo, uma degradação prática". Neste sentido, para Thomas Müntzer é inaceitável que "todos seres vivos tenham se tornado propriedade: os peixes na água, os pássaros no ar, as plantas na terra - todos estes seres também devem se tornar livres" [27].

[continua]

 

Notas: [12] Marx and Engels, Collected Works, vol. 1 (New York: International Publishers, 1975), 25–107, 403–509; Epicurus, The Epicurus Reader (Indianapolis: Hackett Publishing, 1994); Lucretius, On the Nature of the Universe (Oxford: Oxford University Press, 1997). On Marx and Epicurus, see John Bellamy Foster, Marx’s Ecology (New York: Monthly Review Press, 2000), 21–65. [13] Alma Massaro, “The Living in Lucretius’ De rerum natura: Animals’ ataraxia and Humans’ Distress,” Relations 2, no. 2 (2014), http://ledonline.it/Relations. On Epicurus’s protoevolutionary views, see John Bellamy Foster, Brett Clark, and Richard York, Critique of Intelligent Design (New York: Monthly Review Press, 2008), 49–64. [14] On the Nature of the Universe, bk. VI, 179–217; Jack Lindsay, Blast Power and Ballistics: Concepts of Force and Energy in the Ancient World (London: Frederick Muller, 1974), 379–81; H. S. Commager, Jr., “Lucretius’s Interpretation of the Plague,” Harvard Studies in Classical Philology 62 (1957): 105–18. [15] Karl Marx and Frederick Engels, Collected Works, vol. 5 (New York: International Publishers, 1975), 141. [16] Marx and Engels, Collected Works, vol. 1, 453. [17] Benton, Natural Relations, 35. [18] Sztybel, “Marxism and Animal Rights,” 171. [19] Marx and Engels, Collected Works, vol. 1, 75, 448, 452–53. [20] Plutarch, Moralia, vol. 14, Loeb Cla ssical Library (Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1967), 129–47, (pp. 1104–1106). [21] Marx and Engels, Collected Works, vol. 1, 74. Para a oposição de Epicuro à Platão, Benjamin Farrington, The Faith of Epicurus (London: Weidenfeld and Nicolson, 1967). [22] Marx and Engels, Collected Works, vol. 1, 74–76. [23] Marx, Early Writings, 389–90. [24] Sztybel, “Marxism and Animal Rights,” 173–74. [25] Epicurus, The Epicurus Reader, 32; Frederick Engels to Friedrich Adolph Sorge, March 15, 1883, in Karl Marx Remembered, ed. Philip S. Foner (San Francisco: Synthesis Publications, 1983), 28. See also Foster, Marx’s Ecology, 77–78. [26] Joseph Fracchia, “Organisms and Objectifications: A Historical-Materialist Inquiry into the ‘Human and Animal,’” Monthly Review 68, no. 10 (March 2017): 1–3. [27] Marx, Early Writings, 239; Thomas Müntzer, Collected Works (Edinburgh: T and T Clark, 1988), 335.

 

John Bellamy Foster (1953-) é professor de sociologia da Universidade de Oregon e editor da Monthly Review. Sua pesquisa, de início, centrou-se no estudo de economias políticas marxistas e teorias do desenvolvimento capitalista, com foco em Paul Sweezy e a theory of monopoly de Paul Baran.

Brett Clark é professor de Sociologia e estudos ambientais na Universidade de Utah. Sua pesquisa se concentra na economia política da mudança climática global e na filosofia, história e sociologia da ciência. Além disso, leciona cursos no Departamento de Sociologia, no Programa de Pós-Graduação em Humanidades Ambientais e no Programa de Estudos Ambientais.

 

Tradução de Alex Peguinelli. Para comentários/críticas/sugestões: antiespecismocritico@gmail.com


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