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Io sono un uomo! Io sono Meneghetti! Il Nerone di San Paolo!

Atualizado: 26 de jan. de 2022


Cédula de Identidade de Meneghetti, expedida pela Delegacia de Estrangeiros em 1970.

Na Grécia Antiga, exaltada nos versos do poeta Homero, a construção de um herói estava diretamente ligada aos conceitos de Areté e Timé. Etimologicamente, a areté tem direta relação com a palavra aristoi, que sugere uma notabilidade reconhecida publicamente em uma pessoa. A timé está relacionada à honra. O encontro dessas duas virtudes constitui a essência do herói helênico. Assim são os heróis clássicos, constantemente falhos e frágeis, mas cobertos de areté e timé quando encaram os desafios que os elevam à imortalidade. Honra e destreza fazem o homem, e quando este carrega consigo os desejos de potência do seu povo, seu nome certamente ficará guardado na memória popular. É a lenda, e não a história, de Gino Amleto Meneghetti que me faz escrever essas linhas, 45 anos após a sua morte.


A história do “maior ladrão de São Paulo” me foi apresentada não por livros ou reportagens, mas pela narrativa fantástica dos italianos do velho Bixiga[1]. Não há um antigo morador que até hoje não conte alguma proeza que teria testemunhado do “fantástico homem de borracha” que percorria os telhados da velha São Paulo com seus incríveis “pés de mola”. Na memória coletiva dos seus patrícios, Meneghetti era uma espécie de herói cujos feitos eram exaltados com tanta paixão que nós, carcamanos mais jovens, chegávamos a duvidar dos mais velhos. Mas é exatamente aí que a história se encontra com o mito e, para algumas personagens, vence o mito.


O mito sobre Gino Meneghetti se inicia, tal qual a Ilíada, pelo meio da narrativa. A primeira estrofe já nos mostra aquele homem magro com seu longo bigode vivendo de forma desumana por longos 18 anos na cela 504 na Penitenciária do Carandiru. Gino já havia passado um ano na famigerada “Bastilha do Cambuci”[2], em uma cela com paredes eletrificadas antes de ser transferido para o presídio. Os tantos Homeros que narram a epopeia de Meneghetti traçam descrições dantescas daquela cela blindada, com uma janela apenas, protegida por seis grades de aço duplo. Impossível fugir, mesmo para o grande Gino que já havia fugido de forma espetacular em 1914 da Cadeia da Luz[3] escalando as paredes de um poço e escapando nu após saltar nas águas geladas do Rio Tamanduateí[4]. Na Penitenciária, Meneghetti temia morrer envenenado e lavava na latrina a comida que lhe era servida. Sua cela vira alvo da curiosidade popular, causando profundo ódio ao famoso ladrão de Pisa que se sentia em um zoológico humano. Revoltado, como sempre foi na sua vida, restava apenas lançar suas próprias fezes contra os espectadores e policiais. Quando isso ocorria, era levado para a “geladeira”, uma cela de 2 metros por 60 centímetros, sem claridade alguma. Tratado como um animal perigoso, Gino gritava “Io sono un uomo!”. Pobre Gino, mal sabia que aquele prisioneiro já não era mais um homem mesmo, mas uma lenda.


A lenda de Gino Meneghetti começou na Itália, na pequena Pisa e sua torre torta que viu o jovenzinho iniciar sua vida criminosa como tantos outros adolescentes italianos, roubando galinhas, frutas e pequenos objetos de valor como joias e relógios. Preso pela primeira vez aos 11 anos, sua fama de ladrão astuto foi se formando pelos arredores da Toscana. Quando foi convocado para o serviço militar, simulou loucura e acabou internado como “alienado” em alguns manicômios locais. No início da segunda década do século XX, Gino já era um ladrão “profissional” quando decidiu partir para o Brasil como tantos outros patrícios. Desembarcou aos 35 anos no porto de Santos a bordo do navio Tomaso di Savoia em 25 de julho de 1913 trazendo consigo poucas posses e uma extensa ficha corrida conhecida até pela Interpol. Instalou-se em uma pensão no Brás[5] e naquele reduto de carcamanos rudes conheceu a doce Concetta Tovani. A beleza helênica da jovem arrebatou o coração de Gino que, sem o consentimento do tio da moça, raptou-a e com ela viveu um grande amor que gerou cinco filhos, dos quais apenas dois sobreviveram: Spartacus e Lenine.


