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walter benjamin está morto - correspondência de hannah arendt a gershom scholem

Atualizado: 16 de jul. de 2021


O texto a seguir, traduzido por Ludmyla Franca-Lipke, consiste de uma carta enviada por Hannah Arendt a Gershom Scholem, a respeito da morte de Walter Benjamin. A amizade entre Benjamin e Arendt, assim como entre Benjamin e Scholem, foi notória não só para as biografias individuais de tais pensadores mas, de modo geral, para a história do pensamento filosófico do Século XX.

Scholem foi o maior especialista da filosofia mística judaica em seu tempo, e Arendt foi uma das grandes pensadoras políticas (como ela gostava de se definir), do pós-guerra, conhecida comumente por seu conceito de “banalidade do mal”, cunhado a partir do acompanhamento do processo de Adolf Eichmann em Jersualém, e por sua análise dos regimes totalitários.

Benjamin e Arendt conviveram intimamente na década de 1930, exilados em Paris. Benjamin era primo do primeiro marido de Arendt, Gunther Stern (depois Gunther Anders), de modo que já se conheciam antes do exílio. Mas é em Paris que sua amizade se estreitará, compartilhando da relação, aquele que seria o segundo cônjuge da pensadora, Heinrich Blücher. Os três estudaram juntos inglês e se reuniam periodicamente no apartamento de Benjamin, junto a outros exilados, para discutir política e cultura. Arendt foi fundamental na vida de Benjamin especialmente a partir de sua mudança para Paris. Trabalhando para diferentes organizações sionistas, Arendt trabalhava e, neste momento, militava, por esquemas que garantissem à população judaica centro-europeia a fuga para a Palestina ou para as Américas e se esforçou para que Benjamin tivesse o mesmo destino. Com o final trágico da vida de seu amigo, Arendt tornou-se uma das maiores divulgadoras de seu pensamento, tendo sido a primeira editora de sua obra em inglês. Afinal, foi para ela que Benji (como costumava chamar-lhe), havia deixado seus escritos finais caso o pior acontecesse.

O texto foi publicado pelo Centro de Estudos Hannah Arendt, que nos cedeu permissão para que o republicássemos.

 

Hannah Arendt-Bluecher / 317 West 95th Street / Nova York, N. Y. 17 de outubro de 1941

Caro Scholem,

Miriam Lichtheim deu-me seu endereço e envia saudações. Embora eu acredite que mesmo sem esse empurrão, eu também teria me encorajado a escrever para você, devo admitir que foi um impulso muito eficaz. Wiesengrund disse-me que lhe enviou um relatório detalhado sobre a morte de Benjamin. Eu mesma descobri, quando cheguei aqui, alguns detalhes que não são irrelevantes. Talvez eu não seja muito qualificada para apresentar os fatos, já que dificilmente havia contado com um desfecho como esse, de modo que, por várias semanas após sua morte, ainda acreditei que tudo era boato de emigrantes. E isso apesar do fato de que precisamente nos últimos anos e meses fomos amigos íntimos e nos víamos regularmente. No início da guerra, estávamos todos juntos durante o verão em um pequeno ninho francês perto de Paris. Benji estava em excelente forma, tinha acabado partes do seu Baudelaire e pensava – com razão, na minha opinião – que estava prestes a fazer grandes coisas. A eclosão da guerra o assustou imediatamente. No primeiro dia da mobilização, ele fugiu de Paris para Meaux por medo de ataques aéreos. Meaux era um famoso centro de mobilização, com um aeroporto de grande importância militar e uma estação ferroviária que constituía um ponto estratégico para toda a concentração de tropas. A consequência foi, é claro, que desde o primeiro dia os alarmes aéreos não cessaram e Benji voltou rapidamente, assustado. Ele chegou bem a tempo de ser trancado em um campo de internamento. No acampamento temporário de Colombes, onde meu marido [Heinrich Blücher] teve longas conversas com ele, ele estava em grande desespero. E isso, claro, por boas razões. Ele imediatamente praticou uma forma peculiar de ascetismo, parou de fumar, deu todo o seu chocolate, recusou-se a se lavar, fazer a barba ou mesmo se mover. Após sua chegada ao último campo, ele não se sentiu tão mal: tinha ao seu redor um grupo de meninos que gostava dele, que queria aprender com ele e que o livrou de todos os tipos de fardos.

