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sobre influências: neel doff

Atualizado: 26 de jan. de 2022




Dias de Fome e Desamparo, romance de estreia da escritora holandesa Neel Doff, finalmente vem à luz no Brasil em tradução inédita pela sobinfluencia edições. Ao longo de dois meses, procuramos divulgar este nome desconhecido deste lado do Atlântico, destacando a relevância de sua obra enquanto escrita feminina e proletária. Neste movimento, ficou claro o interesse a curiosidade de nossos leitores em conhecê-la mais, inquirindo principalmente sobre suas influências. Doff tinha origem proletária. Conseguiu aceder a uma posição social elevada a partir de seu trabalho como modelo para pintores e escultores belgas, como Félicien Rops e Charles Samuel. Graças a esse ofício, conheceu integrantes da classe média belga dedicadas às artes e às profissões liberais que atuavam em jornais e movimentações socialistas, fortemente influenciados pelo espírito da época num país que havia conquistado a independência poucas décadas antes (a Bélgica se tornou independente dos Países Baixos em 1830 e o reconhecimento oficial da independência pelo ex-soberano só veio em 1839). Lembremos que a Bélgica fora uma das moradas de Karl Marx e o país desempenhou um papel importante na organização dos movimentos operários em meados do Século XIX. O círculo de Doff, portanto, ainda que de classe média, transitava nas movimentações e articulações da causa proletária, sendo seu primeiro marido, Fernand Brouez, editor da revista socialista de língua francesa mais importante do momento, a La Société Nouvelle. Com um passado marcado pela miséria e pela penúria, Doff conhecia pessoalmente as aflições de sua classe original e a literatura se tornou seu principal modo de descrever, expor e lutar pela transformação social. Não à toa, Henry Poulaille, que cunhou a ideia de “literatura proletária”, considerou-a sua representante mais importante e, mesmo, fundadora. A influência deixada por Doff, assim, parecem claras ao ser inserida na tradição socialista da literatura proletária, mas é importante, também, entendermos quais foram os autores que influenciaram a autora, e veremos, aí, que sua relação com as causas socialistas, ainda que, como declarado por ela própria, toda sua obra tenha nascido de sua miséria, puderam tomar forma também por aqueles que a precederam. Em sua entrevista de 1929 a Frédéric Lefèvre (traduzida em duas partes nesse blog), temos alguns indícios dos autores que acompanharam a vida pessoal de Doff: Goethe, Rousseau, J-H. Fabre, Saint-Beuve, Voltaire e Saint-Simon. Cabe aos estudiosos dizer o quanto tais nomes reverberam no texto doffiano, mas, aqui, é possível esboçarmos algumas relações. Saint-Beuve, por exemplo, foi um importante crítico literário e escritor francês, representante do romantismo e proponente de uma escrita biográfica e documental relacionadas ao autor. Proust foi crítico de seu pensamento, por identificar em seu método a causa de sua negligência para com Baudelaire, Stendhal e Balzac. Esta crítica foi seguida pelos formalistas, mais tarde. Nietzsche foi outro opositor de Sainte-Beuve, que não era traduzido na Alemanha por representar uma forma “demasiado francesa” de pensar. Mesmo assim, entusiasmou-se com a tradução de Causeries du lundi, mesmo livro lido por Doff. No século XX Jean-Paul Sartre retomou a teoria de Sainte-Beuve ao defender a ideia da ligação entre escritor e obra. Indubitavelmente, Doff se encontra num caminho próximo, dado que retira de sua própria experiência o conteúdo de sua obra que, ao menos na chamada “Sinfonia da Fome”, conta com um componente semi-autobiográfico importante e explícito. Jean-Henri Fabre é também uma figura interessante a se destacar na biblioteca pessoal de Doff. Considerado como um dos precursores da etologia e da ecofisiologia, o laureado da Academia Francesa escreveu não só em francês, mas em occitano, o que nos remete ao uso poético de holandesismos do texto doffiano, além de nos fazer perguntar se não há, dada a organicidade entre homem e meio em outros textos da autora, uma influencia