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Atualizado: 2 de mar. de 2022


Colagem por Fabiana Vieira Gibim


Este mundo atual é o mesmo de sempre. É, ao menos o mesmo desde que postulamos as relações dialéticas entre infra e superestrutura. As mesmas usinas que abastecem um país podem levar a população à morte por conta de um acidente de cálculo. As inovações, as novidades, os avanços são pensados somente em termos tecnológicos. Por isso se diz que vivemos uma tecnocracia. A técnica e a tecnologia vêm em primeiro lugar. Ditam as normas, as visões de mundo e o ethos. Isso, entretanto, é antigo. Basta lermos, por exemplo, Baudelaire. O mundo parece ser uma soma de fracassos. Com o medo da repetição das atrocidades passadas, fingimos aprender a lidar com a história, quando na verdade, a recalcamos. A indústria cultural tem sido cúmplice da confusão humana com o passado, estetizando a miséria e transformando-a em bem de consumo, estetizando, com isso, a própria política calculada e pensada para a produção da pobreza. O pensamento se desorienta e se torna legítimo falar de qualquer coisa partindo do princípio de que, ao se politizar uma questão ela ganhará, a priori, valor de verdade e, portanto, legitimidade. A premissa de um discurso político parece eximir nossa cumplicidade dos horrores, tranquilizando a consciência. Ao mesmo tempo, neste movimento, o outro resta sempre irracional, pois os motivos daquele que se anuncia, do alto de seu engajamento, são e só podem ser, reflexos da “verdadeira” realidade. E isto porque o estímulo à subjetividade totalizante, que o mundo tanto alimenta, cria um sem número de "eus" que vêem em seu bem-estar o sinônimo de sua totalidade. E entretanto, esse processo discursivo de projeção de um “eu”, não passa de um espelho da estandardização sofrida como experiência geral, tornando-se os indivíduos, neste movimento, um grande dedo acusador que denuncia as mentiras que vêem nos outros. Aquele outro que é eu mesmo. E este processo todo é criado à medida da técnica. A técnica, mesmo que acusada pelas grandes mentalidades atuais, é ainda, a grande dona dos avanços, inclusive intelectuais. A medicina avança como a indústria bélica: se um foguete erra o alvo matando algumas centenas de civis a mais, corrigem-se os cálculos e tenta-se novamente. O salto ontológico que se preconiza é do ser social ao ser maquinal. A Sociedade Civil, tão protagonista nas sociedade ocidentais já há quase 250 anos, tornou-se um burocracia manifesta pelas grandes ONG's, Terceiro Setor e organizações locais muitas das quais, por motivos óbvios de dependência e faltas de recurso, devem se aparelhar às administrações sociais governamentais. Na arquitetura, os homens voltam a tentar conquistar as alturas e os designs arredondados e limpos, brilhantes, não condizem com as periferias que a vista atinge na altura de seus andares. Os automóveis dobram em número e ainda que se aposte em fontes de energia ecologicamente corretas, o lixo e o desperdício se renovam mais rápido e mais eficientemente do que as fontes limpas. Os homens vivem sob a sombra do consumo. A crédito, de preferência. E o consumo, que é tão importante para tantos, pois é simbólico e traz uma gama de significações que afirmam a subjetividade, é somente o meio de reprodução dos símbolos impostos por essa mesma lógica tecnocrática e padronizante. Tanto que os hábitos reproduzidos advém de revistas e programas televisivos que informam, de um ponto de vista presumidamente racional, lógico e de fundo científico, a forma de se cozinhar, a forma de se educar, a forma de interagir e implicitamente, de pensar. Essas mesmas idéias e mentalidades ultrapassaram a barreira dos conhecimentos populares adquiridos e transmitidos pela experiência coletiva em comunidade, mesmo urbanas, que compartilhavam a vida numa rotina conjunta. A intelectualidade é, ao menos no Brasil, politicamente correta e as doces flores de nossa classe média acreditam assumir posições políticas pelo mero discurso, reproduzido das tradições de iniciados nos segredos ocultos da militância pela justiça dos nobres burgueses.Uma grande técnica do eu contemporâneo que se dá, na prática, como um cálculo do que deve ser dito ou não dito, do que é permitido ou proibido, do que é mais ou menos verdade. As pessoas às margens dos processos de alfabetização, alimentação, infraestrutura, são, no fim das rixas dos emergentes, esquecidas. Todos falam em injustiça, e humanização, mas poucos cruzaram suas cidades para encontrar a pobreza e a miséria. Os dedos acusadores apontam, em riste, para as barbáries dos outros, pois estes dedos mesmos são, evidentemente, incapazes de apertar um gatilho. Mas muitos ainda vivem nesta miséria. Todos nós. Vivemos nesta barbárie que renovamos a cada uma ou duas décadas. Sobrevivemos à cultura que criamos a cada momento, para nos adequarmos às situações imperativas. O que se cria de bom é superado pelo instante próximo, pois é obsoleto. Como na técnica. E a obsolescência impera. O irônico é que dependemos disso. Dependemos dos avanços técnicos à custa das guerras. Chegaram tão longe os males que criamos a nós, que destes mesmos males criam-se as soluções. Irônico ainda que, a todo momento propomos soluções. Elas nascem dos professores, dos operários, de homens e mulheres e crianças e jovens e velhos. Mas os velhos não podem o que sabem e os jovens, não sabem o que podem. Os choques a que nos acostumamos recalcam as atitudes insurgentes e a crença no futuro é de uma utopia nada concreta, pois nós mesmos ignoramos as possibilidades efetivas às quais os avanços nos possibilitam, uma vez que mudam a todo instante. Sob tudo isso, o mundo está, ele todo, em crise. A tecnocracia esconde o império econômico segundo o qual o instante da crise traz o momento de perigo da guerra. Em Portugal os jovens são desacreditados. No Brasil, a crença é sebastianista, ainda. No mundo, corre solto o veneno do sonho de que querer é poder; de que o desejo pelo Bem vale mais do que o agir Bem; vivê-lo como prática. Corre solta, frouxa, a ideia de que as ações miúdas do politicamente correto, de que o amor à natureza e ao próximo, são as ações que começarão a mudar o mundo. Talvez a mudança real resida na sombra desta guerra que há muito nos domina. Talvez a mudança real impere exatamente nestes momentos críticos.

Texto por Gustavo Racy.






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