Quando ele voltou, em meados de novembro, ficou bastante feliz por ter tido essa experiência. Seu pânico inicial também havia desaparecido completamente. Nos meses seguintes, escreveu as Teses histórico-filosóficas, das quais também lhe enviou, como me disse, uma cópia, e das quais se pode deduzir que estava na trilha de coisas novas. No entanto, ele ficou imediatamente com medo da opinião do Instituto. Você certamente saberá que o Instituto o informou, antes do início da guerra, que seu pagamento mensal não era mais garantido e que ele deveria procurar outra coisa. Isso o entristeceu muito, embora a verdade seja que não estava muito convencido da seriedade dessa afirmação. Mas, em vez de melhorar sua situação, isso tornou tudo ainda mais difícil. Esse medo desapareceu com a eclosão da guerra, mas ele continuou a temer a reação a suas teorias mais recentes e certamente pouco ortodoxas. Em janeiro, um de seus jovens amigos do campo, que por acaso também era amigo ou discípulo de meu marido, suicidou-se. Principalmente por motivos pessoais. Isso o afetou de uma forma extraordinária e em todas as conversas ele apoiou esse menino e sua decisão com veemência verdadeiramente apaixonada. Na primavera de 1940, todos partimos com o coração pesado para o consulado americano, e saímos de lá pesarosos, pois nos foi explicado que teríamos de aguardar entre dois a dez anos pela nossa vez na lista de espera. Nós três começamos a ter aulas particulares de inglês. Nenhum de nós levou isso muito a sério, mas Benji aspirava aprender o suficiente para ser capaz de dizer que não gostava nada do idioma. E ele conseguiu. Seu horror pela América era indescritível, e já então dizem que ele havia comunicado a amigos que preferia uma vida mais curta na França a uma mais longa nos Estados Unidos. Tudo isso terminou rapidamente quando, a partir de meados de abril, todos os internos liberados que tivessem até 48 anos foram submetidos a um exame médico para determinar se estavam aptos para o serviço militar. Esse serviço era, na verdade, apenas mais uma palavra para designar internação para trabalhos forçados e, em comparação com a primeira internação, significava, na maioria dos casos, uma piora. Que eles iriam declarar Benji impróprio estava claro para todos, exceto para ele.

Durante esse tempo, ele ficou muito irritado e me explicou repetidamente que não poderia passar pelo mesmo drama novamente. Então, naturalmente, ele foi declarado impróprio. Independentemente dessa medida, em meados de maio ocorreu a segunda e mais completa internação, da qual você já deve ter ouvido falar. Três pessoas foram milagrosamente poupadas, incluindo Benji. No entanto, em meio ao caos do governo, ele nunca poderia saber se e por quanto tempo a polícia iria cumprir uma ordem do Ministério do Exterior, e se não iria prendê-lo sem mais delongas. Eu mesmo não o via mais a essa altura, porque também tinha sido internada, mas alguns amigos disseram-me que já não se atrevia a sair e que estava em constante estado de pânico. Ele conseguiu sair de Paris com o último trem. Carregava apenas uma pequena pasta com duas camisas e uma escova de dentes. Foi, como você sabe, a Lourdes. Quando saí de Gurs, em meados de junho, também fui para Lourdes e fiquei lá por várias semanas por iniciativa dele. Foi o momento da derrota; alguns dias depois, os trens não estavam mais circulando; ninguém sabia onde as famílias, homens, filhos ou amigos foram deixados. Benji e eu jogamos xadrez de manhã à noite e líamos o jornal nos intervalos, se houvesse um.

Tudo estava muito bem até o momento em que foi proclamado o armistício com a famosa cláusula de extradição. Obviamente, nos sentimos muito piores depois, embora eu não possa dizer que Benji realmente entrou em pânico. Em pouco tempo, ficamos sabendo dos primeiros suicídios em um internato durante a fuga dos alemães, e Benjamin, pela primeira vez, começou a falar comigo repetidas vezes sobre suicídio. Que essa saída era a que restava. Para meu protesto extremamente enérgico de que sempre se tem tempo para isso, ele repetiu de uma forma muito estereotipada que isso nunca poderia ser conhecido e que em nenhum caso deveria-se retardar demais. Por outro lado, estávamos falando sobre a América do Norte. Ele parecia estar mais conformado com essa ideia do que antes. Levou a sério uma carta do Instituto, explicando que todos os esforços estavam sendo feitos para levá-lo para lá. Levou menos a sério, contudo, uma outra declaração, dizendo que iria entrar para o conselho editorial da revista com salário garantido. Aceitou um contrato simulado para lhe fornecer um visto. Estava com muito medo, ao que parece sem motivo, de que, uma vez aqui, eles o deixassem em apuros.