de um pensamento ecológico no naturalismo próprio de Doff, que se desviava das normas padrões, sejam estas francesas, pautadas por Zola, ou belgas, presentes na obra de Georges Eekhoud (que menosprezou o primeiro texto de Doff, que ela queimou). O “Homero dos insetos”, nas palavras de Victor Hugo, cuja obra é impregnada de humanidade virgiliana, deve ter influenciado Doff por um componente naturalista que, hegemônico na época, dava atenção à influência do ambiente sobre os indivíduos. Memórias de Saint-Simon é texto que, talvez, mais ateste a relação de Doff com seu círculo socialista, uma vez que é uma referência determinante em autores como Balzac, Stendhal e Proust. Monumento da literatura francesa, foi estudado de perto por Michelet como expressão para uma análise profunda da ideologia política e da memória social do Ancien Régime. Que Doff tenha lido seus onze volumes quatro vezes demonstra uma afinidade com seu tempo e, talvez, os esforços de entender o regime burguês à luz dos processos de longa duração que culminaram na Revolução Francesa, cujos resultados, então, eram a partilha da Europa Central pelo fim do império napoleônico, a Guerra da Crimeia, o domínio do Egito e do Levante, a reestruturação e consolidação do Estado-nação tal qual o conhecemos pela supressão das organizações operárias com o estrangulamento das revoluções de 48 e da Comuna de Paris em 1871. Esse apoio num pensamento eminentemente francês é uma expressão profícua de alguém que se educava na cultura letrada da alta burguesia. Voltaire aparece, aí, assim como Rousseau, como representantes do Iluminismo em toda sua potencialidade progressiva de luta contra a intolerância religiosa, apoio à racionalidade científica, combate ao poder absoluto. Mas Doff nota, também, tê-lo lido no Conservatório de Bruxelas e, portanto, como uma leitura obrigatória. A peça Zaïre, de 1732, em cinco atos e versos alexandrinos, foi um grande sucesso em Paris e introduziu uma novidade na estrutura da tragédia ao não legá-la a uma falha patológica de um dos protagonistas, mas, antes, a fatores externos (o ciúme do amante e a intolerância religiosa). Isso quiçá reverbere na obra doffiana, na medida em que, em Dias de Fome e Desamparo, Doff não procura determinar causas psicológicas, mas, antes, materiais para a miséria humana. Do mesmo modo, a obra de Rousseau aparece como influência à Doff não em sua totalidade, mas por meio de suas Confissões. Novamente vemos aí o peso do relato autobiográfico e a relação entre obra e autor. Por último, é digno de nota citarmos alguns autores contemporâneos declaradamente queridos por Doff: André Baillon e Colette. Baillon foi um escritor belga ligado ao surrealismo, que centrou, algumas vezes, suas narrativas em personagens femininas. Tinha uma escrita cerebral e irônica, e partilhou da paisagem campestre querida por Doff. Eram amigos e as possíveis relações literárias entre ambos permanece um problema de análise em aberto extremamente profícuo. Colette, por sua vez, praticamente dispensa apresentações: mímica, atriz, jornalista, mulher assumidamente bissexual, escrevia com palavras precisas, dando vazão à reivindicação da corpo sobre espírito, numa obra complexa e moderna. Possuía íntimas relações com a Bélgica, tendo sido seu avô um combatente em Waterloo e tendo sido laureada pela Academia Real de Língua e Literaturas Francesas da Bélgica. Escandalizou por explorar a sexualidade feminina, mas nunca foi feminista, chegando a responder a Walter Benjamin, em 1927, que as mulheres seriam incapazes de assumir cargos políticos. Contraditória, portanto, mas não menos disruptora das normas de seu tempo. Ao lado destas duas figuras excêntricas, restavam, ao redor de Doff, autores e pensadores como Georges Duhamel, Léon Werth, o poeta Charles Vildrac, Laurent Tailhaide, Octave Mirbeau, George Besson. Socialistas e militantes, estes foram os companheiros de Doff ao longo de sua vida. Se influenciaram ou, antes, foram influenciados pela amiga, resta descobrir. Com Neel Doff publicada, teremos essa chance.

 

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