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a verdade da ficção - parte III

Atualizado: 26 de jan. de 2022


Romare Bearden, Pittsburgh Memory, 1964
 

Na última parte de “A Verdade da Ficção”, Chinua Achebe conclui suas reflexões acerca de faculdade imaginativa e da necessidade da literatura, em sua forma ficcional benéfica, como um instrumento para uma nova percepção da realidade, que, expandindo nossa consciência, nos permite reencontrar o mundo e uns aos outros. Ao permitir que nos “coloquemos no lugar do outro”, a ficção enaltece a sensibilidade, a compaixão e o contato com aquilo que nos é comum.

 

Estamos completamente errados quando imaginamos que aquilo que é autocentrado é sinal de esperteza. Na verdade, é algo bem estúpido, uma indicação de que nos falta imaginação para que recriemos, em nós mesmos, os pensamentos (especialmente aqueles que não possuímos) que se passam nas mentes dos outros. Uma pessoa insensível ao sofrimento de seus semelhantes é assim porque carece de poder imaginativo que a permite se colocar no lugar de outro ser humano, vendo o mundo por seus olhos; olhos diferentes de seus próprios. A história e a ficção estão repletas de instâncias de correlação entre indiferença e falta de imaginação. Pense na senhora aristocrática que dirigia de volta para sua propriedade numa tarde de inverno e viu, pelas janelas descobertas de uma cabana destruída, um menino esfarrapado tremendo de frio.

“Lembre-se daquela cabana, pois assim que chegar em casa devo enviar roupas quentes ao pobre menino”, ela disse a seu chofer, movida pela pena.

Quando chegou em casa, sentada à frente de uma imensa lareira que estalava em brasas, seu motorista lhe disse: “Senhora, quanto à cabana...”.

“Oh! Mas já está quente de novo”, ela respondeu.

Pensem na rainha de França antes da Revolução Francesa, que disse que o povo “comesse brioches”, ao ser avisada de que este não tinha mais pão. Em geral, ela é tida como um monstro sem coração. Muito provavelmente ela era uma mulher patética e estúpida que acreditava genuinamente que, se as pessoas não tinham mais pão, deviam comer brioches até que pudessem estocar o trigo novamente.

Vejam bem: o privilégio é um dos maiores adversários da imaginação, espalhando uma grossa camada de tecido adiposo sobre nossa sensibilidade.

Hoje, vemos a mesma mortificação da consciência em todos os níveis que nos rodeiam – pessoal, comunal, nacional e internacional. Não faz muito tempo, vislumbrei uma cena surpreendente bem na frente de um viaduto que custara milhões de naira. Um mendigo se agachava no meio da rodovia, escavando algo que depositava numa cumbuca enquanto carros em fúria desviavam de ambos os lados. Ao chegarmos mais perto, percebi que aquela coisa marrom-esbranquiçada que ele coletava não era algo puro, mas uma mistura de areia e sal. Provavelmente um saco de sal havia caído de alguma van, se arrebentando ali mesmo, aonde o mendigo chegou um pouco tarde. O amigo que me conduzia me disse que aquele era “um nigeriano que o boom do petróleo havia esquecido”. Não fui capaz de superar a ironia gigantesca, quase crua, daquela cena: a ponte multimilionária adiante, o mendigo desafiando a morte para colocar areia em sua sopa. Lembrei-me de um poema que acabara de receber para a revista Okike [1], “O Romance dos Mendigos”. Queremos capital de risco, Não mendigos Capital social, Não é uma tigela de esmola, Não a chacoalhe Não chacoalhe sua tigela de esmola Nessa economia. Mais adiante, em outra sequência do mesmo poema, um pedinte de sangue-quente, vivendo como muitos outros em Lagos, isto é, pré-historicamente em cavernas de concreto debaixo de pontes modernas, oferece este convite: Venha cá, no vazio de minha consciência Te mostro uma ou duas coisas Te mostro o calor do meu amor. Sabe o quê? Também posso te dar filhos Verdadeiros líderes de amanhã Aqui mesmo, debaixo da ponte Posso te dar verdadeiros líderes do pensamento. Eu não creio que aquela uma elegante Miss Nigéria terá a imaginação ou a consciência de explorar as possibilidades daquele encontro. Ela desviará do mendigo rude e partirá, acelerando seu carro caro, em direção a seu encontro estéril com seu inchado Sr. Capital Social.

Indiferença ao sofrimento não é nada esperto, de forma alguma. A falecida Hannah Arendt mostrou verdadeira perspicácia quando intitulou seu estudo sobre a psicologia do totalitarismo de Banalidade do Mal.

