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o sonho americano e o negro americano

Atualizado: 3 de jul. de 2021


Palmer Hayden, The Subway, 1930.

A coluna Harlem retorna com a tradução de um dos textos de Baldwin que podem soar familiares ao leitor. Trechos desta redação, publicada originalmente na The New York Times Magazine, são reproduzidas no documentário franco-estadunidense I am not your Negro (2016), de Raoul Peck. O texto foi redigido e publicado durante os turbulentos anos de embate pelos direitos civis, momento marcante da história estadunidense e das lutas antirracistas pelo mundo. Aqui, apresentamos a primeira de duas partes do texto de Baldwin.

 

The New York Times Magazine, 7 de março de 1965.


Me encontro, não pela primeira vez, na posição de um tipo de Jeremias[1]. Parecer-me-ia que a questão posta pela casa é uma proposição horrivelmente carregada, e sua resposta depende de onde estamos no mundo, de qual o nosso sentido de realidade. Em outras palavras, depende das suposições que levamos em nós de maneira tão profunda quase de modo a não termos delas ciência.

O branco sul-africano, ou o meeiro do Mississipi, ou, ainda, o xerife do Alabama, têm como fundo um sistema de realidade que os impele a realmente acreditar, ao se confrontarem com o negro, que esta mulher, este homem, esta criança, devem ser loucos por atacar o sistema ao qual devem sua identidade. Para tal pessoa, a proposição que tentamos discutir aqui não existe.

Por outro lado, eu devo falar como uma das pessoas que mais foram atacadas pelo sistema Ocidental de realidade. Este sistema vem da Europa. É por aí que chegou à América. E levanta a questão sobre se civilizações podem, ou não, serem consideradas iguais, ou se uma civilização tem o direito de subjugar, destruir, de fato, outra.

Deixando de lado todos os fatores físicos que podem ser citados – deixando de lado o estupro ou o assassinato, o catálogo sangrento de opressão com o qual, de todo modo, somos demasiadamente familiares – o que o sistema faz ao subjugado é destruir seu sentido de realidade. Ele destrói a autoridade paterna sobre ela. Seu pai não pode mais lhe dizer nada, pois seu passado desapareceu.

No caso do negro americano, desde o momento do nascimento, todo graveto e toda pedra, toda face, é branca. E uma vez que você ainda não conhece um espelho, você simplesmente supõe que também é. É um grande choque que, por volta dos 5, 6 ou 7 anos, descobre-se que a bandeira à qual se declarou aliança, junto a todo mundo ao redor, não declarou aliança consigo. É um grande choque ver Gary Cooper[2] matando indígenas e, ainda que você esteja torcendo por ele, o indígena é você.

É um grande choque descobrir que o país em que você nasceu, e ao qual você deve sua vida e identidade, não desvelou nenhum lugar para você em todo seu sistema de realidade. O desafeto e o abismo entre pessoas, baseados unicamente na cor de suas peles, começa por aí e se acelera ao longo de sua vida. Você percebe ter 30 anos e uma vida terrível; passou por um tipo de moenda e o efeito mais sério não é, novamente, o catálogo de desastra – o policial, o taxista, os garçons, a locatária, os bancos, as agências de seguro, os milhões de detalhes nas 24 horas de todos os dias gritando que você é um ser humano sem valor. Não é isso. A esta altura, você vê isso acontecendo com sua filha, seu filho, sua sobrinha ou sobrinho. Você tem 30 anos de idade e nada que tenha feito ajudou a escapar dessa armadilha. Mas o que é pior é que nada que tenha feito e, até onde pode ver, nada que possa fazer, salvará seu filho ou filha de passar pelo mesmo desastre e de chegar ao mesmo fim.

Falamos de custo. Há inúmeras formas de se dirigir a si mesmo na tentativa de descobrir o que essa palavra significa aqui. De um ponto de vista muito literal, os portos e as ferrovias do país – a economia, especialmente do Sul – não podem ser o que são não fosse (e ainda é assim), a mão-de-obra barata. Falo muito seriamente, e isso não é um exagero: eu colhi algodão, carreguei-o ao mercado; eu construí ferrovias sob o chicote alheio a troco de nada. De nada.

