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marx e o especismo estranhado [parte V, b]

Atualizado: 29 de jun. de 2021


Le Déclin de la société bourgeoisie - Andre Breton - 1935-1940

último crime: A intenção dessa coluna - que se pretende semanal - é trazer material crítico, preferencialmente inédito em nossa língua, para contribuir com as discussões que permeiam seres humanos e não humanos e sua luta pelo fim da exploração do trabalho, sua busca por autonomia e a superação do modo de produção em que [sobre]vivemos. Os textos que pretendemos publicar neste espaço examinam as diferentes relações estabelecidas, na história e no momento atual, entre os seres (animais) humanos e os seres (animais) não-humanos, dentro da perspectiva dialética, materialista histórica e anticapitalista.

 
“Esta ruptura [na relação humano/natureza/animais] assume um caráter irônico, aponta Macdonald, uma vez que ‘quanto mais seus corpos desmembrados se cruzam com os nossos’ via circulação de mercadorias como carne, couro, cola, etc. ‘mais [estes animais] acabam desaparecendo da vida humana’. Esta constatação, associada ao especismo estranhado sob o modo de produção capitalista, é semelhante à dinâmica que acompanha a alienação humana para com a natureza em geral. ”
 

Uma vez mais, ao decorrer da semana, pudemos assistir o antiespecismo se aliar ao racismo - em uma notícia que sequer merece ser mencionada -, escancarando o ecofascismo presente em discursos que buscam neutralizar a carga de sofrimento animal, acrescentando sofrimento à seres humanos em condições socialmente marginalizadas, seja em decorrência de sua classe ou de sua raça. Escolha que, ao contrário de ser neutra ou aleatória, aponta - e coloca em evidência - as principais contradições evocadas por nosso modo de produção e toda sorte de discriminações/privilégios que este cria/legitima. Diante do especismo estranhado presente no discurso hegemônico, a coluna último crime vem, desde que teve início, tentando colaborar para o pensamento que tem uma única finalidade: uma revolução total e objetiva no modo de (re)produção da vida na sociedade em que vivemos, junto de nossos semelhantes (humanos ou não). Uma revolução que, riscando a história a contrapelo, seja capaz de trazer para o centro da ação e da atividade cotidiana revolucionária toda sorte de figuras marginalizadas.

Hoje, então, apresentamos a última parte do texto escrito por John Bellamy Foster e Brett Clark, aqui traduzido como "Marx e Especismo Estranhado", e queremos, com o levantamento crítico dessas questões, que o veganismo se faça, antes de tudo, antifascista, antiracista e, acima de tudo, anticapitalista!

 

[parte V, b - parte final]


Hoje em dia, métodos capitalistas para acelerar e mercantilizar de maneira mais efetiva a reprodução natural [animal] também incluem o uso de hormônios de crescimento, operações maciças de alimentação concentrada [N.d.T.: que pode ser realizada, inclusive, mecanicamente] e o uso extensivo de antibióticos, com intuito de tratar doenças surgidas das condições em que estes animais são criados. Esse tipo de abordagem [manipulativa] se tornou mais intensiva e difundida na produção animal para carne, laticínios em geral, como no caso de vacas, ovelhas, galinhas, suínos, e peixes [85]. Como salienta o sociólogo ambientalista Ryan Gunderson, a vasta expansão de animais confinados à produção industrializada está diretamente ligada à busca incessante da acumulação de capital [86].

Por meio desta análise, Marx detalhou como o desenvolvimento capitalista criou uma mediação alienada entre o humano e a natureza, neste caso em particular, [entre o humano e] espécies animais não-humanas. Nesse sentido, esse especismo estranhado reduz animais à máquinas em fazendas industriais. Além do mais, em todo o mundo, animais enfrentam o extermínio devido à destruição de seu habitat, mudanças climáticas e acidificação dos oceanos - questões associadas ao funcionamento geral do capitalismo. Esta ruptura [na relação humano/natureza/animais] assume um caráter irônico, aponta Macdonald, uma vez que "quanto mais seus corpos desmembrados se cruzam com os nossos" via circulação de mercadorias como carne, couro, cola, etc. "mais [estes animais] acabam desaparecendo da vida humana" [87]. Esta constatação, associada ao especismo estranhado sob o modo de produção capitalista, é semelhante à dinâmica que acompanha a alienação humana para com a natureza em geral. Como indica Raymond Williams, quanto mais profunda a alienação em relação à natureza, mais intensa a interação real com o mundo biofísico em consideração aos recursos utilizados na produção de mercadorias e na geração de resíduos que poluem ecossistemas [88].