O leitor deve ter percebido neste momento um importante detalhe da vida de Meneghetti. Sim, os nomes dos seus filhos homenageiam, respectivamente, o grande líder da revolta de escravos do século I a.C. na República romana e o líder bolchevique da Revolução Russa de 1917. A forte influência do anarquismo nas colônias italianas somada a uma inteligência muito acima do que se esperava de um oriundi com pouco estudo deram ao grande Meneghetti um destaque especial na construção de seu próprio mito. Gino citava constantemente trechos inteiros da Divina Comédia de Dante e desenvolvia debates intermináveis sobre a sua “teoria do roubo” com a ajuda de Proudhon e Malatesta. Certa vez, o repórter Orlando Criscuolo lhe perguntou: “Por que um homem rouba”? Gino responde: “Porque está na miséria”. Criscuolo insiste: “Mas o homem nasce para roubar?” Gino rebate: “Não, mas a maioria das pessoas é miserável”. Esta suposta “consciência social” de Maneghetti criou sobre o ladrão uma mitologia à parte. Sua timé era fundamentada em alguns valores morais que deram ao bandido italiano ares de um Arsène Lupin de Piratininga. Embora sempre estivesse armado e usasse a sua 32 algumas vezes contra a polícia, Maneghetti detestava violência e jamais a usou durante seus roubos. Jamais roubar um trabalhador pobre também era sua marca. Agindo sempre sozinho, especializou-se no roubo de joias, que justificava como uma forma de acabar com a “vaidade dos ricos”. Outra marca de Meneghetti era a forte crítica aos policiais que julgava sempre como despreparados e “lacaios dos ricos”. Seus biógrafos apontam casos hilários de humilhação do ladrão ao alto comando da polícia. Um caso relata que Meneghetti em pessoa compareceu à coletiva de imprensa do chefe da polícia Roberto Moreira, que prometia prender o famoso ladrão logo após a sua fuga da Luz. Ao fim da entrevista, Gino entregou a um jornalista um bilhete dizendo: “então por que ele não me prendeu agora mesmo? Eu era aquele rapaz de chapéu e roupa clara , sentado à sua esquerda”. Não gostava de ser chamado de “ladrão”. Dizia que era apenas um “larápio”. Apesar da sua lenda aproximá-lo de um “bandido social”, Meneghetti jamais o foi. Nunca deu nada dos seus inúmeros frutos do trabalho aos pobres, como um Robin Hood tropical. O próprio afirmou certa vez que não era um filantropo, mas um misantropo. Gostava de cantinas caras, bons vinhos e lindas mulheres. Sua causa jamais foi revolucionária.