A oligarquia sulina, que ainda hoje tem muito poder em Washington e, assim, algum poder no mundo, foi criada pelo meu trabalho e por meu suor, e pela violação da minha mulher e o assassínio de meus filhos. Isto na terra dos livres, no lar dos bravos. Ninguém pode desafiar essa afirmação. É uma questão de registro histórico.

No Sul Profundo lida-se com um xerife ou um senhorio ou senhoria, ou uma menina num balcão da Western Union. Ela não sabe direito com quem está lidando – e com isto quero dizer que há milhões de modos pelos quais se torna aparente que você não mora numa cidade, ou que você é um “crioulo” do Norte. Ela sabe simplesmente que se trata de um número desconhecido e que não quer ternada a ver com isso. E você esperar no balcão para receber seu telegrama. Todos nós passamos por isso. À altura em que você se torna um homem, é uma situação fácil de lidar.

Mas o que acontece na mente do pobre homem e da pobre mulher brancos? O seguinte: foram criados para acreditar, e a esta altura acreditam sem socorro, que não importa quão terrível possam ser suas vidas, e não importa quais desastres recaiam sobre eles, resta um consolo, como uma revelação celeste: ao menos não são negros. Eu sugiro que, de todas as coisas terríveis que possam acontecer a um ser humano essa é uma das piores. Eu sugiro que o que aconteceu ao sulino branco e, de algum modo, muito pior do que aconteceu aos negros ali.

O xerife Clark[3], de Selma, Alabama, não pode ser considerado um monstro total; tenho certeza de que ama sua mulher e filhos, de que gosta de uma bebida. É preciso que assumamos que é um homem como eu. Mas ele não sabe o que o leva a usar o cassetete, a ameaçar com uma arma de fogo, e a usar um aguilhão. Algo terrível deve ter acontecido a um ser humano para que seja capaz de forçar um aguilhão sobre o colo de uma mulher. O que acontece à mulher é pavoroso. O que acontece ao homem que produz aquilo é, de algum modo, muito, muito pior. Suas vidas morais foram destruídas pela praga chamada cor.

Isto tudo não está sendo feito 100 anos atrás, mas em 1965, e no país que se apraz com aquilo que chamamos de prosperidade, com um certo montante de coerências social, que se denomina uma nação civilizada e que esposa a noção de liberdade no mundo. Fossem pessoas brancas sendo assassinada, o governo acharia algum jeito de fazer algo a respeito. Agora temos uma lei de direitos civis. Quase 100 anos atrás, tivemos a 15ª Emenda. Se não foi honrada então, não vejo razão alguma para acreditar que os direitos civis serão honrados agora.

O solo americano está repleto dos cadáveres de meus ancestrais ao longo de 400 anos e, no mínimo, três guerras. Por que minha liberdade e cidadanias estão em questão agora? O que se implora ao povo americano, pelo bem de todos, é que simplesmente se aceite nossa história.

[continua]


 

Notas:

[1] Jeremias foi um historiador e profeta judeu que viveu entre os séculos VII e VI a.E.C. É autor do livro bílico que leva seu nome e também do Livro das Lamentações, um livro elegíaco escrito provavelmente após a queda e destruição de Jerusalém por Nabucodonosor II. Além das lamentações a respeito do povo de Israel, Jeremias profetizou contra Judá e sobre a Salvação desta e de Israel.

[2] Gary Cooper foi um renomado ator estadunidense, duas vezes vencedor do Oscar e reconhecido principalmente por suas atuações no gênero Western.

[3] James Gardner Clark Jr, xerife do condado de Dallas, no alabama, entre 1955 e 1966. Foi um dos oficiais responsáveis pela repressão violenta da passeata de Selma a Montgomery em 1965, lembrado como um racista brutal, que usava aguilhões elétricos de gado contra defensores dos direitos civis desarmados.

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