Estas amplas preocupações em relação ao funcionamento do capitalismo - condições ecológicas e especismo estranhado - estão interligadas à consideração de Marx a respeito do metabolismo da natureza e sociedade. Nos anos 1850 e 1860, Liebig, o principal químico alemão à época, explicou que as técnicas britânicas de alta agricultura estavam violando a Lei de Compensação devido ao envio de culturas para locais distantes, resultando na falha em devolver ao solo nutrientes que haviam sido removidos. Este sistema de plantio levou à espoliação de terras agrícolas. Marx retomou a análise de Liebig, incluindo a concepção de relações metabólicas. Assim, desenvolveu uma abordagem metabólica socioecológica ainda mais rica, dando um especial enfoque à fenda [ou ruptura], pela qual um metabolismo social alienado, em contradição ao metabolismo universal da natureza, perturba/rompe ciclos, sistemas e fluxos naturais [89].

Com a revogação das Leis do Milho [N.d.T.: tarifas e restrições elaboradas em 1815, na Inglaterra, para proteger agricultores ingleses das importações estrangeiras de grãos a baixo custo], que abriram o livre comércio em 1846, Marx identificou diversas tendências dentro do que chamou de "novo regime" [new regime] de produção alimentar capitalista. O que inclui um aprofundamento da ruptura metabólica no ciclo de nutrientes do solo, aumentando a escala da expropriação mecanizada de animais - eles próprios tratados como máquinas (ou peças de maquinaria) [90]. Houve um impulso para mudar a Grã-Bretanha para uma maior produção de carne e laticínios, como parte do sistema de rotação de Norfolk [N.d.T.: sistema rotativo que permite o plantio de quatro culturas simultaneamente, sem que nenhuma parte do solo fique em descanso; nesse sistema de plantio, diferentes tipos e quantidades de nutrientes são retirados do solo à medida que as plantas crescem] (e outras rotações similares), que serviam principalmente à população mais rica. Como resultado, mais terra foi convertida para pastagem e para o cultivo de forrageiras, como leguminosas, ao invés de cereais e grãos, por exemplo, enquanto também se expandia o impacto da atividade de pastoreio.

Com mais animais de fazenda na terra, menos trabalhadores eram necessários. Sob este novo regime alimentar, a produção de trigo na Grã-Bretanha caiu, levando à importação maciça de grãos para alimentar a população em geral [91]. Terras irlandesas foram convertidas em pastagens para criar porcos, gado e ovelhas, deslocando grande parte da população rural [92]. Novos Leicesters [espécie de ovino] foram importados para a Irlanda para se reproduzir com ovelhas nativas e desenvolver uma variedade [de animais] que proporcionava maiores lucros ao capital, sem qualquer consideração pela saúde desses animais [93]. Práticas agrícolas intensivas expropriaram nutrientes do solo na Grã-Bretanha e no exterior, dando origem à crescente dependência da importação de insumos agrícolas e de grãos. Aqui, a fenda metabólica expandiu-se: roubou nutrientes de terras distantes na forma de cereais e grãos para consumo humano; guano para reparar a terra degradada; colza para produção de bolo de óleo para alimentar animais de fazenda - enriquecendo seus excrementos para que sejam utilizados posteriormente como estrume [94].

Enquanto Lavergne celebrava a imposição de operações agrícolas industrializadas que intensificam a produção animal para carne e laticínios, Marx sugere um sistema de agricultura baseado em grãos como mais eficiente para fornecer alimentos para a população como um todo, além de garantir a vitalidade da terra a longo prazo [95]. A crítica de Marx ao especismo estranhado, associado à degradação de seres humanos e animais não humanos, pode ser considerada parte de sua crítica ecológica mais ampla, ligada à ruptura metabólica [96]. A ruptura metabólica não se limita à natureza externa, mas abrange a expropriação de seres corpóreos. Assim, animais não humanos são reduzidos a máquinas em um sistema baseado na expansão constante, ignorando e aumentando seu sofrimento. De fato, quando surgiu a questão animal, a análise marxiana transcendeu o quadro meramente ecológico, demonstrando afinidade [affinity] com animais não humanos que, para Marx, são seres limitados, objetivos, "sofredores" [“suffering beings”] como os próprios humanos [97].

Marx nunca perdeu sua estreita conexão com o materialismo epicuriano. Os Epicuristas ensinaram que o sofrimento animal e o sofrimento humano são iguais, vez que pertencem a seres [objetivamente] naturais. Nos livros I e II de De Rerum Natura, o grande poeta romano Lucrécio apresentou cinco ataques às práticas sacrificiais, começando com a descrição do sacrifício, por Agamemnon, de sua filha Iphigenia ao altar dos deuses, e terminando, como que para enfatizar a afinidade humana com animais, com a cena de uma vaca enlutada:

For oft in front of noble shrines of gods / A calf falls slain beside the incensed altars, / A stream of hot blood gushing from its breast. / The mother wandering through the leafy glens / Bereaved seeks on the ground the cloven footprints. / With questing eyes she seeks if anywhere / Her lost child may be seen; she stands, and fills with moaning / The woodland glades; she comes back to the byre / Time and again in yearning for her calf [98].