Identificação imaginativa é o oposto da indiferença; é a conexão humana em seu grau mais íntimo. Está além da regra de ouro: “Faça aos outros...” O grande cimento social, aquele que realmente fixa, é nosso sentido deste elo, e se manifestará no sentimento de camaradagem, justiça e fair play. Minha teoria do uso da ficção é a de que a ficção benéfica conclama à vida plena o alcance total das nossas faculdades imaginativas, nos dando um sentido elevado de nossa realidade pessoal, social e humana. Uma coisa que é preocupante, sobretudo no materialismo frenético que circunda nossa vida contemporânea, é o fato de que, como espécie, talvez estejamos perdendo o “Abre-te Sésamo” ao mundo da ficção – a habilidade de dizer “Façamos de conta que”, como uma oração antes de nossos atos; assim como de dizer “a festa agora acabou”, como se uma bênção ao terminarmos – e ainda assim, tirar insights e sabedorias deste desfile insubstancial, de modo a traçarmos nosso caminho no mundo real. A sutil articulação de nossa imaginação parece, enfim, se endurecer rapidamente em direção à esclerose rígida da mente literal e dos problemas materiais.

Durante um jantar, um amigo inglês, maravilhoso narrador, havia acabado de contar a certos de nós sobre uma fuga ansiosa que ele e sua mulher haviam feito recentemente até o Extremo Oriente, quando ocorreu à sua mulher que lhe perguntasse se, por sinal, ele havia contratado o seguro aéreo para a viagem. “Ah sim”, ele respondeu jovial, “se o avião caísse, nos tornaríamos o casal mais rico do cemitério”. Alguns dias depois eu repeti a piada a um amigo médico, que respondeu, prontamente e sem sorrir, que o dinheiro teria ficado com os herdeiros. Pensei comigo mesmo: “Meu Deus, que destino esse que se abateu aos descendentes daqueles incomparáveis fabulistas que criaram nossas grandes tradições orais!”.

E comecei a pensar numa outra experiência, mito mais séria, que havia tido. Em janeiro de 1966, publiquei uma sátira social intitulada Um Homem do Povo, que, como quis o destino, saiu dois dias depois do primeiro golpe militar da Nigéria. Como a novela também termina com um golpe militar, certo grau de surpresa, conjetura, e, posso dizer, admiração, foi inevitável entre meus leitores. O que não foi inevitável, entretanto, foi a teoria que cresceu, aparentemente, ao longo da guerra civil, de que porque eu havia escrito a novela eu provavelmente era um dos que havia planejado o golpe militar. Muito tempo depois da guerra civil eu fui questionado de forma um tanto íntima acerca desse assunto logo após uma palestra em uma de nossas universidades. Um tanto incomodado, perguntei ao meu questionador se ele havia lido a novela, ao que me respondeu que, vagamente, sim. E ele se lembrava, eu o perguntei, de que antes do golpe na minha história, houve um aparato flagrante de fraude eleitoral, comoção civil pelo país, assassinatos e incêndios, acontecimentos que foram paralelos a eventos similares na Nigéria antes do golpe de janeiro? Por acaso ele estava sugerindo que eu também havia planejado esses levantes em Ibadan e em outros lugares? Ele se lembrava de que minha história menciona, especificamente, um contragolpe, uma profecia que, aliás, também se concretizou na Nigéria em julho de 1966? Ele sugeria que eu estava planejando isso também? No geral, por acaso ele pensava que um grupo dissidente de oficiais do exército que planejavam derrubar seu governo convidaria um novelista para fazer parte de seus planos, depois voltariam aos seus quarteis, esperariam dois anos enquanto o novelista escrevia, editava e produzia seu livro, para, aí então, tomar ação e efetuar seu golpe só para que coincidisse com a publicação do livro? Tal teoria talvez fosse perdoável em 1966 se apresentada aos soldados armados que foram à minha busca, primeiro no escritório e depois numa casa que eu, felizmente, havia abandonado. Como eles saberiam que o livro ofensivo havia demorado dois anos para ser escrito e publicado? Mas um professor universitário, em 1977?!

Essa longa anedota pessoal não seria necessária se não mostrasse de forma mais clara do que qualquer outra coisa com a qual eu tenha experiência direta, quão fácil é dar um curto-circuito, voluntariamente, no poder de nossa imaginação. Pois, quando um homem desesperado deseja acreditar em algo, não importa quão bizarro ou estúpido, ninguém pode pará-lo. Descobrirá em sua imaginação um cúmplice voluntário e entusiasmado. Juntos, tecerão a ficção necessária que, então, os manterão atados de forma segura em suas intenções estimadas.

A imaginação que a literatura imaginativa oferece não é assim. Ela não escraviza, mas liberta a mente humana. Sua verdade não é como a dos cânones de uma ortodoxia ou a irracionalidade do preconceito e da superstição. Ela começa por uma aventura na autodescoberta e termina na sabedoria e na consciência humanas. Palestra Convocatória, Universidade de Ife, 1989.


Texto publicado originalmente em: ACHEBE, C. 1989. Hopes and Impediments. Selected Essays. Nova Iorque: Anchor Books.

 

[1] “Okike. An African Journal of New Writing”, foi uma revista editada pelo próprio Chinua Achebe.”

 

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