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a verdade da ficção - parte II

Atualizado: 26 de jan. de 2022


"Estômago", colagem analógica por Alex Peguinelli (janeiro/2021)

 

Na segunda parte de “A verdade da ficção”, Chinua Achebe desenvolve a diferenciação entre ficção benéfica e maléfica, dando vazão à sua compreensão acerca das possibilidades e potencialidades oferecidas pela arte narrativa. Sem recair em uma concepção ingênua, na qual a ficção, por si só, seria benéfica, Achebe argumenta sobre os riscos da imaginação fictícia quando esta se torna uma forma de impor suas representações como imagem verossímeis da realidade, como acontece no nazismo. Recorrendo tanto à tradição europeia quanto à africana, Achebe encerra esse trecho diferenciando a ficção da superstição.

 

Dada nossa natureza inquisitiva, cujo fim é a descoberta, e, dadas as nossas limitações existenciais, especialmente a vastidão de nossa ignorância, podemos começar a apreciar a bênção imensurável que nossa imaginação pode nos conferir. Dizer que a experiência é a melhor professora é um truísmo e um clichê; a ideia mesma de que possamos saber algo que não tenhamos experienciado pessoalmente é discutível. Ao nos fornecer um amplo rol de situações humanas, entretanto, nossa imaginação pode estreitar o abismo existencial, garantindo a maior aproximação possível a experiências que talvez jamais tenhamos, e nos fornecendo mesmo as situações de formas mais seguras, como qualquer um que já viajou por uma estrada nigeriana poderia dizer! Afinal, é pouco desejável que sejamos atropelados por um carro para possamos saber que automóveis são perigosos. Podemos aprender com aquele corpo caído no acostamento; não somente ao observá-lo, mas ao criarmos uma ficção punitiva em que somos esse corpo, que o cadáver de outra pessoa não é, como diria um provérbio Igbo, um tronco de árvore, mas nós mesmos. (Exceto que, refletindo mais profundamente, este provérbio não corresponde de fato ao ultraje que acabo de proferir. O cadáver de outra pessoa nos parece um tronco de árvore – é isso que o provérbio diz; algo bem diferente e uma reflexão muito triste sobre nossa imaginação debilitada, sobre o mal funcionamento dos poderes de identificação com as necessidades de nossos semelhantes). A vida é curta e a arte perdura, dizem os antigos. Podemos mitigar a brevidade da primeira com a longevidade da última. É por isso que as sociedades humanas sempre tentaram sustentar seus valores culturais por meio de literaturas orais ou escritas cuidadosamente preservadas que provém, a elas e à posteridade, um atalho aos benefícios da experiência real. Mas e a história – vocês podem perguntar – também ela não salvaguarda o mesmo esclarecimento? As lições da história são importantes, é claro. Mas pensem em quantos éon de história serão necessários para destilar a sabedoria do Rei Lear de Shakespeare? E de qualquer modo, que grande conforto podemos nós, recentes coloniais, derivar de uma história efetiva que é tão má, britânica e curta?

Para que uma sociedade funcione suave e efetivamente, seus membros devem compartilhar certos princípios básicos de crenças e normas de comportamento; deve haver um grau razoável de consenso acerca do significado da virtude e do vício, algum acordo sobre os atributos do herói e sobre o que constitui o ato heróico. Em qualquer parte do mundo e em qualquer momento histórico, diferentes sociedades terão ideias diferentes sobre esses assuntos. Ainda assim, apesar de variações locais e históricas, não conhecemos nenhuma sociedade que tenha sobrevivido e florescido baseadas em noções completamente arbitrárias de bem e mal, ou do heroico e do covarde. Nossa própria humanidade parece comprometida a uma distinção entre esses pares, não importa quão embaçado o limite que, por vezes, aparece entre eles. Mas a sociedade, como o indivíduo, pode adoecer ou se tornar mentalmente desequilibrada, como no conhecido caso da histeria coletiva. De fato, há sintomas de patologia social mais silenciosos e menos dramáticos. Ostentação vulgar, insensibilidade, desordem, sujeira e relaxo são sinais claros de doença. Qual seria a cura? Mais exortações? Eu penso que não.