[tradução livre e nem um pouco atenta à métrica: muitas vezes em frente ao nobre santuário dos deuses / um bezerro cai morto ao lado dos altares incensados, / com um fluxo de sangue quente jorrando de seu peito. / a mãe vagando sobre os vales frondosos / enlutada, procura no chão as pegadas cindidas. / com olhos de questionamento ela procura motivos em algum lugar / seu filho perdido pode ser visto; ela se levanta e se enche de gemidos / [d]a clareira na floresta; ela retorna ao estábulo / de tempos em tempos com saudades de seu filho].

Ninguém poderia deixar de reconhecer de tal passagem que o sofrimento humano e o sofrimento animal, como o próprio Marx observou, se assemelham. A luta revolucionária é necessária para transcender o estranhamento em relação à natureza associado ao capitalismo. Marx reconheceu que o desenraizamento do especismo estranhado é parte desta luta. Para que o "humanismo plenamente desenvolvido" se torne "naturalismo", é necessário forjar uma nova dialética homem-animal, fundamentada no princípio epicuriano de que "o mundo é meu amigo". Ecoando Müntzer, Marx declara que "todos os seres vivos também devem se tornar livres” [all living things must also become free] [99].

 

Notas: [85] Para discussões úteis sobre estas questões, ver William D. Heffernan, "Concentração de Propriedade e Controle na Agricultura", em Hungry for Profit, eds. Fred Magdoff, John Bellamy Foster e Frederick H. Buttel (Nova Iorque: Monthly Review Press, 2000), 61-75; Tony Weis, The Global Food Economy (Nova Iorque: Zed Books, 2007); Tony Weis, The Ecological Hoofprint (Nova Iorque: Zed Books, 2013); Stefano B. Long, Rebecca Clausen, e Brett Clark, The Tragedy of the Commodity (New Brunswick: Rutgers University Press, 2015); Stefano B. Longo, Rebecca Clausen, e Brett Clark, "Capitalism and the Commodification of Salmon" (Capitalismo e a Comodificação do Salmão): From Wild Fish to a Genetically Modified Species", Monthly Review 66, no. 7 (2014): 35-55. [86] Ryan Gunderson, "From Cattle to Capital": Exchange Value, Animal Commodification and Barbarism", Critical Sociology 39, no. 2 (2011): 259-275; ver também David Naguib Pellow, Total Liberation (Minneapolis: University of Minnesota Press, 2014). [87] Macdonald, “Marx and the Human/Animal Dialectic,” 41. [88] Raymond Williams, Problems in Materialism and Culture (London: Verso, 1980), 83. [89] John Bellamy Foster, “Marx and the Rift in the Universal Metabolism of Nature,” Monthly Review 65, no. 7 (2013): 1–19; John Bellamy Foster and Brett Clark, “The Robbery of Nature,” Monthly Review 70, no. 3 (2018): 1–20. [90] Foster, “Marx as a Food Theorist,” 12–13; John Bellamy Foster and Paul Burkett, Marx and the Earth (Leiden: Brill, 2016), 29–31. [91] Mette Erjnaes, Karl Gunnar Persson, and Søren Rich, “Feeding the British,” Economic History Review 61, no. 1 (2008): 147. [92] Karl Marx and Frederick Engels, Ireland and the Irish Question (Moscow: Progress Publishers, 1971), 121–22. [93] Kohei Saito, Karl Marx’s Ecosocialism (New York: Monthly Review Press, 2017), 209. [94] Foster, “Marx as a Food Theorist.” [95] Foster, “Marx as a Food Theorist”; Marx, Capital, vol. 1, 637–38; Marx, Capital, vol. 2, 313–15; Karl Marx, Capital, vol. 3 (London: Penguin, 1981), 916, 949–50. [96] Macdonald, “Marx and the Human/Animal Dialectic,” 42; John Bellamy Foster, Brett Clark, and Richard York, The Ecological Rift (New York: Monthly Review Press, 2010). [97] Marx, Early Writings, 389–90. [98] Lucretius, On the Nature of the Universe (Oxford: Oxford University Press, 1997), 46 (II, 350–65). Compare Lucretius’s description of the sacrifice of Iphigenia by Agamemnon on the altar of the gods—Lucretius, On the Nature of the Universe, 5–6 (80–101). See Massaro, “The Living in Lucretius’ De rerum natura,” 45–58. [99] Marx and Engels, Collected Works, vol. 5, 141; Early Writings, 239, 348.

 

John Bellamy Foster (1953-) é professor de sociologia da Universidade de Oregon e editor da Monthly Review. Sua pesquisa, de início, centrou-se no estudo de economias políticas marxistas e teorias do desenvolvimento capitalista, com foco em Paul Sweezy e a theory of monopoly de Paul Baran.

Brett Clark é professor de Sociologia e estudos ambientais na Universidade de Utah. Sua pesquisa se concentra na economia política da mudança climática global e na filosofia, história e sociologia da ciência. Além disso, leciona cursos no Departamento de Sociologia, no Programa de Pós-Graduação em Humanidades Ambientais e no Programa de Estudos Ambientais.

 

Tradução de Alex Peguinelli. Para comentários/críticas/sugestões: antiespecismocritico@gmail.com

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