A sua areté para a arte do roubo também era bastante peculiar. Não foram poucas as casas arrombadas pelo inseparável pé-de-cabra de Meneghetti. Paulista, Angélica, Higienópolis. O primeiro roubo foi contra a Casa Sarli, famosa loja de armas importadas. Meneghetti arrombou o assoalho e levou consigo uma grande quantidade de armamentos de grande valor. Na imponente mansão dos Matarazzo[6], subtraiu a fortuna de 200 contos de réis, além de um colar de esmeraldas, rubis e diamantes com as cores da bandeira da Itália. O colar desapareceu após a captura de Gino pela polícia. Costumava deixar bilhetes que serviam como sua “assinatura”. Certa vez deixou um bilhete para a proprietária da casa que acabara de arrombar o cofre queixando-se que as joias eram falsas. Gino reconhecia com facilidade a autenticidade das joias. Em pouco tempo, cada crime dessa cidade passou a ser atribuído ao “rei dos telhados”. Até aqueles que certamente não foram cometidos por ele. O maior deles foi a acusação de assassinato do comissário de polícia Waldemar Glória. Meneghetti foi cercado por mais de 200 policiais durante uma armadilha preparada para prendê-lo no centro de São Paulo, em 1926. Houve forte perseguição e troca de tiros na Rua dos Andradas e no viaduto Santa Ifigênia. Gino fugiu pelos telhados das casas e de lá de cima gritou para todos: “Io sono Gino Meneghetti, Il Cesare! Il Nerone di San Paolo”! Naquela altura dos acontecimentos, Nero ou todos os demais Césares romanos eram bem menos populares do que Meneghetti, o maior ladrão (ou larápio) de São Paulo. Mesmo assim, o Nero de São Paulo acabou preso e condenado a 43 anos de prisão, pena depois reduzida a 25. Longos 18 anos na solitária do presídio central. Mas como afirmei no início dessa história, estamos apenas no meio da epopeia de Gino Meneghetti.


Gino ganhou a liberdade em 1945, mas ficou apenas 60 dias solto. Um bom bandido não pode desistir tão cedo do seu ofício. Outros tantos roubos, outras tantas prisões. Novamente libertado em 1959, ganhou uma banca de jornais do então prefeito José Vicente Faria Lima na esquina da rua Amador Bueno com a Ipiranga. Seria esse o final melancólico de Gino Meneghetti? Aposentar-se como dono de banca de jornais? Jamais! Outros tantos roubos e mais prisões até 1966, aos 78 anos de idade. Aos 80 anos, tentou roubar uma casa e fugir pelo telhado. As pernas de mola já não eram mais as mesmas e Gino caiu no banheiro de uma casa e foi detido. Um bom ladrão sem boas pernas e ouvidos plenos não tinha mais futuro. Talvez seja a oportunidade de voltar à banca e viver como uma pessoa comum. Mas sem a amada Concetta, morta em 1938, a vida comum era “una porcheria”, como sempre dizia.


Os anos 70 não tinham mais nem o charme nem os telhados dos tempos de glória de Meneghetti. Os novos “criminosos” ganhavam as manchetes de jornais e o velho ladrão começou e ser revisitado como uma espécie de anti-herói romântico dos tempos antigos. O advogado criminalista José Paulo da Costa Júnior, advogado de defesa de Gino, conta que um dia Meneghetti desdenhou da segurança da casa do advogado. Meses depois, a casa foi roubada por João Acácio Pereira da Costa, o “Bandido da Luz Vermelha”. Eram novos tempos.


O canto dos cisnes do rei dos telhados aconteceu de forma tragicômica no dia 15 de junho de 1970, no dia em que a seleção brasileira vencia o Peru por 4 a 2 pela Copa do Mundo do México. Naquele dia de festa, o agente de polícia Raul Martins de Oliveira Filho percebeu um homem suspeito transportando um pé-de-cabra tentando arrombar a porta de uma casa na rua Fradique Coutinho. Ao dar voz de prisão, notou que era um idoso e logo reconheceu a figura de Gino Amleto Meneghetti com seus incríveis 93 anos de idade. O policial conduziu Gino para a delegacia. O delegado decidiu liberar o suspeito e o apontou como “incapaz”. Era definitivamente o fim do grande Meneghetti.


Seus últimos anos não foram nada gloriosos. Suas pernas de mola foram duramente afetadas por uma gangrena e o velho ladrão passou a viver na casa de um dos seus filhos, Luiz, na Vila Guarani, na zona sul de São Paulo. Os jornais de São Paulo anunciaram a morte de Gino Meneghetti, vítima de trombose, no dia 24 de maio de 1976, aos 98 anos. Seu corpo foi cremado e suas cinzas espalhadas pelas ruas de São Paulo, por todos aqueles lugares que junto com Gino também desapareceram para dar espaço aos grandes edifícios da nova metrópole. Meneghetti, o velho ateu anarquista misantropo, dizia que quando morresse não desejava “servir de pasto aos vermes”. Os heróis da antiga Grécia também eram cremados e todos terminavam no frio Hades. O que resta dos grandes homens é a sua memória e ela permanece sempre viva em uma grande história. Gino Amleto Meneghetti viveu (ou não) uma grande história.