A grande virtude da ficção literária é a de que, ao se engajar com nossa imaginação, nos leva “à descoberta e ao reconhecimento por meio de uma rota inesperada e instrutiva”, nas palavras de Kermode [1]. Ela nos ajuda a relocalizar a linha entre o heróico e o covarde quando esta parece ser mais obscura e elusiva; e a ficção faz isso ao nos forçar a ir de encontro com o heroico e o covarde de nossa própria psique.

Quantas vezes não ouvimos as pessoas dizerem “Oh! Não tenho tempo para ler”, implicando que a ficção é frívola? Em geral elas até adicionam – a não ser que as consideremos analfabetas – que leem histórias ou biografias, que presumem ser mais apropriadas a adultos sérios. Tais pessoas são dignas de pena; são como um carro de seis cilindros que diz: “Consigo fazer tudo que preciso com as três velas que tenho, obrigado.” De fato, conseguirá, de algum modo, mas soará mais com uma moto asmática!

A vida da imaginação é um elemento vital de nossa natureza total. Se a deixamos passar fome ou a poluímos, a qualidade de nossa vida se deprime ou se mancha.

Não devemos, entretanto, celebrar as belezas da imaginação e as ficções benéficas que se tecem em seus fusos dourados sem mencionar o perigo terrível aos quais podem ser expostas: crença em raças superiores e inferiores, crenças em que algumas pessoas que vivem além de nossas fronteiras ou que falam uma língua diferente da nossa são a causa de todo o problema do mundo, ou de que nosso grupo, classe ou casta particulares têm direito a certas coisas negadas a outros; a crença de que o homem é superior à mulher, e daí por diante... tudo isso são ficções geradas pela imaginação. O que as torna diferentes da ficção benéfica, pela qual estou promovendo reivindicações grandiosas? Poder-se-ia responder: Por seus frutos, conhecê-las-ei. Logicamente esta pode ser uma boa resposta, mas estrategicamente é inadequada, pois pode implicar que Hitler deveria promover um genocídio para que, então, pudéssemos concluir que o racismo é um mal horrível, ou que a África do Sul devia arder em chamas para confirmá-lo. Devemos então encontrar um critério que tenha um sistema de alarme que grite, vermelho, cada vez que começamos a tecer ficções virulentas.

Tal sistema de alerta precoce é tanto simples quanto ao nosso alcance. Lembrem-se como as crianças prefaciam seus pequenos dramas dizendo “Vamos fazer de conta”. O que distingue a ficção benéfica de seus primos maléficos como o racismo é o fato de que a primeira nunca esquece que é ficção, enquanto a segunda nunca sabe que é. A ficção literária não nos pede para crer, por exemplo, que o beberrão de vinho de palma de fato bebeu cento e cinquenta barricas de vinho de palma pela manhã e setenta e cinco pela noite, ou que ele partiu na aventura vividamente descrita na novela, ou mesmo que ele existiu. Ainda assim a leitura da obra nos explica muito e afeta radicalmente a forma como percebemos o mundo.

Ficções maléficas como a superioridade racial, por outro lado, nunca dizem “Vamos fazer de conta”. Ao contrário, elas são assertivas quanto as suas ficções como dado provados e forma de vida. Os detentores de tais ficções são realmente como lunáticos; uma pessoa sã pode, vez ou outra, performar um ato numa peça, mas um louco vive-a permanentemente. Algumas pessoas descreveriam ficções maléficas como mitos, mas eu não encontro justificativa par amanchar a reputação dos mitos deste modo. Preferiria chamar as ficções maléficas por seu nome apropriado, que é superstição. Independentemente de como as chamemos, é essencial que distingamos claramente a ficção benéfica de qualquer nonsense arbitrário que emana de uma imaginação doente. Observar um ilusionista e se maravilhar com seu jogo de mãos e seu domínio dos truques óticos é algo bem diferente de vê-lo e acreditar que seus poderes derivam de visitas noturnas ao cemitério ou da leitura do sexto e do sétimo livros de Moisés. A ficção benéfica opera dentro dos limites da imaginação; a superstição rompe os limites e devasta o mundo real. [continua]

 

Notas: [1] Sir John Frank Kermode (1919-2010), foi um crítico literário inglês, mais conhecido por “The Sense of an Ending: Studies in the Theory of Fiction”, de 1967, citado aqui por Achebe. Foi docente em diversas universidades do Reino Unido e colaborados de inúmeras revistas literárias.

 

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