No início de julho saí de Lourdes para ir à la recherche de mon mari perdu [em busca do meu marido perdido]. Benji não estava muito entusiasmado e duvidei por muito tempo se não deveria levá-lo comigo. Mas isso teria sido simplesmente impraticável. Lá ele estava bastante seguro das autoridades locais (com uma carta de recomendação do Ministério do Exterior), não podendo estar mais seguro que em outro lugar. Até setembro, só tive notícias dele por carta. Enquanto isso, a Gestapo estava em seu apartamento e confiscou tudo. Ele me escreveu muito deprimido. Embora seus manuscritos tenham, entretanto, sido recuperados, ele tinha motivos para acreditar que havia perdido tudo.

Em setembro, fomos para Marselha, pois nossos vistos já haviam chegado lá. Benji estava lá desde agosto, já que seu visto chegara em meados daquele mês. Ele também possuía o famoso Transit espanhol e, claro, o português. Quando o vi novamente, seu visto espanhol tinha apenas oito ou dez dias de validade. Na época, não havia esperança de obter um visto de saída. Ele me perguntou desesperadamente o que deveria fazer, se não conseguíssemos obter vistos espanhóis em tempo para que pudéssemos cruzar a fronteira juntos. Disse-lhe e mostrei-lhe que era inútil e que por outro lado devia partir agora, pois os vistos espanhóis àquela altura já não eram renovados. Disse-lhe também que me parecia muito incerto por quanto tempo esses vistos existiriam em geral e que não se deveria correr o risco de que expirassem. Que obviamente o melhor seria nós três irmos juntos, que então ele viesse para Montauban, onde estaríamos, mas que ninguém pudesse assumir a responsabilidade por tudo isso. Ao que ele decidiu partir às pressas. Os dominicanos deram-lhe uma carta de recomendação para um abade espanhol. Isso nos impressionou muito na época, embora fosse totalmente absurdo. – Naquela época, em Marselha, mencionou novamente as intenções de suicídio.

Você certamente sabe o resto: que ele teve que partir com pessoas que lhe eram completamente desconhecidas; que escolheram o caminho mais longo, que envolvia uma caminhada até a montanha de aproximadamente sete horas; que, por razões inconcebíveis, eles destruíram seus documentos de residência na França e assim impediram de retornar à França; que então chegou à fronteira espanhola apenas vinte e quatro horas após seu fechamento para pessoas sem passaporte nacional – todos nós tínhamos apenas os papéis do consulado americano -; que Benji havia desmaiado várias vezes já na ida; que na manhã seguinte deveriam ser entregues na fronteira com a Espanha e que ele, na noite em que lhes foi concedida, cometeu suicídio.

Quando chegamos a Portbou, meses depois, procuramos em vão seu túmulo: não foi encontrado, em nenhum lugar colocou-se seu nome. O cemitério tem vista para uma pequena baía, diretamente sobre o Mediterrâneo, é esculpido em terraços de pedra; também colocam caixões nessas pedras. É de longe um dos lugares mais fantásticos e bonitos que já vi na minha vida. O Instituto tem o legado, mas, no momento, não se atreve a publicar nada em alemão. Eu me pergunto se, independentemente disso, as Teses histórico-filosóficas não poderiam ser publicadas em Schocken. Ele me deu o manuscrito e o Instituto só o obteve graças a mim.

Caro Scholem, é tudo o que posso dizer-lhe, e o fiz da forma mais escrupulosa e com o mínimo de comentários possível. Para você e sua esposa, saudações calorosas de Monsieur e de mim.

Sua, Hannah Arendt

 

"Walter Benjamin Está Morto", é uma compilação de traduções inéditas de textos do filósofo alemão Walter Benjamin. Divido em cinco eixos temáticos, o livro procura contribuir com uma tradição já consolidada de estudos da obra do autor no Brasil, introduzindo ao público fragmentos e reflexões que se somam aos ensaios mais conhecidos e divulgados do autor.

E assista a "O Legado antifascista de Walter Benjamin", evento realizado pela Autonomia Literária.



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