 

Marcello Sarraino Fonseca (1972) é professor de História, paulistano e são-paulino. Apaixonado pela cidade de São Paulo, percorre as ruas da velha Piratininga de bicicleta em busca das memórias perdidas da cidade.

 

NOTAS EDITORIAIS


[1] O Bixiga é um dos bairros mais tradicionais de São Paulo. Localizado no distrito da Bela Vista, região central da capital, o bairro tem uma notória história relacionada à população negra e italiana da cidade. O primeiro registro de ocupação data de 1559, como Sítio do Capão. Nos anos 1820, Antônio Bexiga (conhecido assim por suas cicatrizes de varíola), comprou as terras, donde o nome do bairro. Destacam-se inúmeros pontos de referência da cidade, como a Vila Itororó, construída pelo português Francisco de Castro em 1922, A Escadaria do Bixiga, que une as partes alta e baixa do bairro, a Casa da Dona Yayá, os arcos da Rua Jandaia e o Teatro Oficina. Ali se celebra, também a Festa de Nossa Senhora Achiropita, introduzida pelos imigrantes calabreses.

[2] Distrito policial do bairro do Cambuci, no começo da zona sul de São Paulo. Após a tomada do poder por Getúlio Vargas em 1930, a prisão foi centro de detenção de inúmeros trabalhadores, sindicalistas e anarquistas, o que levou a uma revolta espontânea de estudantes, que invadiram a delegacia e libertaram os encarcerados, no que ficou conhecido como a "Bastilha do Cambuci".

[3] O Presídio Tiradentes, conhecido como Cadeia da Luz foi um notório presídio durante a Era Vargas e a ditadura Civil-Militar. Inaugurado em 1852, como Casa de Correção, foi destino de notórias personalidades, como Monteiro Lobato, preso durante o Estado Novo, e Dilma Rousseff, presa durante a ditadura. Após desativado, tornou-se um marco arquitetônico da cidade, sendo tombado em 1985.

[4] O Rio Tamanduateí, é um dos principais rios da cidade de São Paulo. Originalmente, se encontrava com seu afluente, o Rio Anhangabaú, no local onde hoje se encontra o Vale do Anhangabaú e a Avenida São João. Passa por diversos municípios da região metropolitana, seguindo a Avenida do Estado (na direção leste-sudeste-centro), e deságua no Rio Tietê.

[5] O bairro do Brás é outro tradicional bairro operário da região central (início da zona leste) de São Paulo. Inicialmente ocupado por imigrantes portugueses, foi progressivamente se tornando um local maioritariamente italiano, no começo do século XX e também Grega e Armênia. Hoje, possui forte presença coreana e boliviana.

[6] "Conde" Francisco Matarazzo é uma figura emblemática do capitalismo paulista. Por algum motivo (provavelmente, porque foi perspicaz em criar seu próprio mito, chegando a se declarar descendente de Carlos Magno), tornou-se figura mitológica e mitômana do empreendedorismo ítalo-brasileiro. Sem dúvida uma figura importante para a consolidação do industrialismo, Matarazzo foi, no entanto e como todo capitalista, um explorador (em 1901, por exemplo, ele conseguiu o monopólio das remessas de dinheiro dos trabalhadores italianos, concedido pelo Banco de Nápoles), como deixa claro o projeto Mulheres da Cana: Memórias, da socióloga Maria Aparecida de Moraes Silva, da Unesp (https://revistapesquisa.fapesp.br/casa-grande-e-senzala-dos-matarazzo-na-california-paulista/), além do trabalho já clássico de José de Souza Martins, Conde Matarazzo: o empresário e a empresa.

 

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